Pandæmonium educacional? --Para um manifesto docente contra a "distância social"/Pandæmonium education?--Towards a teachers' manifesto against "social distance".

AutorVarela, Raquel

A estes (Anjos decaídos) Satã dirige suas palavras, reconforta-os com a esperança de ainda poder reconquistar o Paraíso, mais fala-lhes, ulteriormente, de um novo mundo e de uma nova espécie de criatura a ser criada, de acordo com uma antiga profecia ou rumor celestial--pois que os Anjos existiram muito antes desta Criação visível--era o juízo de muitos dos antigos Antepassados. Para descobrir a Verdade desta profecia e o que fazer dela, ele convoca então um Pleno assembleário. O que intentam daí seus correligionários. O Pandæmonium--Paço Imperial de Satã -, desponta, repentinamente construído desde o Abismo: Pares infernais tomam, então, assento em sua Sessão Solene. (John Milton, Paradise Lost--em tradução livre e adaptação nossas) Prólogo

A crise deu lugar a uma espécie de Pandæmonium--laboratório, à escala de milhões de alunos, docentes, pais e encarregados--em um simultâneo "aqui-e-agora" global, em quase todo o planeta terra, com cobaias humanas para aquilo que em língua portuguesa chama-se "ensino a distância" (EaD). As aspas têm a ver com a sua difícil tradução aos idiomas do Norte, por exemplo e, por outro lado, demarcam o que outrora, legal e conceitualmente, compreendia-se como ensino remoto ou e-learning. Os resultados da instrução remota emergencial foram inequívocos: é virtualmente impossível ensinar a e com "distância social". Ou--se quiserem--a educação real pressupõe todo o seu contrário.

Este arremedo de ensino a distância não produz um conhecimento autêntico. São doses homeopáticas de informação fragmentada. Transformase o professor num instrumento de um computador que comanda programas, conteúdos, métodos, tempos e ritmos de trabalho. O docente passa daí a ser um apêndice da máquina, qual um novo Chaplin dos Tempos modernos. Vai aumentar muito, por isso, o chamado "burnout", a alienação, o desalento e o sofrimento ético docente. É o professor-operário--um novo patamar da proletarização e do mal-estar docentes no mundo--que abre um teste padronizado, ao pior estilo à americana, e os alunos respondem, já preparados para uma futura linha de montagem na qual vão ser inseridos por este neoliberalismo educacional. Expropria-se--ainda mais--os alunos das classes trabalhadoras e intermédias do conhecimento. O "ensino à distância" expropria o professor de ser criativo e desprofissionaliza-o ainda mais, além de destruir sua vida pessoal, familiar, social. Ao fim e ao cabo--acaba por transformar a sua casa numa unidade produtiva.

Naomi Klein (2007), intelectual norte-americana, explica em sua Doutrina de choque como os governos e empresas usam as "catástrofes" para aplicar medidas que, antes delas, seriam inaceitáveis para a população. A era da automação no ensino chegou e oferece-se como uma verdadeira distopia. Se não houver resistência social e política à falta de professores ou ao controle do seu salário, estes serão permutados por artefatos incapazes de substituir o trabalho docente. Isso porque, em todos os países onde está a ser introduzido o "ensino remoto", aumenta-se o rácio de alunos por professor/computador (o que passa a ser uma espécie híbrida de professor-computador). Será este o tal "admirável mundo novo"?

Os alunos--estes mamíferos relacionais e seus telencéfalos altamente desenvolvidos--não vão conseguir adquirir ou produzir conhecimento algum, porque o conhecimento depende de uma relação volitivo-emocional e coletiva, intencional, que se estabelece no tempo e no espaço que se cria entre os seres humanos--vão tão-só consumir informação que podem fuçar em motores de busca, tal o Google, oráculo pós-moderno. Com o ensino a distância coisificamos, assim, professores e alunos.

Nós amamos um ecrã bidimensional de computadores ou amamos quem podemos abraçar, cheirar e sentir? Entretanto, vendem-se Ipads e/ou softwares, em massa, por exemplo, comprados pelos municípios, com os nossos impostos. E a cereja por cima do bolo: os dados pessoais destes "educandos" e "educadores" são, automaticamente, "entregues" às empresas de estudos de mercado e pesquisa de opinião tão bem utilizados por pessoas da índole de Steve Bannon, contratados para elevar a popularidade de gente com o caráter de Jair Bolsonaro (alunos em Portugal já estão a usar testes, na escola pública, elaborados não por professores, mas por empresas privadas). Este é o tal "admirável mundo novo" da automação do trabalho em educação. Trata-se de fato da privatização do ensino através destas "parcerias" e a brutal redução de custos com os professores, gerando um mercado com fundos públicos, através destas parcerias e diminuindo o déficit público. Pagando menos a professores e criando mais uma geração expropriada de arte, cultura e ciência, dependente de computadores--preparados para um novo mercado laboral automatizado.

Finalmente, todos os estudos provam que mais do que duas horas de ecrãs diários, nas crianças e jovens, produzem efeitos neurológicos graves. Como é possível serem os próprios dirigentes educativos a impor ou autorizar 30 minutos que sejam de ecrãs em crianças cujo dia já passam, fora da escola, enfiados em casa, a sós, com telemóveis, obesos, dessocializados, hiperestimulados e deprimidos? Este tal ensino a distância não é ensino...--é a automação da força de trabalho presente (professores) e futura (alunos).

Doença, mortes, desemprego e/ou lay-offs não são lá motes tranquilizadores. Mas para escrever a história recente é preciso--infelizmente--fazer uso deles. A combinação entre uma brutal crise económica internacional e a emergência pandémica global trouxe um enquadramento geral, em tudo catastrófico, para a vida de milhares de trabalhadores mundo afora. Não é possível--e nem é desejável--ignorar a magnitude dos problemas sociais, económicos, políticos e/ou culturais envolvidos, sobretudo para aqueles que vivem de seu próprio trabalho. Neste sentido, consideramos as tentativas de eludir a excepcionalidade nas diversas esferas da vida uma verdadeira afronta à dignidade da pessoa humana, em geral.

Na educação, em particular, trata-se de algo tanto ou mais desastroso--haja vista que esta compreende justamente aquela atividade vital para a formação de seres humanos plenos. O presente artigo-manifesto (1) parte de uma defesa essencial do direito fundamental à vida e ao trabalho sem deixar de lado o direito à educação e à cultura de todos. Enquanto professores de variados níveis de ensino e em diferentes áreas do saber, tampouco podemos pactuar com a assim chamada "doutrina do choque", que visa aduzir uma "distopia tecnológica", da qual nos alerta a jornalista política Naomi Klein (2000; 2007)--em livros, ensaios e artigos de fôlego. (2)

O impacto das medidas adotadas no âmbito da Covid-19 no mundo do trabalho

As diversas estratégias adotadas para conter a disseminação do coronavírus, ou a Covid-19, impactaram aproximadamente 2,7 bilhões de trabalhadores em todo o mundo e cerca de 1,6 bilhões de estudantes em mais de 170 países. O Banco Mundial (2020) defende que a interrupção do calendário letivo por lapso de "tempo indeterminado" causará "perdas educacionais" incontornáveis (COLEMARX, 2020). (3) Tendo por premissa o inicial regime de quarentena e a necessidade de distanciamento físico, formou-se uma verdadeira frente de organismos multilaterais, corporações transnacionais e de governos nacionais--uma espécie de coalização global do "ensino a distância" emergencial -, que, com um grau de coerência e de unidade poucas vezes visto na história da humanidade, se orquestrou para garantir, impulsionar e coordenar o uso de pacotes instrucionais, plataformas digitais e tecnologias virtuais--da educação escolar básica ao pós-doutoramento acadêmico: sem as nuances e os escrúpulos como da Unesco ou da OIT, e.g., a OMS, Unicef, Banco Mundial, OCDE, Bill and Melinda Gates, Lemann Foundation, Valhalla, Bank of America, AT&T, Novartis, Google, Microsoft, Facebook, Zoom, Moodle, Huawei etc. etc. etc. aliaram-se mais que numa coalizão pela educação global, num verdadeiro "balcão de negócios" de certificação escolar--voltadas para criar mais-valor. Para além disso, há toda uma verdadeira parafernália de institutos, ONGs e de parcerias público-privadas--de caráter "filantrópico-mercantil" ou assemelhado--que todos os anos investe, maciçamente, na reconversão de seus capitais a partir de propostas, tanto curriculares quanto extracurriculares, para a educação pública nos mais diversos níveis.

A centralidade da educação escolar presencial ou, enfim, da educação ipso facto

A nossa posição, enquanto educadores, é clara. O "ensino a distância" não pode (e nem deve) substituir-se à educação presencial clássica, baseada na instituição escolar ou universitária. Já por uma série de razões de fundo (ABRANTES et. al., 2020). Os saberes objetivos--ensinados em escolas, institutos ou universidades--pressupõem o processo de formação de capacidades intelectuais e morais que o estudante ainda não possui e que passará a adquirir, à medida que os novos conceitos científicos, filosóficos ou artísticos produzam aí novas subjetivações em seu pensamento e linguagem (DELARI JR., 2000). Isso requer que a atividade de estudo dos alunos seja pedagogicamente guiada pelo professor, o qual oferece o suporte didático necessário para que a apropriação dos novos complexos categoriais seja, daí, objetivada por cada um deles, com seus diferentes ritmos e intensidades de desenvolvimento humano (SAVIANI, 2013).

O ato de ensino é uma produção não material de tipo coetâneo similar ao que é, p. ex., o ato médico. Explicamo-nos. Para além de produzir materialmente, os seres humanos destacam-se das demais espécies não só por transformar a natureza, que nos rodeia, mas, também, por transformar a própria natureza humana, que nos habita. Além de hospitais, telemóveis, escolas e vacinas, nós produzimos previamente conceitos, imagens, valores ou hábitos--isto é -, bens não materiais. Dentro da produção não material existe aquela que se separa do produtor, tal qual uma...

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