Politica de igualdade racial na realidade cearense/Racial equality policy in Ceara, Brazil.

AutorMadeira, Maria Zelma de Araújo

Introdução

A política de igualdade racial no Brasil possui raízes nas mobilizações populares do movimento negro, e, desse modo, atender às demandas apresentadas significa democratizar o poder público. Nesse sentido, são elucidativas as palavras de Jaccoud (2009, p. 11) quando trata do debate público do tema da igualdade racial:

[...] Este debate foi apresentado à sociedade brasileira pelo movimento negro, que defendeu, de forma renovada nas últimas décadas, a necessidade não apenas de combater o racismo, mas de efetivar instrumentos de promoção da igualdade racial. Tais demandas provocaram a ampliação do reconhecimento da relevância do tema do racismo e da discriminação racial como fenômenos sociais ativos na sociedade brasileira, diante do qual, entretanto, levantaram-se resistências e oposições. Para o enfrentamento do racismo e das desigualdades raciais, fazem-se necessárias as políticas de cunho universal, direcionadas a todos os cidadãos sem qualquer distinção, mas também as políticas específicas, voltadas aos grupos historicamente discriminados em termos raciais na sociedade. As políticas de promoção da igualdade racial no Brasil têm natureza essencialmente transversal, o que significa dizer que sua efetividade depende de uma incidência direta nas diversas esferas da vida social da população. E, para isso, é necessário que todas as políticas setoriais assumam em suas ações o objetivo de reduzir as desigualdades raciais (SANTOS; SILVEIRA, 2010).

As políticas sociais universais demonstraram, ao longo dos anos, sua ineficiência ou fraca incidência na redução das desigualdades raciais e superação do racismo. Diante disso, o movimento negro, por meio das mais diversas formas de organização e reivindicação, tem influenciado no país a formulação de políticas específicas voltadas à promoção da igualdade racial.

Contudo, os quase quatro séculos de escravidão, a disseminação do mito da democracia racial e a naturalização das hierarquias raciais não são entraves históricos fáceis de serem superados. São tarefas urgentes a luta pela efetividade dos marcos legais da política de promoção da igualdade racial, pela sua consolidação de forma participativa em níveis cada vez mais democráticos, pela institucionalização da política por meio de maior transversalidade e com a descentralização e o aperfeiçoamento dos mecanismos de gestão. Dessa maneira, permanecem na agenda política quando se intenciona superar o racismo.

Nesse sentido, a análise proposta aqui acerca da implementação de políticas públicas de promoção da igualdade racial no Ceará demanda um conjunto de reflexões sobre as particularidades da questão social brasileira. É fundamental enxergar o Estado brasileiro em sua forma institucional e histórica: construído como mecanismo para manutenção de um capitalismo dependente, para concentração de riqueza e com base em um racismo estrutural.

Em que pese a pertinência desse debate, a execução dessa política pública está subordinada aos ditames do sistema capitalista, e os agentes que nela atuam são desafiados a compreendê-la em suas contradições, limitações e potencialidades.

Nesse ponto, a promoção da igualdade racial, assim como outras políticas transversais, resguarda ainda mais peculiaridades. Além dos obstáculos inerentes aos processos de planejamento setoriais e dos limites dos instrumentos atuais, há que se considerar que a gestão do tema racial como objetivo transversal é especialmente desafiadora. O propósito não se restringe a ampliar a dotação e aprimorar as ações dos órgãos incumbidos de coordenar a política. O mais importante é garantir que todas as demais políticas sejam sensíveis ao objetivo de reduzir as desigualdades raciais e que procurem incluir, em suas ações setoriais, este desígnio. (SILVA et al., 2011, p. 3). Diante disso, propomos, com este estudo, apresentar uma sistematização das ações realizadas pela Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para Promoção da Igualdade Racial (Ceppir), no período de 2015 a 2018, no Ceará, com vistas a compreender as especificidades que assumem as desigualdades raciais, o racismo e o movimento empreendido para a constituição de uma política pública de caráter transversal e com controle social.

Desigualdades raciais como expressão da questão social

A escravidão no Brasil foi um sistema cujo modo de produzir colonial permitia o tratamento de negros(as) como objetos. A superexploração do trabalho, marcado por uma desumanização jamais conhecida na história da humanidade, forjou as bases do nosso modo de produzir e distribuir riquezas. Como último a abolir a escravidão mercantil, este país, de extensão continental, contou com escravizados espalhados pelos quatro cantos, sofrendo perversidade e violência extrema.

O escravismo não se transformou apenas num sistema econômico, mas também forjou mentalidades, afetou conceitos, moldou os "jeitos de ser" na sociedade por meio dos significados, símbolos e linguagens que subalternizam até hoje os descendentes dos escravizados.

O Brasil recebeu 40% dos africanos que compulsoriamente deixaram seu continente para trabalhar nas colônias agrícolas da América portuguesa, sob regime de escravidão, num total de cerca de 3,8 milhões de imigrantes. Hoje, com 60% de sua população composta de pardos e negros, o Brasil pode ser considerado o segundo mais populoso país africano, depois da Nigéria. Além do mais, e a despeito dos números controversos, estima-se que em 1500 a população nativa girasse em torno de 1 milhão a 8 milhões, e que o 'encontro' com os europeus teria dizimado entre 25% e 95%. (SCHWARCZ; STARLING, 2018, p. 15). No pós-abolição e início do século XX assistiu-se tensões raciais em que os ex-cativos não foram tratados como classe laboriosa, nem classe trabalhadora, nem sequer puderam compor o exército industrial de reserva, foram classificadas como classes perigosas. A narrativa dominante proclamava que estes não eram qualificados suficiente para ajudarem a erguer os pilares da futura nação. O Estado Nacional favoreceu a política migratória, importando mão-de-obra apta ao novo processo de produção, sob a alegação de se resolveria o problema da falta de trabalhadores(as) qualificados(as) e, ao mesmo tempo, evitaria a degenerescência da nação, branqueando-a. Egressos das senzalas, foram encurralados a viver nas áreas mais precárias, compondo a grande franja de marginalizados criada pelo modo de produção que surgia. (GONÇALVES: 2018)

Essa formação econômica, social, cultural e política nunca foi desestruturada. Sua estruturação se deu em um direcionamento bem definido: branco, elitista e patriarcal. Além disso, segue a perpetuar-se contemporaneamente de diferentes formas, com consequências que podem ser observadas nas persistentes desigualdades sociorraciais e por atitudes naturalizadoras do racismo--racismo esse estruturante da modernidade e obstáculo à igualdade. Nas palavras de Silvio de Almeida (2018, p. 16), "o racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para as formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea".

O Brasil atual segue com as ideias e práticas racistas, falhando na disposição de garantia de direitos. Para muitos, o racismo aqui é leve, pois não vigorou o apartheid. Quando acontece, e se acontece, não passa de um fato isolado, um problema psicológico, um fenômeno ético de caráter individual ou coletivo. Temos um racismo sem agentes e uma "autoconcepção de que não é violento" (SCHWARCZ; STARLING, 2018). O país não superou a escravidão, que se reedita sem sistema formal, mas como produção coletiva que naturaliza as desigualdades e discriminações sociorraciais.

Em resumo: o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo 'normal' com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção. [...] Nesse caso, além de medidas que coíbam o racismo individual e institucionalmente, torna-se imperativo refletir sobre mudanças profundas nas relações sociais, políticas e econômicas. (ALMEIDA, 2018, p. 38-39).

As expressões do racismo se apresentam concretamente na organização política, econômica e jurídica de nossa sociedade. É válido destacar que a designação de seu caráter "estrutural" não significa afirmar uma situação imutável, que ações e políticas antirracistas sejam infrutíferas ou mesmo que os sujeitos que praticam atos racistas devam ser eximidos de sua responsabilidade. "O propósito desse olhar mais complexo é afastar as análises superficiais ou reducionistas sobre a questão racial, que além de não resolverem o problema dificultam em muito o combate ao racismo" (ALMEIDA, 2018, p. 39). A passagem do sistema escravista para o trabalho livre no capitalismo possibilitou aos que não interessava efetivar políticas de promoção da igualdade racial afirmar a existência de uma suposta garantia da universalidade da lei e de igualdade perante a ela. O escasso debate acerca do racismo no Brasil foi limitado a conflitos do âmbito do privado e das relações interpessoais, difícil de identificar e mais ainda de punir.

Para Jessé Souza (2017), no fim do século XIX ocorreram transformações fundamentais no país que geraram a criação da "ralé de novos escravos" como continuação da escravidão no Brasil moderno. Embasado em reflexões sobre o clássico A integração dos negros na sociedade de classes, de Florestan Fernandes, o autor elucida: o quadro geral da sociedade de classes que se cria depois da escravidão...

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