Permanencias estruturais e ausencia de rupturas na politica criminal e de seguranca nos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016)/Structural permanence and absence of disruptions in criminal and public security policies in the Partido dos Trabalhadores governments (2003-2016).

AutorBenitez Martins, Carla
CargoReport

Introducao (1)

Partindo de uma leitura historico-estrutural da funcao do controle penal nas diferentes etapas de acumulacao de capitais e de reflexoes ja consolidadas acerca da economia politica da pena, o artigo busca enfrentar as insuficiencias generalizantes das explicacoes teoricas formuladas desde o ponto de vista dos paises centrais da ordem capitalista na busca de compreender as politicas criminais e de seguranca publica experimentadas na particularidade periferica e dependente do Brasil.

Assim, visamos formular analise do controle penal calcada nas especificidades tecidas nas perenizacoes coloniais a forjarem uma "nacao fraturada", que transpoe o escravismo atraves da conjuncao do arcaico/moderno em um capitalismo patriarcal e racista sui generis: o capitalismo dependente brasileiro.

Estas permanencias serao focalizadas no periodo entre os anos de 2003 e 2016, no qual a gestao do Executivo Federal foi protagonizada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), periodo em que se verificou, desde a nossa percepcao teorica, a implementacao de um projeto politico-economico de matiz social-liberal.

O estudo se debrucara no destino da politica criminal e de seguranca nestes anos, percebendo suas caracteristicas, contradicoes e a tendencia ao aprofundamento de uma militarizacao da seguranca publica acompanhada de uma inflacao de um direito penal de emergencia e politicas de recrudescimento penal.

Assim, o escrito buscara destrinchar o quanto o sentido colonial brasileiro nao foi transcendido em toda a sua historia, inclusive durante as gestoes federais petistas, ocorrendo ai um aprofundamento de um processo de reversao neocolonial caracterizador da Nova Republica, e que traz evidentes efeitos na lida com as politicas criminais e de seguranca.

Apresentara, assim, as ideias principais desenvolvidas na tese de doutorado "Distribuir e punir? Capitalismo dependente brasileiro, racismo estrutural e encarceramento em massa nos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016)" (BENITEZ, 2018), estruturando-se expositivamente em tres principais momentos: i. Estudo e caracterizacao da formacao socio-historica brasileira, sua conformacao capitalista dependente e as especificidades e permanencias do periodo marcado pela gestao social-liberal petista; ii. Apresentacao dos marcos analiticos de uma economia politica da pena atenta as particularidades dos paises dependentes, em especial o caso brasileiro; iii. Apreensao dos principais aspectos da onda punitiva brasileira durante os anos de gestao do executivo federal pelo Partido dos Trabalhadores, com enfase nas acoes protagonizadas por este e buscando delinear as razoes da ausencia de uma politica criminal e de seguranca anti-neoliberal neste periodo historico estudado.

  1. Brasil, permanencias de uma nacao fraturada

    Nao nos parece ocioso, ainda que em ousado voo panoramico, iniciar nossa exposicao com um diagnostico de nacao acerca de nosso pais, base social e historica que serve de reducao concreta de nossa problematica.

    O nosso territorio foi tornado "Brasil" nao como um projeto de nacao, mas sim como um projeto mercantil que deveria cumprir uma promessa de imensa lucratividade. Se, no decorrer do processo historico, forjamo-nos enquanto povo, isso ocorre, de acordo com palavras de Darcy Ribeiro (1978, p.19), "como uma especie de subproduto indesejado e surpreendente de um empreendimento colonial, cujo proposito era produzir acucar, ouro ou cafe e, sobretudo, gerar lucros exportaveis".

    Assumindo que nao ha possibilidade de pensar nossa historia ou de buscar compreender nossas instituicoes de controle social sem olhar para a escravidao no pais, tomamos como base reflexiva as elaboracoes de maior maturidade de Clovis Moura (1994). Este desenvolve uma tipificacao que comporta dois momentos historicos: o do escravismo pleno (ate 1850) e o do escravismo tardio. As transformacoes entre estas duas etapas decorrem de elementos estruturais, de esgotamento de modelo economico, mas tambem, imbricadamente, dos conflitos entre as classes, exigindo uma negacao da ideia difundida pela historiografia de passividade e aceitacao dos escravos.

    Quanto aos elementos economicos e extraeconomicos que garantiam esta sociabilidade escravista, Clovis Moura descreve tanto valores sociais e instrumentos de controle social por parte dos senhores, tais como os instrumentos de tortura, a prostituicao forcada, a cristianizacao imposta, como tambem as multiplas formas de reacao e resistencia negra, concluindo que sao esses dois conjuntos de comportamentos, valores e subjetivac oes que projetam "a racionalidade do sistema" (MOURA, 1994, p. 23).

    Com a Independencia do pais denota-se uma nova etapa caracterizada como de neocolonizacao, passando a se constituir mais nitidamente uma burguesia nacional, promovendo mudancas com a modernizacao capitalista que se concretizam com o fim do trafico, a posterior abolicao da escravidao e a passagem do Imperio para a Republica. Mudancas estas que ocorrem de maneira gradual e sem rupturas, acomodando, sob diferentes marcos, velhos e novos grupos minoritarios de poder.

    Para Clovis Moura, no periodo de 1850 em diante, marcado pela Lei Eusebio de Queiroz--proibindo o trafico internacional--e pela consolidacao de uma burguesia nacional sui generis, autoritaria para dentro e subalterna aos interesses ingleses, inaugura-se a etapa do escravismo tardio, caracterizado como um "cruzamento rapido e acentuado de relacoes capitalistas em cima de uma base escravista" (MOURA, 1994, p. 53).

    Esta incipiente modernizacao, acelerada com as injecoes financeiras inglesas e o intenso processo de urbanizacao, aprofundam a combinacao do arcaico e do moderno, por exemplo, com o uso das tecnologias recentemente introduzidas para esticarem a corda do que resta das relacoes economico, politica e sociais baseadas no escravismo. Do escravismo tardio se origina uma modernizacao dependente.

    Com a industrializacao, houve a crenca na possibilidade de mudanca no status do pais no cenario internacional, mas o papel do Brasil na divisao internacional do trabalho permaneceu o mesmo e a forma como se dara a nossa modernizacao somente aprofundara a condicao de dependencia. O desenvolvimento industrial mundial impacta o gerenciamento da economia do cafe, ja apoiada em uma movimentacao comercial e financeira que demanda a criacao de um mercado consumidor e da industrializacao a partir da producao de bens leves, em um primeiro momento. Processo este acompanhado da consolidacao de direitos trabalhistas e previdenciarios, um misto de pressao da classe trabalhadora organizada e de necessidade de regulacao da exploracao.

    Especialmente a partir da decada de 1950, ocorre um processo de acumulacao do capitalismo brasileiro que nao conta com uma acumulacao previa (pois se baseia na importacao das tecnologias descartadas dos paises de capitalismo avancado) e, sendo assim, a acumulacao capitalista brasileira se fundamenta na exploracao do trabalho vivo quase que exclusivamente (a denominada mais-valia absoluta), sendo, portanto, a entrada massiva de capitais estrangeiros via financiamento publico um importante diferencial, o que faz com que a dependencia externa apenas se agudize, mais e mais. A nossa industria pesada, importante passo, nao foi garantida autonomamente em relacao ao capital internacional. O nosso sentido de colonizacao (PRADO JUNIOR, 2000) se mantinha mesmo com essas mudancas tao significativas (CAMPOS, 2017, p.257).

    O periodo imediatamente anterior ao golpe empresarial-militar significou a possibilidade de inflexao de um sentido de uma revolucao brasileira. Segundo Fabio Campos (2017, p. 267), tinhamos dois possiveis destinos, um era o aprofundamento do atrelamento dependente, com o complexo multinacional garantindo "rentabilidade por meio da extracao de mais-valor a custa da superexploracao da forca de trabalho e dos beneficios do padrao de consumo elitizado", o outro era a guinada nacionalista e democratica que um grupo de intelectuais e ativistas reivindicavam, exigindo, "por meio de um complexo nacional popular, reformas estruturais capazes de domesticar o capitalismo para o bem-estar da maior parte da coletividade brasileira". A decada de 1960 apresenta uma cada vez mais nitida divisao social do trabalho e maior delimitacao de classes e de seus opostos interesses, com o fortalecimento da classe trabalhadora e a forte repressao a ela dirigida durante as proximas decadas perdidas. Instaura-se uma nova relacao de forcas para que seja permitida maior acumulacao.

    O Golpe de 1964 foi o enterrar da possibilidade de uma alternativa.

    Podemos dizer, portanto, que os caminhos trilhados em nosso especifico processo de industrializacao pavimentaram nossa sina dependente, sendo "sob a aceleracao do crescimento economico, portanto, sob a 'integracao do mercado interno' e o industrialismo, que ela iria mostrar o que significa dependencia sob o capitalismo monopolista e o imperialismo total" (FERNANDES, 2008, p. 33). Assim, para Florestan, o nosso desenvolvimento adquire a feicao de capitalismo dependente nas ultimas decadas do seculo XIX, quando a dominacao externa atinge a etapa imperialista, com maior concentracao industrial e criacao de monopolios, concomitante a um dominio cada vez mais forte do capital financeiro. Esta classificacao e usada por este autor - e por nos aqui compartilhada--como definicao de nosso desenvolvimento a partir deste momento e nao como caracteristica per si, associando-se, como em um laco de continuidade, com a periodizacao de escravismo pleno--escravismo tardio de Clovis Moura.

    A hipotese complementar para a percepcao da dependencia em nosso pais que aqui lancamos e a de que o momento de inflexao das escolhas politicas e economicas que determinaria a ruptura ou nao para um caminho autonomo de desenvolvimento tambem dependeria de um acerto de contas no que tange as relacoes raciais. O mito da harmonia racial se consolidou exatamente neste periodo, sendo mais um elemento da...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT