Práticas de Resistência em saúde como estratégia para o fim dos manicômios judiciários/Practices of resistance in healthcare as a strategy to end judicial mental asylums.

AutorDa Silva, Ana Carla Souza Silveira

Introdução

Depois do portão. Depois desse portão. tudo virou solidão porque foi a entrada da minha prisão. neste perÃÂodo tenho que ter tranquilidade nas minhas reflexões. para amanhã olhar os erros de ontem e não tropeçar, machucando as cicatrizes que ficaram então depois desse portão. meu pensamento está na liberdade. para quando este portão abrir. eu poder andar para onde quiser ir. voarei com meus passos firmes no chão. para nunca mais entrar nessa prisão. solidão que prende no meu coração. um grito de vitória amargando a voz da emoção. (Gilberto da Cunha) A história carioca nos conta que o Decreto no. 14.831, de 25 de maio de 1921, aprovou a regulamentação do primeiro manicômio judiciário brasileiro, posteriormente chamado, em 1954, de Manicômio Judiciário Heitor Carrilho, na cidade do Rio de Janeiro (JACÓ- VILELA, 2011). Assim, no ano de 2021 completam-se 100 anos de convivência da população brasileira com a estrutura do Manicômio Judiciário (MJ). Ao longo desse tempo, foram criados ordenamentos jurÃÂdicos, como o da medida de segurança, com a finalidade de consolidar portões/grades que assegurassem o internamento e isolamento social do dito louco criminoso. Parte daànossa intenção de visibilizar neste artigo práticas profissionais experimentadas atrás do portão da prisão com vistas àsua abertura e acesso àliberdade das pessoas em condição de sofrimento mental.

Com a reforma do Código Penal (CP) em 1984, cuja origem se deu no ano de 1940, o nome Manicômio Judiciário (MJ) é substituÃÂdo pelo de Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), segundo o art. 41 do CP. Contudo, ao longo deste artigo, utilizaremos em alguns momentos o termo manicômio e não hospital, pois ainda hoje se enquadra como local produtor de inúmeras formas de violência e infrações dos direitos humanos, tal como demonstrado nos resultados do Censo de 2011 em 26 estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico no Brasil (DINIZ, 2013).

Eis que precisamente em 2021 o MJ sobrevive. E agora o status do isolamento social ultrapassa o seu portão, dado o contexto da pandemia mundial ocasionada pelo novo coronavÃÂrus (SARS-CoV-2). Certamente toda a população mundial vive efeitos irreparáveis em suas vidas. Tempos sombrios com restrições no ir e vir, cujo cenário mortÃÂfero e adoecedor acentuou o isolamento e os riscos por contaminação de grupos, tal qual a população carcerária, que padecem "de uma especial vulnerabilidade que precede a quarentena e se agrava com ela" (SANTOS, 2020, p. 15).

Ressalta-se que a pandemia chega ao Brasil num momento em que o sistema de saúde prisional está frágil e sobrecarregado, o que tem resultado em alta mortalidade por doenças infecciosas potencialmente curáveis, como a tuberculose. [...] Neste cenário, medidas judiciais de desencar-ceramento são urgentes e necessárias para reduzir a superlotação que pode alcançar a absurda taxa de 300% em algumas unidades prisionais. A pandemia exige respostas rápidas, especialmente em paÃÂses de baixa renda, com condições desumanas e altas taxas de aprisionamento (SANCHEZ et al., 2020, p. 1). Permeadas, então, por essa preocupação em torno da realidade atual do sistema prisional brasileiro é que apostamos em práticas antimanicomiais desencarceradoras regidas pelas polÃÂticas públicas democraticamente construÃÂdas a partir da década de 1980, em detrimento de projetos polÃÂticos que tentam descaracterizá-las. Citamos como exemplo a inclusão das Comunidades Terapêuticas na Portaria no. 3.088, de 23 de dezembro de 2011 (BRASIL, 2011), que institui a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) e a Nota Técnica no. 11/2019-CGMAD/Dapes/SAS/MS (BRASIL, 2019), que, dentre tantos pontos conservadores e reducionistas, propõe o financiamento de leitos em hospital psiquiátrico.

Partimos de duas orientações antimanicomiais pautadas na polÃÂtica pública de saúde mental--Lei 10.216/2001 (BRASIL, 2001)--provocadoras de revisão do pensamento e da ação do sistema de justiça criminal no tema da medida de segurança (BRANCO, 2019; CAETANO, 2018; CARVALHO; WEIGERT, 2017): 1) Resolução no. 113, de 20 de abril de 2010, do Conselho Nacional de Justiça, art. 17, em que "O juiz competente para a execução da medida de segurança, sempre que possÃÂvel buscará implementar polÃÂticas antimanicomiais, conforme sistemática da Lei no. 10.216, de 06 de abril de 2001" (CNJ, 2010); 2) Carta Aberta do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA, 2014, p. 43), que visa, entre outros pontos, o "[...] fortalecimento da rede antimanicomial de saúde mental [...] e a importância de articular e coordenar a oferta de atenção integral [...]", afirmando, inclusive, "o fim dos Hospitais de Custódia e exigir uma Atenção Integral ao 'louco infrator'".

Afirmar a desconstrução: o fim do mito da periculosidade e a adoção de estratégias de "conciliação provisórias" para o fim dos manicômios

Verificamos com Foucault (2010) que a construção da noção de "periculosidade" como "figura monstruosa" decorre de uma aliança fortuita estabelecida ainda no século XIX entre os sistemas médico e judiciário. O "monstro" é aquele que em sua essência infringe a lei natural e por isso é reconhecido como criminoso. Se até o final do século a lei se aplicava somente ao sujeito razoável e a justiça respondia pelas transgressões de ordem jurÃÂdica, quem responderia por aquelas de ordem natural?

Nasce, então, uma nova tecnologia, a qual Foucault (2010) nomeou como exercÃÂcio do poder de punir, em que a medicina passa a responder pelos atos aparentemente sem razão para ocorrer. É nesse momento que a psiquiatria é convocada a permear os sistemas de punição e justiça da época. A medicina enquanto uma ciência indispensável ao sistema penal se torna "capaz de farejar o perigo onde nenhuma razão é capaz de fazê-lo aparecer" (FOUCAULT, 2010, p. 104) e, assim, a psiquiatria adentra o sistema penal como uma disciplina produtora de informações técnicas sobre a conduta humana, através do que hoje conhecemos por perÃÂcia forense.

Dessa união culminou a "incorporação do adjetivo 'perigoso' àfigura do 'louco" (CAETANO, 2018, p. 92), engendrando, posteriormente, a criação do manicômio judiciário. Configura-se a "lógica hospitalocêntrica inocuizadora", conforme desenvolvido por Branco (2018, p. 180), que determinou a captura da loucura pelo sistema penal, passando os manicômios judiciários a se ocuparem dos loucos quando em conflito com a lei.

Em termos jurÃÂdicos, a entrada nesses manicômios existe mediante decisão judicial intermediada pela avaliação do perito médico em relação àconceituação no Código Penal (CP) (Lei no. 7.209/1984), art. 26: "É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilÃÂcito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento" (BRASIL, 1984).

Logo, diante de um ato ilÃÂcito no qual a pessoa não possui condições mentais para o cumprimento da pena (quesito avaliado pelo perito médico), pode o juÃÂzo considerá-la inimputável e digna de tratamento especial. Determina-se o cumprimento da medida de segurança, conforme CP (artigos 96 a 99) e Lei de Execução Penal (Lei no. 7.210/1984), em seus artigos 66, 99 a 101 e 171 a 179 (BRASIL, 2014a, 2014b). Essa medida pode acontecer em duas modalidades voltadas para o tratamento em saúde mental: internação no MJ ou HCTP e ambulatorial na Raps. Desta forma, se constrói a figura do "monstro" e sua "periculosidade", que precisa ser "segurado" dentro do portão prisional. Como, então, escapar a essas construções médico-jurÃÂdicas de captura da loucura?

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