Pigmentocracia: classe, raca e genero no sistema de bem-estar social sul-africano/Pigmentocracy: class, race, and gender in the South African welfare system.

AutorFilho, Evandro Alves Barbosa

Introducao

Desde o inicio da colonizacao holandesa, em 1652, a Africa do Sul e atravessada por relacoes de segregacao politica, economica e social baseadas nas ideologias de supremacia racial branca. Neste pais, a racializacao da ultraexploracao da forca de trabalho negra e nao branca, assim como sua estruturacao via sistema colonial e de Estado, sao elementos centrais a criacao de um sistema de bem-estar social que reflete e reproduz a estratificacao por classe, sexo e raca do pais, estruturando um sistema oficial de capitalismo racial.

O capitalismo racial e uma das singularidades das relacoes capitalistas na Africa do Sul, resultando do intenso imbricamento entre exploracao de classe e raca que tomou forma no pais por vias oficiais, implicando relacoes de sexagem racializadas e estruturas institucionais materializadas pelo Estado capitalista. Estas visavam preservar os trabalhadores brancos do pauperismo decorrente da lei geral de acumulacao de capital. Portanto, resulta do pacto entre elites e classes trabalhadora de origem europeia e se sustenta na ultraexploracao da forca de trabalho negra (FEINSTEIN, 2005; TERREBLANCHE, 2005; DAVIE; 2015).

Este capitalismo racial baseia-se em ideologias religiosas protestantes, no racismo cientifico e no nacionalismo africaner, como tambem no seu discurso sobre a necessidade de ascensao social das familias brancas pobres. Dessa forma, instituiu um sistema de segregacao total, resultando na destituicao dos direitos politicos, civis e sociais dos sul-africanos negros, concomitantemente a subalternizacao crescente das populacoes coloured (mestica) e asiatica e a formacao de um Estado de bem-estar social amplo e universal apenas para os brancos, que nunca foram mais do que 20% da populacao do pais (DAVIE, 2015; TERREBLANCHE, 2005). Diante do exposto, o objetivo deste artigo e analisar como as relacoes de classe, raca e genero se expressam na constituicao do sistema de bem-estar social pigmentocratico da Africa do Sul.

O estudo e qualitativo e se fundamenta na teoria da consubstancialidade das relacoes sociais produzida pela sociologia critica sulafricana, a partir de autores como Sampie Terreblanche (2005), Grace Davie (2015) e Charles Feinstein (2005). Para estes intelectuais, o desenvolvimento das relacoes capitalistas na Africa do Sul nao pode ser criticamente analisado sem atribuir centralidade ao imbricamento entre classe social, raca e relacoes sociais de sexo.

Classe social e entendida como o lugar que homens e mulheres ocupam nas relacoes de producao e nas forcas produtivas. Considera-se que as classes sociais, sobretudo a que vive da venda da forca de trabalho, alem de nao serem homogeneas, sao codeterminadas pelas relacoes sociais de raca, que a partir da formacao social do pais e das ideologias que fundamentaram os seus diversos sistemas politicos protegem os brancos das desigualdades sociais e das formas mais severas de dominacao e subalternidade, especialmente os homens brancos, a partir da ideia de supremacia racial. Assim, as relacoes de classe, raca e genero sao elevadas a condicao de relacoes sociais estruturantes e estruturadoras do real, sendo imbricadas e forcas motrizes da historia de mulheres e homens.

Para o levantamento dos corpora, foram realizadas revisao de literatura e analise de documentos oficiais coletados durante pesquisa de campo realizada no pais africano. Foram analisados os documentos produzidos pelo e/ou para o Estado sul-africano desde o inicio da Revolucao Mineral, ocorrida em 1867, ate 1996, ano em que o Governo do partido que pos fim a mais de 350 anos de regimes de segregacao racial, o African National Congress (1) (ANC), publicou a primeira Constituicao Nacional pos-Apartheid.

O corpus documental foi submetido a analise critica de discurso. Dessa analise, que buscava identificar as implicacoes das relacoes sociais de classe, raca e genero na constituicao do sistema de bem-estar social no pais e da revisao de literatura, foram elaborados os topicos de desenvolvimento deste trabalho, como a organizacao pigmentocratica do bem-estar social por meio do Estado. Vale ressaltar que a pesquisa que deu origem a este artigo foi financiada pela Coordenacao de Aperfeicoamento de Pessoal de Nivel Superior (Capes).

A questao das familias brancas pobres e a implantacao do Apartheid (1867-1948)

Os primeiros invasores europeus a chegarem no sul do Continente Africano foram os holandeses, ainda no seculo XVII. A eles seguiram-se protestantes franceses e alemaes no decorrer do seculo XVIII. Estes fluxos migratorios de colonos brancos que desejavam construir um pais europeu na Africa criaram a comunidade boer ou afrikaner (FEINSTEIN, 2005). Profundamente isolados do desenvolvimento historico europeu e em uma terra de solos pouco ferteis, os boeres desenvolveram uma pecuaria rudimentar e descobriram no grande numero de povos autoctones a principal "materiaprima" que a Africa lhes oferecia: a forca de trabalho de mais 1,5 milhoes de africanos. Esta foi intensamente explorada no trabalho domestico, na pecuaria e na agricultura.

Como consequencia, dentro de pouco tempo os africanos negros eram a unica parcela da populacao que trabalhava. Essa total dependencia do trabalho escravo e servil, e o completo desprezo por qualquer forma de produtividade e pelo trabalho manual, transformaram o europeu no boer e deram ao seu conceito de raca um significado primordialmente economico (ARENDT, 2012; TERREBLANCHE, 2005).

Porem, os boeres nao foram os unicos a lutar pelo dominio da Africa do Sul. Os britanicos enfrentaram e venceram os africaneres pelo controle das provincias do Cabo e de Natal. Mas foi apenas com a descoberta de diamantes em Kimberley, em 1867, e a descoberta de ouro na area em volta de onde atualmente se localiza Joanesburgo, em 1886, que comeca a historia moderna da Africa do Sul, a chamada Revolucao Mineral. A atividade mineradora aprofundou as relacoes capitalistas no campo e nas cidades e proletarizou grande parte da populacao de todos os grupos raciais (FEINSTEIN, 2005).

Segundo Grace Davie (2015) e Charles Feinstein (2005), as jazidas de diamantes de Kimberley e as minas de ouro de Witwatersrand ocasionaram a chegada de grandes levas de exploradores. A maioria vinha da Inglaterra, mas havia balticos, alemaes, holandeses etc. Esses colonos eram os "homens superfluos" do industrialismo europeu e expressavam mais aptidao a especulacao do que a industria organizada. Esses individuos nao se integravam nas estruturas de organizacao politica da classe trabalhadora vigentes na Europa; eles queriam ser senhores, burgueses. Logo, so os homens negros e mesticos trabalhavam nas minas, na agricultura e nas funcoes mais subalternas (FEINSTEIN, 2005; TERREBLANCHE, 2005).

Desde meados do seculo XIX, a uniao entre boeres e demais colonos europeus legitimou a criacao das primeiras estruturas e servicos de protecao social as familias pobres, condicionadas pela raca, ou melhor, pela branquitude (DAVIE, 2015). A legislacao e os servicos sociais se voltavam para protecao social as familias brancas das consequencias da exploracao capitalista sobre a crescente massa de trabalhadores brancos urbanos. Nesse sentido, em 1913, o Ato Nacional de Protecao a Crianca (Children's Protection Act) subsidiou bolsas de auxilio financeiro para criancas brancas de familias pobres. A partir de 1926, o Ministerio da Educacao contava com recursos para pensoes para maes, madrastas e avos que cuidassem de criancas brancas.

Alem de responder as necessidades sociais imediatas das fracoes mais pauperizadas da classe trabalhadora branca, o embrionario sistema de bem-estar social sul-africano comecou a se preocupar com as possibilidades de degeneracao moral e miscigenacao decorrentes da proletarizacao e da interacao das familias brancas pobres com outras etnias. Outro temor das classes dominantes era de que, integrados aos negros, mesticos e indianos na venda da forca de trabalho e no cotidiano urbano, os trabalhadores brancos desenvolvessem solidariedade e consciencia de classe inter-raciais (DAVIE, 2015; KLAUSEN, 2004). A preocupacao com a pobreza entre brancos se aprofundou no contexto...

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