Pol

AutorLobo Prudencio, Juliana Desiderio

Introdução

As primeiras incursões realizadas pelo setor de saúde brasileiro no campo do álcool e outras drogas remontam ao século XIX e foram, por longo tempo, sustentadas por concepções eugênicas e higienistas. Sob o monopólio do saber médico, estabeleceu-se um estatuto médico-jurídico no trato público da questão que conferiu legitimidade às ações repressivas, proibicionistas, moralizantes e de controle sobre o uso de drogas e sobre seus usuários (LIMA, 2009).

É somente nos anos 1980 que a preocupação da área da saúde com a questão do álcool e outras drogas ganha novos contornos, impulsionada sobretudo pela emergência da epidemia da Aids (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida). A incorporação ao campo da saúde pública e sua associação à adoção da estratégia de redução de danos (RD) foram provocadoras de importantes avanços na forma de conceber e intervir na questão das drogas, apontando para outras possibilidades, distintas do proibicionismo e da abstinência total.

Importante avanço no trato da questão dos usos do álcool e de outras drogas foi a aproximação da temática ao campo da saúde mental, impulsionada pela publicação da Lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira (Lei Federal no 10.216, de 2001 - BRASIL, 2001). Entre as inovações trazidas pela lei estão o reforço dos serviços extra-hospitalares de base comunitária e territorial, capazes de ser uma referência institucional permanente de cuidados (PITTA, 2011), e o reconhecimento das pessoas em sofrimento psíquico como sujeitos de direitos.

Ainda que sem promover uma ruptura radical com o modelo manicomial, a lei contribuiu para ressignificar a questão do álcool e outras drogas, abrindo possibilidades para o reconhecimento dos usuários dessas substâncias como sujeitos e determinando que o cuidado deve ocorrer no território, de modo a respeitar a história, cultura e vínculos sociais. A partir daí, várias medidas normativas, entre 2001 e 2017, contribuíram para ampliar a perspectiva da atenção à saúde dos usuários de álcool e outras drogas, se contrastada com a lógica puramente repressiva anterior.

Tensões e disputas entre concepções e práticas em torno da questão marcaram esse processo. Mas é a partir de 2017 que há um aprofundamento da onda de retrocessos para a política de saúde mental, álcool e outras drogas, em especial com a implantação da nova política de saúde mental e da nova Raps, o que provocou alterações importantes na assistência e deu espaço às comunidades terapêuticas como serviço primário de cuidado.

O presente artigo examina os rumos assumidos pela política de saúde no campo do álcool e outras drogas no Brasil, identificando tensões, avanços e retrocessos ao longo de sua trajetória. O estudo toma como ponto de partida a implantação da política de atenção integral aos usuários de álcool e outras drogas (Paiuad), em 2003, quando o tema entra, de fato, na agenda da saúde pública brasileira. Acompanha essa trajetória até junho de 2021, no contexto da pandemia por Covid-19.

O estudo se pautou em pesquisa bibliográfica e documental, com consulta a livros, artigos em periódicos, relatórios e teses sobre a temática, além de páginas oficiais dos ministérios da Saúde e da Cidadania. O recorte temporal da consulta foi de 2001 até junho de 2021. O plano de análise considerou o contexto de produção das políticas, os atores e interesses envolvidos e o conteúdo da política. Analisou ainda o padrão de gastos dos ministérios da Saúde e da Justiça com as intervenções voltadas à atenção aos usuários de drogas e ao combate ao tráfico de drogas entre 2005 e 2019, a partir do estudo realizado pelo Ipea (2021) nos planos plurianuais do período, contrastando as lógicas proibicionistas e de redução de danos que têm majoritariamente orientado as intervenções nesse campo.

A conformação do tema álcool e outras drogas na agenda da saúde pública brasileira

A inclusão do tema drogas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) foi possibilitada com a implantação, em 2003, da Paiuad (BRASIL, 2003). Tendo como principais referências a estratégia de redução de danos e o tratamento extra-hospitalar de base comunitária referido no território, o Paiuad trouxe uma noção ampliada em relação ao enfoque da RD, incorporando suas dimensões sociais e de saúde a partir da perspectiva de minimização das consequências adversas do uso do álcool e outras drogas, sem necessariamente reduzir o seu consumo.

Não se pode esquecer aqui a contribuição dos movimentos sociais e dos trabalhadores da saúde mental ao longo desse processo, merecendo sublinhar as deliberações da III Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 2001, cujo relatório final incorpora, pela primeira vez no campo, a temática da droga como pauta do eixo referente à reorientação do modelo assistencial em saúde mental. Coe e Duarte (2017) sublinham a potência desses movimentos sociais na medida em que buscaram articular a ocupação tática de espaços estratégicos na gestão governamental com a manutenção de sua identidade como movimento social, por meio das associações de usuários e familiares e do movimento antimanicomial, possibilitando a ampliação da agenda política do campo da saúde mental para outras questões, dentre elas os usos do álcool e outras drogas.

No mesmo período são criados ou redefinidos diversos serviços, tais como o Caps-AD, o consultório na rua e as unidades de acolhimento. Seguindo essa tendência, em 2011 foi constituída, por meio da Portaria Ministerial n (o) 3.088/2011 (BRASIL, 2011), a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), com o objetivo de ampliar e promover o acesso à atenção psicossocial das pessoas em sofrimento psíquico, transtorno mental e/ou uso de crack, álcool e outras drogas, orientando-se por diretrizes ancoradas no respeito aos direitos humanos, no combate ao estigma e ao preconceito, na garantia da qualidade dos serviços prestados, na construção da integralidade e da intersetorialidade e na participação dos usuários, familiares e comunidade na definição do projeto terapêutico.

A ampliação do acesso ao cuidado em saúde mental e a redução do número de leitos em hospitais psiquiátricos, associadas à expansão e regionalização da rede de serviços substitutivos, têm sido destacadas como importantes conquistas pela literatura voltada ao estudo sobre o tema, dentre eles os trabalhos de Macedo et al. (2017) e Lima e Guimarães (2019). Não obstante os avanços representados pela implantação da Raps, sobretudo no que diz respeito ao esforço de constituição de uma rede integrada de serviços de saúde, é preciso considerar alguns tensionamentos e limites em sua implementação.

A definição da atenção básica em saúde como ordenadora do cuidado tem sido frequentemente conflitada com a centralidade assumida pelos Caps na política de saúde mental a partir dos anos 2000. Amarante (2003) já alertava para o caráter contraditório dessa centralização dos Caps vis-à-vis a própria ideia de rede substitutiva e comunitária, um dos pontos chave do movimento em prol da reforma psiquiátrica brasileira. O autor chegou a cunhar a expressão "capsização" para se referir a essa centralidade.

Sem desconsiderar a relevância histórica dos Caps como parte do avanço das políticas de saúde mental no Brasil e do reconhecimento dos direitos das pessoas em sofrimento psíquico e usuários de drogas, o que se quer chamar atenção aqui é para o risco de perpetuação de uma lógica de cuidado especializado e de urgência em detrimento de perspectivas de atenção contínua e de base comunitária e territorial (COSTA; RONZANI; COLUGNATI, 2018). Na mesma direção, Coe e Duarte (2017) advertem que, ao definir os Caps como dispositivo de atenção psicossocial especializada e não incorporar os ambulatórios de saúde mental no âmbito da rede, a Raps tende a induzir a um processo de "ambulatorização" dos Caps, limitando-os a atendimentos especializados próprios da média complexidade.

Os autores sublinham ainda fragilidades relacionadas à insuficiência do número de Caps-AD no território...

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