No médio prazo

Páginas41-90
3.1 EPISTEMOLOGIA E IA: O QUE É CONHECER E O QUE AS
MÁQUINAS TÊM A ENSINAR?
A Inteligência Articial está propiciando, e o fará de maneira crescente no
futuro próximo, reexões importantes também no plano da Epistemologia. A
investigação em torno da cognição de máquinas reacende debates losócos
milenares, serve de laboratório para experimentação empírica em torno deles, e
lhes evidencia as repercussões práticas.
Por Epistemologia, convém recordar, designa-se o ramo do conhecimento
que se ocupa do conhecimento. Trata-se, portanto, de um metaconhecimento, ou
da investigação que tem o próprio saber como objeto de estudo. Usa-se a expressão
Filosoa da Ciência como sinônimo de Epistemologia, mas a equivalência não é
perfeita. Com efeito, no caso de Filosoa da Ciência, o estudo não raro volta-se
também para questões históricas, políticas e sociológicas da Ciência enquanto
empreendimento humano. A contribuição da IA talvez seja mais evidente es-
pecicamente no que tange à compreensão dos processos cognitivos, da forma
como se pode apreender a realidade para tomar decisões acerca dela, remetendo à
Epistemologia enquanto gura mais próxima da ideia de Teoria do Conhecimento.
No texto que talvez seja o primeiro escrito em torno da Epistemologia, que
a apresenta enquanto ramo da Filosoa, Platão, usando Sócrates como perso-
nagem, observa que o saber deve ser buscado não nas sensações, mas “naquilo
– chame-se-lhe como se quiser – em que a alma em si e por si se ocupa das coisas
que são.” (Teeteto, 187a)1 A inteligência articial conrma isso, pois máquinas
podem ter os mais diversos sensores, por meio dos quais seus processadores terão
acesso a informações relacionadas ao ambiente que as cerca e a elas próprias e
ao seu funcionamento,2 mas o conhecimento, no sentido de “ação de saber”,3 ou
de “cognição”, não se confunde com elas, sendo antes o que se faz com, ou diante
de, tais informações.
Precisamente por isso, conhecimento não se confunde, necessariamente,
com consciência. Dando-se à palavra o sentido de formação de uma imagem da
realidade, seja ela interior ao organismo (estado de seus componentes, tempera-
tura interna, falta de água ou de nutrientes), seja exterior (a temperatura externa,
a quantidade de luz, de gases etc.), mesmo organismos não conscientes, e mesmo
1. PLATÃO. Teeteto. 4. ed. Trad. Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. Lisboa: Fundação Calouste
Goulbenkian. 2015, p. 271.
2. O computador pode dispor dos registros a respeito da temperatura externa, do ambiente em que ele
se encontra, de sua temperatura interna, de sua capacidade de armazenamento, a luminosidade ou da
umidade do ambiente, da presença de algum objeto em movimento, e não saber o que fazer com tais
dados.
3. Ação de saber, e não de corpo de informações acumuladas.
DIREITO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL • Hugo de Brito Machado Segundo
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desprovidos de sistema nervoso, têm conhecimento. Daí dizer-se, nesse sentido
mais amplo, que uma bactéria percebe uma ameaça externa e reage a ela. Assim,
mesmo sistemas não vivos são capazes de reagir ao meio em que se inserem, diante
de informações que obtém a respeito dele. É o caso de um veículo de condução
semiautônoma, que para automaticamente caso um pedestre se atravesse em seu
caminho. Ou mesmo de veículos menos avançados tecnologicamente, que dis-
põem de instrumentos para indicar quando seu tanque de combustível está vazio.
Em mencionado sentido amplo, o painel “percebe” que o veículo está com baixo
nível de combustível (ou de óleo, ou de água no radiador) e avisa ao motorista.
Mas veja-se: assim como a bactéria só é capaz de fazer, com as informações
que lhe chegam do meio exterior, o que seu DNA está programado para fazer,
o veículo com sensores ligados ao painel só fará, com as informações hauridas
do tanque de combustível, ou do radiador, o que seu fabricante programou que
fosse feito. No caso da bactéria, a programação é fruto da aleatoriedade, e de um
longo e lento processo de tentativa e erro, que leva à eliminação das tentativas
malsucedidas (no sentido de que não são propícias ao incremento das chances
de sobrevivência e reprodução do organismo correspondente).4 Em se tratando
de máquinas, farão com as informações sobre o meio exterior o que seus progra-
madores ou fabricantes as prepararem para fazer.
Ilustração de Lara Ramos de Brito Machado
Em se tratando de humanos, contudo, a percepção da realidade, seja ela
natural (as condições atmosféricas), cultural (o resultado de uma eleição), ou
ideal (a soma dos ângulos de um triângulo), pode assumir dimensões muito
mais amplas. Tendo consciência, inclusive de si enquanto sujeito cognoscente,
o ser humano pode testar as informações que recebe da realidade ao seu redor, e
também fazer uso da linguagem para falar sobre elas, conduzindo ao que poderia
ser um signicado mais renado para a palavra conhecimento.
4. Por isso mesmo Pontes de Miranda aludia ao instinto como a capacidade do animal de fazer certo sem
saber. MIRANDA, Pontes de. O problema fundamental do conhecimento. Porto Alegre: O Globo, 1937,
p. 19.
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3 • NO MÉDIO PRAZO
Sistemas de inteligência articial podem ter reações automáticas a estímu-
los externos, programadas previamente, tal como uma máquina que é acionada
por um termostato, diante de um aumento de temperatura, ou de uma luz que
acende pela presença de algo em movimento diante de um sensor. Mas tais rea-
ções automáticas não lhes permitem lidar com situações nas quais a informação
que recebem da realidade é equivocada, ou a reação atribuída automaticamente
a essa informação, por circunstâncias não previstas, se torna inadequada. Al-
gumas noções sobre o que se faz, e sobretudo sobre para que (ns) se faz, são
necessárias a que o sujeito, que conhece, possa avaliar a imagem que faz da reali-
dade e as reações devidas diante ou a partir dela. Ao se programarem máquinas
para desempenhar tarefas para as quais elas precisam, de algum modo, assumir
posturas ou atribuir consequências diferentes conforme se altere a realidade ao
seu redor (“conhecendo-a” de algum modo), portanto, lançam-se luzes sobre a
forma como também os seres humanos realizam a cognição, inteirando-se do
universo que os circunda.
Aliás, o estudo de como animais, humanos ou não, desenvolvem a capacidade
de aprendizado, tem interfaces inegáveis com o estudo do chamado aprendizado
de máquina, pois não só o conhecimento, como o aprendizado, são levados a
efeito por critérios, regras, caminhos ou métodos que podem ser os mesmos,
ou análogos, razão pela qual áreas aparentemente diversas, como a psicologia, a
epistemologia e a ciência da computação, têm tantos pontos em comum e aspectos
a ensinar e a aprender umas com as outras.
3.1.1 Falibilidade do conhecimento e IA
Geralmente se usa a palavra conhecimento no sentido mais elaborado
mencionado no item anterior, o qual s ofre, vale lembrar, da dubiedade proces-
so-resultado. Designa tanto o processo, que é a relação que se estabelece entre o
sujeito que conhece e o objeto que é conhecido, como o resultado dessa relação,
que é a imagem do referido objeto, construída pelo sujeito.5
Mesmo nesse sentido mais renado, o conhecimento não é propriedade
exclusiva dos seres humanos. Um cão conhece, à sua maneira, o mundo ao seu
redor. Enterra um osso para recuperá-lo posteriormente, assim como sabe quan-
do seu dono está chegando em casa, pelos ruídos ou odores que se anunciam.
Pode enganar-se, por igual, sendo precária e provisória a imagem que faz dessa
realidade: corre para a porta ao ouvir o ruído de um carro, imaginando ser seu
5. O mesmo se dá com palavras como prova, explicação, raciocínio e pensamento, por exemplo.

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