Participação social e relações de poder na política sobre drogas no Piauí/Social participation and power relations in Piaui's drug policy.

AutorGuimarães, Thaís de Andrade Alves

Introdução

A participação social é um dos princípios orientadores das ações das políticas sociais, ganhando institucionalidade com a Constituição Federal (BRASIL, 1988), que organiza a seguridade social a partir do tripé: saúde, previdência e assistência social. A primeira, sendo a única política universal, implementada desde então pelo Sistema Único de Saúde (SUS), é regulamentada pela Lei Orgânica da Saúde no 8.080 (BRASIL, 1990a), que estabelece como instâncias colegiadas as conferências de saúde e os conselhos de saúde, e pela Lei no 8.142 (BRASIL, 1990b, p. 1), que:

Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS, mediante a representação de vários segmentos da sociedade, através da figura do conselheiro da saúde, com 50% representando o segmento de usuários; 25% representando o governo e prestadores de serviço e 25% representando profissionais de saúde. De modo geral, a participação da sociedade civil ocupou um legítimo espaço com a criação e ampliação das instâncias deliberativas e propositivas, como fóruns e conselhos gestores, de modo que as denominações de participação comunitária e participação popular cedem lugar ao conceito de participação social, ancorado na ideia de construção da cultura cívica. A participação social pressupõe comunidades influentes, compostas de organizações autônomas da sociedade civil, atuantes, fomentadoras de espírito público, na perspectiva de relações sociais igualitárias e estruturas solidificadas na confiança e na colaboração, articuladas em redes horizontais. Já a "participação cidadã" é fincada na universalização dos direitos sociais, na concepção do papel do Estado, sendo concebida como intervenção social periódica e planejada, caracterizada pela tendência à institucionalização, a partir da "criação e implementação de novas estruturas de representações, compostas por pessoas eleitas diretamente pela sociedade civil e por representantes do poder público" (GOHN, 2001, p. 57).

Ao tempo em que a população era evocada para participar do processo de controle social, houve alastramento do pensamento dominante em considerá-la incapaz e sem as habilidades necessárias para ocupação desses espaços. E, assim, massifica-se uma cultura de prevalecimento do conhecimento técnico e científico nessas instâncias (CARVALHO; TEIXEIRA, 2017). Contudo, o contexto de "consolidação" democrática se processa em prol do fortalecimento da vocalização das necessidades sociais pelos próprios demandatários das políticas públicas. Paralelamente, observa-se, contraditoriamente, a tendência dos governantes em transferir as responsabilidades na primazia da execução da mesma para entes do terceiro setor (2) , que é crescentemente estimulado a se fortalecer, primeiramente através da criação de um marco regulatório para o setor, e, em seguida, pelas transferências de recursos orçamentários para tais entes.

Nesse contexto fica evidenciada a construção e reorientação da política de saúde mental, álcool e outras drogas como uma arena de disputas entre atores sociais que encarnam projetos e perspectivas distintas (SOUZA, 1984). Estes atores demarcam esse polêmico campo e atuam na inclusão de determinadas questões na agenda pública, igualmente na formulação, implementação e avaliação dos rumos dessa política.

Parte-se da premissa de que, historicamente, as políticas sociais sobre drogas do Estado brasileiro tenderam a influenciar a conformação e a ação dos seus atores sociais, com interesses distintos, quer pelas lacunas, principalmente assistenciais, quer por políticas deliberadas. As políticas proibicionistas, que orientaram a gênese da política sobre drogas e se tornaram hegemônicas, pautadas na segurança pública, tenderam a criminalizar o consumidor de substâncias psicoativas. Isso, de um lado, criou lacunas assistenciais e também participativas, sobretudo na política de saúde, que incorpora, inicialmente, esse segmento de maneira restrita à dimensão curativa, com sua participação limitada à dupla condição de "viciado infrator". Ou seja, é uma pessoa com marcas estigmatizadas, portanto, com barreiras explicitamente impostas à vocalização direta das suas diversas necessidades e visão de mundo, com tendência ao silenciamento. Segundo Rosa e Guimarães (2020), esse paradigma proibicionista dominante percorre um caminho seletivo, pois, ao focar no produto, criminaliza a pobreza interseccionada por marcadores de classe, raça e gênero; no entanto, essa concepção é tensionada pela redução de danos.

Nesse horizonte, algumas das lacunas assistenciais foram potencializadas/cobertas por entidades da sociedade civil, que também focaram, predominantemente, em ações curativas (de "recuperação", "reabilitação"), fundamentadas em um "espírito salvacionista", que tendeu a vocalizar as necessidades dos consumidores de substâncias psicoativas, inseridos no registro da caridade/benemerência. Com as conquistas das lutas sociais no processo de redemocratização, foram incorporadas ações sob o signo da cidadania e direitos humanos, como a política de redução de danos, construindo outras possibilidades de os consumidores de substâncias psicoativas serem reconhecidos como atores sociais, sujeitos de direitos, o que se forjou em outra relação de forças, favoráveis à construção da política sobre drogas com, e não para, o usuário. Mas, contraditoriamente, a assunção de políticas neoliberais, que restringe gastos sociais, focaliza a atenção em segmentos impedidos de acessar a satisfação de necessidades via mercado e se orientam para a privatização, seletividade, focalização e, consequentemente, reforço ao silenciamento dos demandatários das políticas sociais, limitados a "consumidores" de bens e serviços e estimulados à cultura do favor e da gratidão.

Ao se debruçar sobre a realidade do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas no Piauí, depara-se com uma realidade que diverge da perspectiva democrática posta pela legislação e o contexto de conquistas sociais em geral, haja vista ser composto majoritariamente por representantes governamentais e prestadores de serviços, sobretudo representação de comunidades terapêuticas, que ocupam o lugar destinado regimentalmente para a "sociedade civil", sem que o usuário direto da assistência ou suas entidades se façam representar. Tal fato redunda no predomínio da abordagem proibicionista dominante sobre drogas, que imperou como exclusiva até 1990, quando passa a ser tensionada por outra perspectiva: a de redução de danos.

Mesmo com um governante reconhecido como de esquerda, do Partido dos Trabalhadores, acelerou-se a transferência da implementação das políticas sociais para a "sociedade civil", com intenso fomento orçamentário, acompanhado de crescente desinvestimento nos equipamentos públicos. Nesse cenário, os atores sociais passam a disputar o fundo público, e, em um contexto como o piauiense, há uma delegação da construção do desenho da política sobre drogas para a "sociedade civil", cujo Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas foi apropriado, inclusive numericamente, por representantes das comunidades terapêuticas desde sua gênese.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa descritiva, exploratória e analítica, de abordagem qualitativa, com base na triangulação de métodos e fontes. Foram entrevistadas 16 pessoas, que, pelo lugar que ocupam/ocuparam, possuem/possuíam informações estratégicas e fundamentais para contemplar os objetivos da pesquisa, sobretudo, conselheiros, técnicos, gestores, além dos representantes dos movimentos sociais, apontados pela técnica bola de neve.

Foram entrevistados sete representantes governamentais que integram/integraram o CEPD. Como representantes da sociedade civil e integrantes do CEPD, foram entrevistadas três pessoas selecionadas com a perspectiva de diversificação de participantes. Ainda como representante da sociedade civil, mas não integrantes do CEPD, foram entrevistados seis participantes.

Das entrevistas submetidas à análise de conteúdo na perspectiva de Minayo (2011), emergiram dois temas, subdivididos em sete categorias: (i) política pública sobre drogas: política pública e política social; paradigmas proibicionistas e redução de danos; trajetória histórica...

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