Origens remotas do direito português, formação histórica do estado nacional e suas constituições

AutorMarco Aurelio Peri Guedes
Páginas31-420
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2. ORIGENS REMOTAS DO DIREITO PORTUGUÊS,
FORMAÇÃO HISTÓRICA DO ESTADO NACIONAL E SUAS
CONSTITUIÇÕES
2.1 As brumas da memória: da Hispania romana ao
Condado portucalense
Embora a Península Ibérica e o território onde se situa a
atual Alemanha sejam regiões separadas geograficamente na
Europa, Portugal e Espanha são considerados como Estados
tributários de um Direito - em parte - de origem germânica. Essa
influência é peça fundamental para se compreender o Direito
português em seus primórdios. elementos indicativos de uma
influência germânica na origem do Direito português10.
Um motivo para essa influência foram as migrações dos
povos germânicos, determinada pela expansão dos Hunos, de Átila,
do Oriente para o Ocidente11, pressionando inúmeros povos eslavos
e germânicos a se deslocarem à Europa central, configurando um
verdadeiro ‘efeito dominó’ em que uns povos forçariam o
deslocamento de outros pelo território central europeu. Lentamente,
após o século II d.C., esse domínio dos Hunos se concretizaria até
quase controlar por completo o território da Germania. Esses
eventos explicariam em parte, por exemplo, as migrações dos
povos germânicos Alanos, Suevos, Vândalos e mais tarde dos
Visigodos nos séculos V e VI.
Em princípios do culo III d. C., esses povos - que
tradicionalmente habitavam a Leste do Rio Reno decidiram
10 A propósito da origem germânica do Direito português, vide Eduardo Pinto (1996, p. 75).
Para uma análise mais ampla da formação do Direito ocidental, consultar David (1996).
11 A expansão dos Hunos , do Oriente ao Ocidente, ao chegar no território da Rússia europeia e
Polônia, pressionou esses povos a romper as fronteiras do Império Romano, ao longo d o Rio
Reno, no Limes entre aquela civilização e os ditos bárbaros germânicos.
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migrar para a Península Ibérica, em busca de regiões mais férteis à
agricultura e ricas em recursos naturais. A sua marcha para a
Hispania romana levaria décadas, cruzando a Gália até chegar a
seu destino. Ali, encontrariam os romanos, sua Civilização e seu
Direito. E nesse sentido, podemos dizer que o Direito que seria
aplicado no Condado portucalense se formava antes mesmo do
surgimento do Estado.
Na última quadra do século IV d.C., os Alanos saem do
Leste europeu, atravessam a Germania, o Norte da Gália, depois o
Norte da Hispania e se fixam na região centro-sul da Lusitania. Os
Vândalos se estabeleceram no centro da Lusitania, entre as atuais
cidades de Santarém e Viseu. Os Suevos se fixam do Minho à
Galícia. Como registra Blázquez (2021, p. 417), com base nas
crônicas de Hydacio, os Alanos, Vândalos e Suevos chegam à
Ibéria entre o ano 401 e 447 d.C.:
O solo da Hispania foi ocupado (“[…] Alani et
Vandali et Suevi Hispa nias ingressi sunt […]
aera CCCCXLVII”; “[…] inruptiae sint
Hispaniae”), pelas migrações bélicas dos povos
godos “[…] cunctas gentes, qua e per Gallias
vagabantur , Hispaniarum provinciis inmittunt
isdemque ipse adiunguntur: ubi actis
aliquamdiu magnis cruentisque discursibus,
post gr aves r erum atque hominum
vastatiotiones, […]”12.
12 Tradução: “Os alanos, os vândalos e os suevos entraram na Espanha pelo a no de
CCCCXLVII”; "[…] a Espanha deve se revoltar"), pelas migrações bélicas dos povos godos
"[...] ingressam nas províncias da Espanha todas as nações que vagavam pela lia, e elas
mesmas se assentam em si”. E registra ainda Blázquez (2022, p. 29): “No decorrer dos séculos
V e VI d.C., bizantinos, godos, suevos e vândalos disputaram as dioceses da província da
Hispânia (... Alani et Vandali et Suevi Hispanias ingressi sunt... a era CCCCXLVII; ... inruptia e
sint Hispania e). O sítio ibérico foi ocupado por migrações militares dos povos germânicos. A
captura foi realizada com os exércitos de diferentes nações e povos. [...]. E Díaz (2020, p. 48):
A entrada dos grupos invasores coincide com um grave processo d e decomposição da
autoridade romana no extremo ocidental do Império.
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A certa altura, no curso do século V d.C., tornaram-se
aliados dos romanos13, a fim de manter a ordem romana na região
da Ibéria. Por limitações de meios, o Império romano lhes
incumbiu da defesa da parte Noroeste da Ibéria. E, assim, começou
o convívio entre essas culturas tão diversas latinos e germânicos -
, promovendo uma integração entre suas práticas jurídicas. E, de
igual forma, uma particular forma de gestão dessa extensão
territorial da civitas romana, implantada pelos romanos e que
consistia, basicamente, em separar o interesse privado dos
interesses públicos14. Inicialmente, demonstrar tal relação dialógica
secular entre os Direitos português e germânico se mostrou
desafiadora, por haver tênues elementos referenciais a demonstrar
13 Blázquez (2022, p. 28) destaca essas alianças no Baixo Império romano.
14 É o que registra Bázquez (2022, p. 14): Augusto, os magistrados e senadores consideravam
a Res publica uma entidade corporativa independente dos cidadãos romanos (De r eddenda rei
p. bis cogitavit). Inclusive, da pessoa particular de César. Res Gestae Divi Augusti, (XVII e
XVIII) di stingue o patrimônio privado de Augusto do Tesouro da Res publica (este último,
aumentado e enriquecido em várias ocasiões com a fortuna pessoal do primeiro). De acordo
com Suetônio (28 de agosto), a Res publica imperial tinha suas próprias receitas e despesas (...
etiam magistra tibus ac senatu domum accitis r ationarium imperii tra didit). Os bens da Res
publica pertenciam a todos, não eram exclusivos de ninguém: [...] quae publica e sunt, nullius
videntur in bonis esse (Gaius Inst, II, 11). [...]. Os recursos públicos ta mbém tiveram de ser
afetados aos interesses e fins de interesse coletivo do Populus. As decisões da Res publica
tinham de ser orientadas pela utilitas publica. Isso equivalia à razão e aos interesses do
Estado. [...]. Essa prática seria mantida pelos visigodos, como salienta Blázquez (2022, p. 32):
O rei deve governar e agir não apenas no interesse privado, mas também no interesse comum
geral de seu reino: Todas as coisas que são públicas, ele governará com a mor paterno, er it
quecumque sunt publica patr io recturus amore; Os privados s erão administrados com a
autoridade do mestre, (...) Quecumque privata erili dispensatur us ex potestate. Assim, a
comunidade de súditos (universitas), ou coletividade dos membros de seu reino, o terá como
pai, será estimado publicamente e temido em particular, (...) ut hunc universitas pa trem,
parvitas habeat dominum, sicque diliga tur in toto, ut timeatur in pa rvo.... O patrimônio da
pessoa do rei é independente do património do reino. Recesvinto se esforçou para consolidar a
ideia de uma personalidade abstrata (reino-rei) independente do rei que a incorporou. [...]. O
patrimônio privado do rei, adquirido de seus pais ou da s ucessão de qualquer um de seus
parentes, era transferível mortis cau sa pelas leis civis hereditárias em vigor. Recesvinto tentou,
assim, consolidar a separação dos interesses públicos dos negócios privados, bem como a
aplicação separada de um direito público para o reino-rei e seu coletivo de c idadãos (súditos ou
plebeus) (este é o sentido de reino-res publica) e um direito privado para as relações e assuntos
dos indivíduos: [...]”. Historicamente, portanto, o dito patrimonialismo ibérico não encontraria
suas raízes na tradição governativa e imperial romano-visigótica. Seria necessário uma
pesquisa mais profunda a fim de determinar se o patrimonialismo brasileiro - consistente na
confusão entre o patrimônio público e privado, pelos governantes, desde tempos coloniais é
uma criação exclusivamente brasileira, numa deturpação dos métodos reinóis portugueses; ou,
se se trata de uma prática surgida no Portugal independente e trazida ao Brasil.

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