Pátria Grande, Indo-américa: a integração da América Latina na obra de Haya de la Torre

AutorAlexandre Ganan de Brites Figueiredo/Luiz Fernando Sanná Pinto
CargoDoutorando em Integração da América Latina no PROLAM-USP/Doutorando em Economia Política Internacional na UFRJ
Páginas72-84

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Introdução

Victor Raúl Haya de la Torre foi um dos protagonistas da vida política e intelectual da América Latina no século XX. Fundador da Alianza Popular Revolucionaria Americana (APRA), partido anti-imperialista de caráter continental, Haya formou-se no bojo da Reforma Universitária que, a partir da Universidade de Córdoba, impactou também o Peru e a aristocrática cidade de Lima: a proposta era abolir os vice-reinados do espírito. Chefe de partido, foi cultuado como a grande liderança da APRA, ao mesmo tempo em que era criticado por adversários políticos de direita e de esquerda. Fora chamado de fascista pelos comunistas e de comunista pelos setores mais abastados da sociedade peruana. Durante os governos ditatoriais, sofreu perseguições e foi obrigado a buscar o exílio, o que ensejou, inclusive, um clássico caso do Direito, quando Haya ficou preso por anos na embaixada colombiana em Lima, impedido pelo governo de deixar o país. Embora tenha falecido há mais de 30 anos, sua obra ainda desperta paixões.

Haya nunca foi um pensador de cátedra. Toda a sua obra — livros, discursos, cartas e artigos — foi produzida com vistas a intervir no debate político. Isso, porém, não a tornou datada. No que possui de mais original, a obra de Haya antecedeu a discussão de questões que acabaram por se tornar axiais em toda a região: os problemas causados pela expansão econômica norte-americana; o papel do Estado no processo de industrialização dos países dependentes; e a importância, para garantir uma inserção soberana no sistema internacional, da integração política e econômica dos povos que vivem na região que vai do Rio Bravo à Patagônia.

Cabe ainda mais uma observação introdutória: em Haya, a discussão dessas questões se dá a partir da definição da identidade do homem de Nuestra América, problema tão antigo quanto o das independências. Segundo o intelectual peruano, a herança indígena, presente culturalmente em todas as nossas repúblicas, unir-nos-ia, afastando-nos de aproximações com a Europa e com os Estados Unidos. Quando unidos e libertos da opressão e da dependência, constituiríamos não a América Latina, expressão que carrega um forte conteúdo colonial, mas a Indo-América — somente a aceitação de nosso caráter índio poderia tornar a erguer em pedra a América que os europeus construíram com adobe.

Neste breve texto, pretendemos apresentar a abordagem que Haya fez dessas questões. Para tanto, dividimos a exposição em quatro eixos. O primeiro trata do contexto do Peru em que emergiu a figura do intelectual e do político Haya de la Torre. Trata-se de um Peru em transformação: um país que se integra à divisão internacional do trabalho e que permite a exploração de seus recursos naturais pelo capital estrangeiro; uma realidade marcada pelo surgimento de novas demandas sociais e de movimentos políticos inspirados em ideias — indigenismo, aprismo, socialismo — que entravam em choque com a ordem estabelecida.

O segundo eixo é o do realismo de Haya. Segundo o próprio autor, toda a sua aná-lise é fundamentada em uma observação objetiva da realidade material, o que lhe teria permitido entender o verdadeiro caráter da subordinação da região diante dos núcleos centrais do capitalismo — um caráter econômico, não espiritual nem racial, como muitos de seus contemporâneos pensavam.

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A perspectiva de Haya sobre expansão econômica dos países desenvolvidos — imperialismo — conforma o terceiro ponto a ser abordado. Os laços de cooperação entre as oligarquias nativas e o capital internacional seriam a expressão da conjura dos interesses minoritários contra o resto do povo, o que, entre outras coisas, impediria a formação de Estados nacionais realmente soberanos. A conquista da soberania efetiva estaria vinculada com a construção de um Estado Anti-imperialista, o qual deve intermediar as relações do povo com o imperialismo, promovendo a industrialização a partir de cima.

Por último, será apresentada a ideia de Haya de que a integração da região é uma condição sine qua non para a construção de Estados Anti-imperialistas, porquanto os países cada um por si dificilmente conseguiriam montar estruturas estatais capazes de se contrapor ao Colosso do Norte.

Um País em Transformação

É impossível entender a obra de Victor Raúl Haya de la Torre sem levar em consideração as vicissitudes características do Peru do final do século XIX e início do século XX. Trata-se de um período de grandes mudanças econômico-sociais e de amplos debates sobre o futuro de um povo que, carregando dentro de si características, costumes, crenças e valores de uma portentosa civilização que não mais existia, pretendia recuperar o que entendiam como a “dignidade perdida”1.

Depois do boom econômico gerado pelo espetacular desenvolvimento da indústria do guano, o Peru se viu envolto na intrincada disputa internacional que culminou na Guerra do Pacífico (1879-1881). Ao colocar de um lado o poderoso e organizado Chile e, de outro, o Peru e a Bolívia, a Guerra funcionou como um verdadeiro divisor de águas na história dos países que participaram do conflito. O Peru, mais do que derrotado, acabou humilhado: o presidente Mariano Ignacio Prado abandonou o país e seguiu para a Europa. Ao chegarem à capital peruana, Lima, os chilenos não encontraram um governo com quem negociar a rendição.

O fracasso bélico impeliu a intelectualidade peruana a repensar o seu país.

Envoltos no estado geral de frustração, introspecção e autocrítica nacionais, membros da intelectualidade perguntavam-se o que acontecera de errado num país que, havia apenas uma geração, parecia achar-se no limiar do progresso e desenvolvimento nacional.2

A figura mais destacada nesse esforço de reinterpretação do Peru foi o eclético pensador Manuel Gonzalez Prada, considerado o pai do nacionalismo peruano moderno. Influenciado por diferentes correntes filosóficas (positivismo, romantismo, socialismo e anarquismo), Gonzalez Prada atacou os setores dominantes da sociedade peruana,

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responsabilizando-os pela derrota do país na Guerra contra o Chile. Para ele, o grande problema do país era a fragmentação, a dificuldade em se concretizar a unidade nacional, o que era causado pela marginalização do elemento indígena, o esquecimento e a desconsideração do mundo da sierra, então visto como atrasado e obsoleto pela sociedade criolla da costa. Gonzalez Prada defendia que a pátria só se tornaria forte quando as massas oprimidas de camponeses índios conquistassem sua emancipação.

Embora tenha influenciado a intelectualidade progressista peruana que surgiria em um período posterior, o pensamento crítico de Gonzalez Prada não se coadunava com o modelo de inserção internacional proposto pela elite política do país para o pós-Guerra do Pacífico. Diante da dívida externa e da perda de seus principais ativos, o guano e o nitrato, o país negociou o chamado Contrato Grace, o qual, em troca da concessão das estradas de ferro peruanas por um período de 66 anos, da livre navegação no Lago Titicaca e do pagamento anual de 80 mil libras durante 33 anos, garantiu o cancelamento da dívida externa peruana.

O acesso aos mercados de capitais que o Contrato Grace garantia possibilitou a reconstrução capitalista do Peru, a qual se deu em um contexto político em que vigorou a chamada “República Aristocrata” (1895-1919). Essa recuperação ocorreu em detrimento da antiga oligarquia do país, que perdeu espaço para os produtores de açúcar do litoral (arredores de Lima) e para o capital internacional. Durante esse período, houve uma mudança importante na forma de atuação do capital estrangeiro na economia nacional peruana: até o final do século XIX, o capital inglês ou norte-americano penetrava mais como um agente de facilitação, de “intermediação” entre os recursos naturais do Peru e o mercado externo, enquanto que, a partir desse período, ele passou a penetrar o setor da produção.

No século XX, porém, o capital norte-americano começou a entrar no estágio da produção. Aconteceu principalmente no campo da mineração, mas estendeu-se também em graus variados a outros setores da economia. Nas primeiras três décadas do novo século, grandes companhias dos Estados Unidos começaram a ocupar e monopolizar áreas de produção no setor de exportação antes controlado exclusivamente por empresários peruanos.

A indústria mineira, em grande parte devido à sua dependência tecnológica e ao emprego intensivo de mão-de-obra, tornou-se o exemplo clássico de substituição dos naturais da terra por estrangeiros.3

As rápidas transformações econômicas afetaram profundamente a configuração sociopolítica do Peru, porquanto atores sociais que outrora não existiam (proletariado) ou que viviam num estado de torpor secular (camponeses indígenas) foram ativados para a vida política.

De 1890 até 1932, a população de Lima mais do que triplicou, passando de 104 mil habitantes para 384 mil. Barriadas (favelas) multiplicavam-se enquanto a concentração formava o caldo de cultura necessário para o fortalecimento dos sindicatos e para a

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difusão de ideologias que dessem algum sentido aos novos movimentos que surgiam. Em 1911, foi deflagrada a primeira greve geral do Peru...

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