Prefácio

AutorMaria Celina Bodin de Moraes
PREFÁCIO
O modelo de família, concebido pela sociedade burguesa, que se consolidou em
meados do séc. XIX, era fundado no casamento indissolúvel e na autoridade paterna e
marital. A família burguesa, chamada de patriarcal, tinha estabilidade plena, garantida
pela legislação civil que assegurava o vínculo “até a morte” de um dos cônjuges. Tal
modelo de família baseava-se em tripla desigualdade: nela, os homens tinham mais valor
que as mulheres; o pai, maior importância que os f‌ilhos e os heterossexuais com direitos
que os homossexuais não tinham.1
Como se sabe, tais fatores alteraram-se radicalmente nas últimas décadas e um novo
modelo, que vem sendo chamado de “democrático”, corresponde, em termos históricos,
à manifesta mudança, com a inserção, no ambiente familiar, de princípios constitucionais
tais como a solidariedade, a igualdade e a liberdade. Ao modelo tradicional contrapôs-
se o modelo de família democrática, onde não há direitos sem responsabilidades, nem
autoridade sem democracia.
A passagem da família-instituição à família democrática, isto é, aquela que busca
propiciar um ambiente adequado ao desenvolvimento da personalidade de cada um de
seus membros suscitou a maior autonomia dos membros da família. A disseminação do
divórcio, por outro lado, fez com que o casamento deixasse de representar, como antes,
um assunto pertencente ao universo dos parentescos de origem. A perda do caráter
único da relação mudou a sua qualidade, a sua natureza e o seu signif‌icado, tornando-o
menos abrangente em suas implicações sociológicas. Essas consequências, quais sejam,
a autonomia dos membros da família e a mudança de seu eixo central, são de grande
relevo para o tratamento do tema da “Responsabilidade civil nas relações familiares”,
obra coletiva que aqui se prefacia, coordenada com a excelência de sempre por Nelson
Rosenvald, Ana Carolina Brochado Teixeira e Renata Vilela Multedo.
No lugar da conjugalidade, a parentalidade assumiu a posição central da família.
Essa mudança de eixo possibilitou uma renovada coesão da instituição: focalizada
agora na f‌iliação, a família continuou a atribuir os lugares da parentalidade e da ordem
genealógica e a garantir a sucessão de gerações. Do ponto de vista jurídico, tal centralidade
encontra-se assentada em princípios constitucionais, em especial nos contidos nos arts.
227 e 229 da Constituição Federal, e em princípios internacionais, como a Declaração
dos Direitos da Criança da ONU, de 1989.
Por seu turno, a responsabilidade civil também mudou estruturalmente. E o giro
conceitual, como bem sintetizou entre nós Orlando Gomes, foi de 180 graus, passando da
atenção exclusiva ao ato ilícito para a preocupação com o dano injusto, ou injustif‌icado.
1. Segundo Frank Pittman, Man Enough: fathers, sons and the search for masculinity, New York: G. P. Putnam’s Sons,
1993, p. 6: “Family life in Western society since the Old Testament has been a struggle to maintain patriarchy, male
domination, and double standards in the face of a natural drift towards monogamous bonding.”
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