Porto Maravilha: alegoria de um Brasil em desencontro com o Brasil/Porto Maravilha: allegory of a Brazil at odds with Brazil.

AutorOliveira, Aercio Barbosa de
CargoARTIGO

Eu estava na ponta da rua Eu via a rua se fechar Eu vi a fumaça da pólvora Eu vi a corneta bradar (1) (Raimundo Fagner) Introdução (A questão) Durante cerca de seis anos participei, na condição de educador popular da organização da sociedade civil Fase (2), do Fórum Comunitário do Porto (FCP). Nesse período estivemos ao lado dos moradores e moradoras do Morro da Providência para conter e tentar modificar o projeto de reurbanização da prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. Este previa instalar equipamentos públicos na favela e criar um parque urbano na área conhecida como Pedra Lisa, a parte baixa do Morro da Providência. Para efetivar o projeto, a prefeitura removeria centenas de famílias e prometia alocá-las em residências próximas à favela.

A ameaça de remoção constante foi a principal agenda do FCP, que reunia, além dos moradores do Morro da Providência e de bairros da região portuária, defensores e defensoras de direitos humanos, pesquisadoras e pesquisadores de universidades, organizações de educação popular e outros movimentos sociais. No entanto, o objetivo aqui não é o de analisar a dinâmica de mobilização do FCP, um espaço importante para o tecido associativo, em um período marcado por tantas violações cometidas pelo poder público. Pouco menos é o de analisar o projeto urbanístico Porto Maravilha, lançado em 2009, na zona portuária do Rio de Janeiro. O projeto e as obras foram realizados com a parceria dos governos do estado do Rio de Janeiro, da cidade do Rio e governo federal, com a justificativa de dinamizar o mercado imobiliário de moradia e negócios; construir equipamentos públicos; e melhorar a infraestrutura e a paisagem urbana para receber os megaeventos esportivos no Brasil - algumas partidas da Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, que tiveram como sede a capital fluminense. O Porto Maravilha, que beneficiou parcela ínfima da população que mora na região, servirá para tratar do quanto o nosso desencontro com uma leitura interpretativa sobre o Brasil é profundo, recorrente e nocivo, precisando ser superado, com o auxílio da mobilização de ideias produzidas em nossas instituições acadêmicas e de pesquisas. E isto se faz ainda mais premente se consideramos o momento atual de retrocesso das conquistas sociais, com a forte presença de posições reacionárias assumidas por governos e por parcelas expressivas da nossa sociedade.

Impulsionado por acompanhar de muito perto todo esse processo de violações cometido pelo poder público, de dentro do FCP, o meu propósito é com este ensaio abordar, a partir de dois fatos notórios da realidade brasileira, uma questão que parece ser ignorada, sem sentido. O primeiro fato é que as elites ou a "inteligência" do país - se é que faz sentido usar esta adjetivação -, por estultice ou para fortalecer posição de poder, são produtoras contumazes de pastiches, normalmente com base naquilo que é produzido fora daqui - simulacro, arremedo etc. -, e desprezam tudo que pode beneficiar a maioria da população; o segundo é a pandemia provocada pelo Sars-CoV-2, que impulsionou o agravamento dos nossos históricos problemas sociais; fato que mobiliza setores da nossa sociedade, bem-intencionados, oportunistas, crédulos, incautos etc. para elaborar propostas de mudanças que debelem os males atuais. A palavra da hora é "retomada"!

Neste contexto, imerso em transformações tecnocientíficas, sociais, econômicas, políticas e culturais, levanto a seguinte questão: não deveríamos recuperar ou ampliar a produção intelectual de maneira semelhante à atitude adotada por aquelas pessoas que foram conhecidas como intérpretes do Brasil? Ou seja, buscar compreender as nossas questões sociais, culturais, políticas e econômicas para produzir teorias e propostas de mudanças a partir de nossos próprios termos?

Sabe-se do trabalho árduo de pessoas em instituições acadêmicas, de pesquisas e produções, em diferentes áreas do conhecimento, que seguem essa tradição nomeada como "intérpretes do Brasil". Gradualmente, no entanto, essa prática foi sofrendo patente embotamento. Na atualidade, trabalhos dessa estirpe são escassos - feito ilhéus numa vastidão oceânica. O labor de interpretar o Brasil fez parte da nossa cultura desde o final do século XIX, impulsionado sobretudo quando viramos uma República, e ganhou força ao longo do XX, estando bem vivo até a década de 1980. Pessoas de diferentes áreas do conhecimento, artistas e críticos literários produziam seus trabalhos orientados por essa problemática.

A antropologia, a ciência social, a economia, os estudos urbanos e rurais, a geografia, produções estéticas, seus movimentos - sendo os mais conhecidos o Modernismo, o Cinema Novo (3) e o Tropicalismo - e a crítica literária canalizavam suas energias cognitivas na tentativa de compreender aquilo que nos distingue de outras sociedades, a partir da nossa formação social, dos nossos impasses e contradições. Na economia, por exemplo, procurava-se encontrar um caminho capaz de superar nossas mazelas sociais, de nos tirar do "subdesenvolvimento"; a literatura destacava as contradições de uma modernização conservadora e evidenciava com suas personagens a descrição de ambientes até então ignorados pelas elites rurais e urbanas; a crítica literária, a partir dos romances, crônicas e poesias, buscava entender o Brasil.

Caio Prado Jr., Celso Furtado, Chico de Oliveira, Darcy Ribeiro, Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Gilberto Freyre, Josué de Castro, Lourdes Sola, Octávio Ianni, Raymundo Faoro, Ruy Mauro Marini, Sergio Buarque de Holanda etc. são alguns desses intelectuais que passaram boa parte da vida trabalhando com essa intenção. Abdias do Nascimento, Beatriz Nascimento, Clóvis Moura, Guerreiro Ramos, Kabengele Munanga, Lélia Gonzales, Luiza Bairros, Muniz Sodré, Virgínia Bicudo, entre outros, com o mesmo propósito, além de serem intelectuais que se autodeclaravam ou se autodeclaram negros e negras, abordam o significado da escravidão numa perspectiva bem diferente dos que fizeram parte do establishment. Esses últimos são pensadores e pensadoras cujas ideias durante um bom tempo permaneceram relegadas nas instituições acadêmicas e no debate público. Neste início do século XXI, as consequências da crítica ao racismo estrutural, a mobilização dos movimentos sociais, com a agenda racial dentro e fora das universidades, as políticas afirmativas, que fez aumentar a presença de discentes negros nas universidades públicas, o ingresso de docentes afrodescendentes nas universidades etc. contribuíram para que as reflexões e proposições desses pensadores e pensadoras estivessem entre disciplinas de algumas universidades, programas e institutos de pós-graduação.

Entre os trabalhos estéticos, para ficarmos só na literatura, destacamos Triste fim de Policarpo Quaresma (Lima Barreto), Grande sertão: veredas (Guimarães Rosa), Vidas secas (Graciliano Ramos), Macunaíma (Mário de Andrade), Quarup (Antonio Callado), Viva o povo brasileiro (João Ubaldo Ribeiro) como alguns dos romances fundamentais de interpretação do Brasil. O romance Torto arado (Itamar Vieira Júnior), publicado recentemente, segue essa tradição tão rara nas últimas décadas.

Alfredo Bosi, Antonio Cândido, Jorge Schwartz, Roberto Schwarz, Silviano Santiago etc. são algumas das referências na interpretação do Brasil a partir de obras literárias. Certamente quem se dedica a esse interessante campo do conhecimento identificará significativas ausências nesta lista de referências produzida por um neófito no tema.

Identifico como responsáveis pelo enfraquecimento dessa conduta ao menos duas causas: a ditadura militar, que sufocou o pensamento crítico - tirar a vida de intelectuais, expulsar do país, retirar das atividades acadêmicas etc. foram algumas das medidas tomadas pelos governos militares -; e após a ditadura tivemos o avanço da especialização acadêmica, o declínio do intelectual público, as exigências produtivistas nas universidades e centros de pesquisa. No entanto, iniciamos o segundo decênio do século XXI com muitos dos problemas tratados pela vaga de intérpretes do Brasil. Mudaramse as disposições do pensamento, das instituições produtoras de um tipo de conhecimento, ao passo que as desigualdades sociais, a pobreza e a miséria se agravam.

Com este ensaio espero estimular a oposição à prática mental predominante, que se nega a olhar para a nossa sociedade em toda a sua complexidade e nuanças. Animar, sobretudo os mais jovens, que ocupam os cursos de graduação, os institutos de pós-graduação, a abordarem os variados fenômenos que dão forma e contorno à nossa sociedade, a se debruçarem sobre os determinantes próprios da nossa formação social, a adotarem um espírito investigativo dentro de uma perspectiva sistêmica. É verdade que a realidade contemporânea, sejam as relações...

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