Prefácio

AutorMafalda Miranda Barbosa
PáginasIII-IV
PREFÁCIO
Se na Idade Média o homem se compreendia por referência a Deus, paulatina-
mente, o sujeito é absolutizado como indivíduo. A Guerra dos 30 anos, pondo f‌im
à cristandade como organização político-teológica unif‌icada, herdeira do império
romano, dá origem à Europa moderna. A religião de cada região passa a ser a religião
do príncipe, transferindo-se o poder para a pessoa do rei, e a soberania passa a ser
reivindicada, primeiro, pelo soberano, depois pelo Estado e pelo povo, como fontes
últimas da autoridade política.1 Do ponto de vista jurídico, numa viagem diacrónica
muito rápida (talvez demasiado rápida), o direito natural deixa de fazer apelo a Deus,
para se centrar na reta razão do homem. A partir das características essenciais do ser
humano, deduzir-se-iam as regras jurídicas, formando sistemas completos e acabados
de direitos naturais. Estava-se no período do jusracionalismo, que desembocaria
nas primeiras grandes codif‌icações e constituiria um dos fatores de emergência do
positivismo. De facto, com o jusracionalismo, o direito converte-se num texto; e,
embora este tivesse um sentido declarativo e não constitutivo, como na fase posterior,
a ideia de que a juridicidade poderia ser capturada num corpo normativo def‌initi-
vo e completo serviu, do ponto de vista cultural, como fator propulsor do período
subsequente. O ambiente científ‌ico determinaria, concomitantemente, a procura da
cientif‌icidade, que seria aproveitada pelo contexto político advindo. Deixando de se
pressupor um direito natural, o jurídico é convertido num acervo de normas postas e
impostas pelo legislador; e, no quadro do conceptualismo germânico, o formalismo
kantiano haveria de fazer com que um pensamento que na sua génese era histórico
se transformasse em a-histórico, convergindo com a conceção exegética francesa
no método subsuntivo que protagonizavam. Com o triunfo do positivismo, a lei
deixou de encontrar um limite na ideia de justiça; e o mundo iria assistir ao eclodir
de ordens de direito, nas quais o direito estaria ausente. Na verdade, o positivismo
acabou por degenerar em formas de autoritarismo despótico contrárias ao mais
elementar sentido do justo.
Se o positivismo esteve na base das diversas formas de totalitarismo que o século
XX viveu, o pós-guerra impunha que se ultrapassassem as falácias de uma conceção
meramente formal de direito.2 À absoluta primazia da sociedade sobre as pessoas,
típica dos sistemas nazi e soviético, contrapõe-se a primazia absoluta dos indivíduos
sobre a sociedade, o que não deixa de comportar riscos, uma vez que pode conduzir
ao excesso oposto do individualismo, recusando a existência de uma noção de bem
comum, conduzindo “a uma dissolução da identidade social e ao abandono dos va-
1. Grégor
PuPPinck
, Os direitos do homem desnaturado, Princípia, Cascais, 2019, 21 s., que aqui seguimos de perto.
2. Grégor
PuPPinck
, Os direitos do homem desnaturado, 25.
EBOOK DIREITOS HUMANOS CONTEXTOS E PERSPECTIVAS.indb 3EBOOK DIREITOS HUMANOS CONTEXTOS E PERSPECTIVAS.indb 3 18/03/2022 16:08:1518/03/2022 16:08:15

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