A praxis instituinte do comum em oposicao a racionalidade neoliberal: LAVAL, Christian; DARDOT, Pierre. Comum: ensaio sobre a revolucao no seculo XXI. Sao Paulo: Boitempo, 2017 [edicao eletronica em formato.epub].

AutorFerreira, Pedro Pompeo Pistelli

Se a sociedade contemporanea encontra-se em um contexto marcado por uma dominacao eminentemente global da racionalidade neoliberal, que generaliza o codigo de conduta da competicao desenfreada e o modelo de subjetivacao da empresa financeirizada a todos os ambitos da existencia humana, cumpre responder radicalmente a esse cerco. Para tanto, nao basta tentar voltar as formulas keynesianas e estatistas do WelfareState: urge, em outro sentido, contrapor essa situacao a uma outra forma de pensar, existir e ordenar o mundo, que, inserida nas lutas do presente, responde com uma proposta igualmente global aos desafios atualmente impostos.

Christian Laval e Pierre Dardot, em seu novo livro, propoem-se a enfrentar esse desafio e, no processo, identificam o principio politico do comum como o horizonte alternativo que pode suscitar uma oposicao progressista a altura das tarefas impostas pelo nosso tempo historico. Munidos de uma ampla zona de influencia, cujas bases epistemologicas bebem na fonte de leituras nao ortodoxas de nomes como Marx, Foucault e Bourdieu (1), os professores da Universidade de Nanterre tentam suprir um vacuo deixado em sua celebrada analise do neoliberalismo (2) : o de indicar os caminhos de resistencia possiveis ao processo generalizado de subsuncao de tudo "segundo a norma generalizada do cada vez mais" (LAVAL; DARDOT, 2017).

Para tanto, aproximam-se de um amplo debate em torno da ideia de comum. Nele, buscam unificar um sentimento politico que se manifesta na multiplicidade de lutas antineoliberais identificadas em todo o mundo, que abarca manifestacoes contra a privatizacao e devastacao dos recursos naturais, sociais e intelectuais e pela gestao comunitaria dos bens materiais e imateriais capazes de satisfazer necessidades humanas em geral (3). Aqui, os autores pretendem refundar rigorosamente uma proposta elaborada pelo movimento altermundista e ecologista: a de atualizar a ideia de commons (4), atrelada aos espacos sociais pre-capitalistas de uso comum que foram violentamente espoliados pela fase de acumulacao dita primitiva ou originaria de transicao da ordem feudal a sociedade burguesa (5).

Para tanto, realiza-se um processo de analise muito amplo de investigacao sobre as teorias do comum, que perpassa uma notavel variedade de vertentes. Essa e a tarefa assumida na primeira parte do livro. Em seu capitulo inaugural (Arqueologia do comum), analisa-se o sentido antigo do termo em questao, que foi desenrolado desde tradicoes teologicas--atreladas a nocao de "bem comum"--, juridicas e economicistas (originadoras da definicao de "coisa comum") ou filosoficas (conectadas a proposta de universalidade). Depois, aborda-se a questao do comunismo de Estado, a fim de caracteriza-lo como uma forma de sequestro do principio do comum pelos mecanismos burocraticos de institucionalizacao estatal. No terceiro capitulo, por sua vez, adentra-se no debate de popularizacao dos comuns pelo movimento altermundista e seus influenciados. Aqui, os autores reverberam as lutas contra o neoliberalismo, denunciado como um processo de "novo cercamento do comum" marcado por praticas continuas de violencia, pilhagem e expropriacao. Fazem, entretanto, a critica de que nao se deve olvidar do processo de exploracao do trabalho e muito menos dos diversos mecanismos de subjetivacao e de controle aplicados pela ordem neoliberal. Em um momento seguinte, aborda-se a problematica economica de gestao dos comuns, a partir principalmente da new institutional economics. Originalmente, essa disciplina acostumou-se a associar qualquer uso comunitario de bens de consumo individualizavel como um processo fadado ao fracasso economico (6), mas, especialmente apos as contribuicoes de Ostrom (1990), novas correntes indicam a viabilidade desses principios na gestao de mais recursos. No quinto capitulo, Laval e Dardot revelam a influencia de Negri e Hardt (7) em sua nocao de comum, adotando sua delimitacao como principio politico que pode ser colocado no singular ("o comum"), sem, no entanto, subscrever o otimismo historico decorrente de suas propostas de um comunismo cognitivo que estaria a nascer das entranhas cada vez mais autonomas de uma sociabilidade marcada pela hegemonia da producao imaterial.

Na segunda parte da obra, os pensadores franceses mudam de foco: para alem de inventariar os usos academicos ou politicos do comum, delimitam que "o comum e primeiro e acima de tudo uma questao de direito, ou seja, de determinacao do que deve ser", de algo que pretende refundar a sociedade. Por isso, embarcam em estudos que pretendem pensar a questao da instituicao de ordens sociais. Assim, rejeitam tanto a definicao do comum como um direito de propriedade--o foco deve estar na instituicao do que e inapropriavel, o que supera concomitantemente o publico e o privado--, quanto como algo fruto de uma common law outorgada e delimitada por especialistas capazes de interpretar os costumes populares (capitulos 6 e 7). Nos dois capitulos seguintes (8 e 9), abordam-se variacoes progressistas de um direito consuetudinario construido pelos pobres e pelas classes trabalhadoras, seja em vertente mais teorica--como os textos de Marx sobre os debates da dieta renana que almejavam criminalizar o recolher da madeira caida dos bosques de proprietarios florestais--, seja a partir da experiencia comunitaria de organizacoes operarias, como sindicatos, associacoes de ajuda mutua, cooperativas e grupos de economia solidaria. Aqui, os autores demonstram proximidade com a tradicao do socialismo cooperativista frances, com valorizacao de Proudhon, Jaures e Mauss, e constatam, por fim, a necessidade de "um ato consciente de instituicao". Enfim, no capitulo 10 (A praxis instituinte), emerge a proposta do comum em Laval e Dardot, inspirada principalmente em Castoriadis (1998). Trata-se de um ato consciente de instituicao do inapropriavel, que, concomitantemente: 1) aglutina pessoas envolvidas em uma mesma...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT