"Pancada de amor nao doi": a audiencia de custodia e a visibilidade invertida da vitima nos casos de violencia domestica/"Love battering doesn't hurt: the initial appearance upon arrest and the victim's reversed visibility in cases of domestic violence".

AutorValenca, Manuela Abath
  1. Quando a violencia domestica chega na audiencia de custodia

    Apos a entrada do custodiado, a juiza iniciou a busca pelos seus antecedentes. Neste tempo, mencionou em tom de deboche o fato de ja ser o quarto processo em que a mesma mulher figura como vitima daquele homem, dizendo que o fato de a mulher se deixar passar por isso quatro vezes lhe da raiva. Por sua vez, o promotor respondeu: "Pancada de amor nao doi. Ja dizia o poeta, ne!?", apos o que, disse que existe uma musica de forro que fala de "surra de amor". A defensora publica pede, aos risos, que ele cante a cancao, mas ele responde que nao pode fazer isso, ja que estava sendo tudo gravado. Logo que a magistrada avisa que nao esta gravando ainda, ele canta e todos riem, inclusive o custodiado (1). O tom descontraido que essa conversa assume, apesar de estarem todos diante de um fato tao grave, nao destoa do dia a dia dos atos realizados pelo sistema de justica criminal. A repeticao, o ritmo rapido, as metas a serem batidas, a pressa em acabar o expediente, o longo tempo desempenhando a mesma funcao, a falta de capacitacao, o contato frequente entre os mesmos atores juridicos, dentre varios outros fatores, contribuem para que essas pessoas relaxem do rigido papel de juiz/a, promotor/a ou defensor/a e se permitam uma espontaneidade que da espaco ate mesmo a piadas com o crime praticado, com a vitima e ate com o reu, muitas vezes ali presente.

    Naquela audiencia, todos riram, inclusive o custodiado, que estava ali esperando por uma decisao que poderia conduzi-lo ao sistema prisional como um preso preventivo ou que o liberaria para responder solto ao processo por um crime no contexto da violencia domestica.

    Essa cena se passou em uma audiencia de custodia, na cidade do Recife, sendo umas das 87 (oitenta e sete) audiencias acompanhadas em uma pesquisa de maior amplitude realizada pelo Grupo Asa Branca de Criminologia em parceria com o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) (IDDD,2019). Entre os anos de 2018 e 2019, foram estudadas 157 audiencias, sendo 70 delas na cidade de Olinda.

    No Recife e em Olinda, a maior parte dos casos de violencia domestica que observamos na pesquisa findou em concessoes de liberdade provisoria, com ou sem medidas cautelares (2). Nao raramente, ha determinacao de monitoracao eletronica do homem (3). Esses reus desafiam o espaco da custodia;eles dividem espaco com "traficantes", "ladroes" "assaltantes", "homicidas", "estupradores" e deles se distinguem. Numa audiencia que destacaremos adiante, o juiz pergunta a um homem que bateu em uma mulher se ele "queria virar bandido de verdade".

    As audiencias de custodia passaram a ocorrer no Brasil em 2015, apos um esforco do entao presidente do Conselho Nacional de Justica (CNJ), Ricardo Lewandowski, e de entidades da sociedade civil, notadamente o IDDD, que vinham cobrando o cumprimento da Convencao Americana de Direitos Humanos (CADH) no que concerne ao direito de um preso ser apresentado fisicamente a um/a juiz/a imediatamente apos a sua detencao.

    Em fevereiro daquele ano, as audiencias passaram a ocorrer no estado de Sao Paulo, em um projeto piloto fruto de um convenio estabelecido entre o CNJ e o Tribunal de Justica do Estado de Sao Paulo (TJSP). Em setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) exigiu a implementacao das audiencias em todo o territorio brasileiro no prazo de 90 dias, no julgamento liminar da Arguicao de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347 (4). Enfim, em dezembro de 2015, o CNJ editou a resolucao n. 213 e regulamentou o instituto, exigindo, dentre outras providencias, que as audiencias ocorressem em um prazo de 24 (vinte e quatro) horas apos a prisao e com a presenca do detido, da defesa, do Ministerio Publico e do membro da magistratura.

    As audiencias se destinam a verificar se uma pessoa, presa em flagrante ou por ordem judicial, sofreu algum tipo de maus-tratos, violencia fisica ou psicologica e tortura; e tambem a dar ao juiz subsidios para decidir se aquela pessoa a ele encaminhada deve permanecer presa ou solta ao longo do processo criminal pelo qual respondera, caso venha a ser denunciada. No ambito da justica estadual--onde se processam os casos de violencia domestica--, essas audiencias so ocorrem quando ha uma prisao em flagrante, isto e, quando a pessoa e presa no momento da pratica de um crime ou logo depois ou, ainda, quando e perseguida apos um crime ou encontrada em seguida com objetos e instrumentos que presumam ter sido ela a autora da infracao (5).

    Num dos casos acompanhados, um homem negro, de aproximadamente 40 (quarenta) anos, sem camisa, com bermuda e uma sandalia de dedo, sentou na cadeira dos custodiados e logo ouviu o promotor dizer: "eu lembro de voce. Voce lembra de mim? Voce passou aqui um dia desses. Quer conhecer o COTEL (6) ?". Ele respondeu no ato: "Nao doutor, pelo amor de Deus, nao". Ele estava ali sob acusacao de cometimento do crime de descumprimento de medida protetiva (7), incluido na Lei Maria da Penha em 2018, com pena que vai de 3 (tres) meses a 2 (dois) anos de detencao, e do crime de ameaca, cuja pena vai de 1 (um) mes a 6 (seis) meses de detencao.

    Tres meses antes dessa prisao, o mesmo homem havia de fato passado pela audiencia de custodia por ter ameacado a sua ex-companheira e, na ocasiao, recebera a determinacao de manter um raio de 500 (quinhentos) metros de afastamento dela. Porem, pelo que afirmava o promotor e a juiza, a vitima teria dito na delegacia que o custodiado estava morando na mesma rua que ela, e que constantemente passava em frente a residencia da vitima, xingava-a e a ameacava. O homem, em audiencia, negou tudo.

    O caso guarda, por certo, complexidades que aqueles 5 (cinco) minutos de audiencia nao permitem aprofundar. Os elementos dessa complexidade aparecem na qualificacao e na rapida narrativa do fato: um ciclo de violencia em curso, um homem que alegou ser dependente de alcool, que vive de pequenos bicos como garcom e seguranca em festas da alta classe media recifense, uma crianca de 9 (nove) anos sob a responsabilidade financeira daquele mesmo homem, uma mulher que nao estava ali, mas teria ido a delegacia de policia depor contra aquele homem e reiterar que vinha sendo importunada e ameacada. Apos a audiencia, aquele homem foi liberado e se determinou que ele seria monitorado eletronicamente.

    Numa outra dessas audiencias, acompanhamos o caso de um homem negro de cerca de 30 (trinta) anos, que teria agredido fisicamente a sua companheira. Na classificacao juridica: lesao corporal leve, qualificada pela violencia domestica (art. 129 [section] 9, caput). Segundo a narrativa do custodiado, a relacao entre ele e a vitima era muito conflituosa, permeada de discussoes e agressoes fisicas e, naquele dia, ele teria perdido o controle apos ser, injustamente, atacado pela mulher. A promotora de justica fez algumas perguntas mais aprofundadas sobre o contexto da relacao, a defesa nada disse e, em seguida, o juiz pediu para que o custodiado saisse da sala. Seguiu-se um rapido pedido do Ministerio Publico para conceder a liberdade provisoria ao custodiado, tendo a defesa se manifestado em sentido identico e, no fim, o juiz decidiu dessa forma. Ainda informou que, como a mulher nao tinha pedido na delegacia a decretacao de medidas protetivas de urgencia, nao as determinaria e tambem nao seria o caso de encaminhar o agressor para a Central de Apoio as Medidas e Penas Alternativas de Pernambuco(CEAPA), orgao do poder executivo (8), composto de uma equipe psicossocial que faz atendimento aos liberados nas audiencias de custodia (9).

    Nesses dois casos, como visto, e tambem no narrado no inicio deste trabalho, os homens foram liberados. Para onde foram apos essa liberacao parece nao ser problema do Judiciario. Entao eles seguem com o, ja externado em audiencia, sentimento de injustica por terem passado uma noite na carceragem de uma delegacia de policia e com a certeza de que foram liberados pela Justica.

    E possivel que aqueles homens, independentemente da classe social a que pertencam, nunca tenham frequentado uma delegacia. Muitas vezes, eles ainda convivem com a vitima depois de varios episodios de agressao. Nas audiencias, sao, como eles mesmos alegam, "trabalhadores honestos", "pais de familia", "cumpridores dos seus deveres". Quase todos sao primarios para o sistema penal, pois nunca foram condenados com transito em julgado por um crime ou contravencao, mesmo que exista, como nos casos narrados, a informacao de que nao foi a primeira vez que a vitima foi agredida moral ou fisicamente por eles. O fato de encontrarmos no reu um "pai de familia", "um trabalhador" quase que automaticamente torna a condicao da vitima ilegitima (10).

    As violencias narradas nas audiencias, para alem de condutas tipicas, fazem parte do dia a dia das pessoas. Literalmente, como no caso que abre este artigo, sao cantadas em verso e prosa e podem ate gerar certa familiaridade entre os presentes, independentemente do genero e da classe social.

    Esse foi inclusive um dos motivos para a criacao das Delegacias de Mulheres na decada 1980 (11) e das Varas (ou Juizados) (12) especializados em violencia domestica contra a mulher, em 2006. A preocupacao era evitar que os mesmos agentes que estivessem tratando de crimes como roubo, trafico ou furto tambem estivessem analisando os casos de violencia domestica contra a mulher, porque, numa escala perversa de gravidade, as ameacas e lesoes leves podem rapidamente perder sentido frente a roubos com uso de arma de fogo.

    Uma advertencia e importante antes de prosseguirmos com a nossa reflexao: as audiencias de custodia sao um avanco para a processualistica processual penal, nao apenas porque oportunizam um maior controle sobre a atividade policial, como tambem porque consistem em um espaco potencial para a racionalizacao e para a melhoria das decisoes judiciais.

    Evidentemente que tudo isso se da em tese, pois, na pratica, esses objetivos minguam por variados motivos, desde a...

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