O primado da Constituicao como fator de desenvolvimento das relacoes de producao capitalistas/The primacy of Constitution as a factor of development of the capitalists production relations.

AutorPalar, Juliana Vargas

Introducao

A doutrina constitucional classica considera a Constituicao como o principal conjunto de normas juridicas de um Estado de Direito. Ela seria a lei fundamental de um Estado, sendo responsavel por limitar e organizar o poder, distribuir as competencias, regular o exercicio de autoridade, dispor sobre a forma de governo, assim como afirmar os direitos e garantias da pessoa humana (SILVA, 2005).

Em razao de seu papel na composicao e no funcionamento da sociedade, alguns constitucionalistas como Kleber Couto Pinto (2013) e Paulo Bonavides (2004), apontam que toda e qualquer comunidade politica, independente do periodo historico, que possua regras organizativas do seu corpo social detem, no fim, uma Constituicao. Nessa perspectiva, a origem da Constituicao remonta a estruturacao do poder na sociedade.

Embora essa percepcao decorra da existencia de aspectos similares na organizacao politica de diversas comunidades ao longo da historia, nao se pode atribuir um conteudo univoco e atemporal a Constituicao. Afinal, essa expressao somente ganha forma, conteudo e sentido especificos a partir do seculo XVIII com as revolucoes liberais, em especial com a Revolucao Francesa, acontecimentos que marcam o advento do modo de producao capitalista, como adiante sera melhor explicado.

Nesse sentido, o conceito de Constituicao adquire uma nova roupagem. Anuncia-se a separacao do poder politico das classes sociais, de modo a evitar que ele seja exercido em prol de interesses economicos especificos. Ademais, indica-se um rol de direitos individuais, que nao podem ser violados pelas autoridades nem por particulares, que se consubstanciam na forma de direitos fundamentais, conforme explica Ingo Wolfgang Sarlet (2003).

Em razao desses novos atributos, torna-se essencial conceber a Constituicao como instrumento superior aos demais regulamentos normativos, pois, assim, todas as normas inferiores terao que respeitar e proteger os seus dispositivos. Consequentemente, ao reproduzir os seus preceitos, essas normas inferiores operarao a legitimacao do arranjo juridico-politico que toma forma com o advento do capitalismo.

Nessa perspectiva, a nocao do primado da Constituicao se forma em um contexto de advento do capitalismo. Portanto, insta o seguinte questionamento: como a concepcao da Constituicao como o principal conjunto de normas juridicas em um Estado de Direito se relaciona com e contribui para o desenvolvimento das relacoes de producao capitalistas?

Para responder essa questao, emprega-se o referencial teorico de matriz marxista. Enquanto a doutrina constitucional classica realiza uma leitura analitica, teleologica e linear da assimilacao da Constituicao como lei fundamental de um Estado, o arsenal conceptual marxista, principalmente a partir da contribuicao teorica de Evguieni Pachukanis (2017), possibilita compreender e questionar a especificidade que a Constituicao assume com o advento das relacoes de producao capitalistas, ao relacionala com as estruturas produtivas e suas formas sociais.

Ademais, Karl Marx foi um dos principais filosofos a estudar o funcionamento do capitalismo, apontando os mecanismos que amparam a reproducao das suas relacoes de producao e asseguram a sociabilidade burguesa. Assim, a compreensao da sua teoria permite situar, em uma perspectiva critica e holistica, o processo historico, politico e economico em que a Constituicao assume a posicao de superior hierarquica em um dado ordenamento juridico.

A teoria marxista e oportuna para correlacionar o primado da Constituicao com as relacoes de producao capitalistas nao tanto por causa da analise realizada por Karl Marx sobre o Direito, mas, principalmente, em razao do metodo legado por este filosofo: o metodo materialista historico dialetico.

E cedico que Marx nao construiu uma teoria do Direito, apenas realizou determinados incursos neste tema, principalmente em suas obras de juventude, como se pode conferir na coletanea de textos recentemente publicada sob o titulo "Os despossuidos" (2017). Todavia, seu metodo possibilita averiguar a relacao entre a forma juridica e o modo de producao capitalista.

Embora Marx nao tenha discorrido diretamente sobre o seu metodo, e possivel retirar os seus fundamentos a partir da leitura do conjunto de suas obras, principalmente de o livro "O Capital" (2013). Nele, Marx elenca a categoria mais simples e abstrata das relacoes de producao capitalistas--a mercadoria, a fim de analisar as relacoes sociais que estao incutidas nela e que se reproduzem a partir de sua existencia.

O metodo materialista historico dialetico busca conhecer, portanto, o objeto nao pela sua essencia, mas pela compreensao das relacoes sociais nas quais ele esta inserido. Dessa forma, o objeto e analisado a partir de uma perspectiva de totalidade, que nao se confunde com a simples soma das partes, mas que significa o conjunto de partes que, ao formarem um sistema, absorve a individualidade de cada um e os modifica.

No presente trabalho, o emprego deste metodo permite que a relacao entre o primado da Constituicao e as relacoes de producao capitalistas nao seja tracada somente a partir da analise das caracteristicas da Constituicao, isto e, pela sua essencia. Nao se trata de apontar como alguns atributos do modelo constitucional vigente sao pertinentes a sociabilidade burguesa, mas de demonstrar que a afirmacao destes atributos em um documento juridico considerado como a Lei Fundamental de um Estado esta intrinsicamente relacionada com o advento e desenvolvimento das relacoes de producao capitalistas.

O metodo materialista historico dialetico tambem e relevante para esta pesquisa, na medida em que ele rompe com uma analise historica de frente para tras. Nessa perspectiva, nao se busca germes ideais do modelo constitucional vigente no passado, como se houvesse uma evolucao progressiva na concepcao e estrutura da Constituicao. Pelo contrario, volta-se aos processos historicos com o intuito de demonstrar a especificidade que o conceito de Constituicao assume no modo de producao capitalista.

Como metodo de abordagem, portanto, dispoe-se do metodo dialetico. Atraves desse metodo, procede-se a escolha da Constituicao como objeto de estudo, com o intuito de averiguar em que ela consiste. Esse procedimento e realizado pela tentativa de demonstrar a contradicao fundamental que esse objeto guarda e as suas proprias especificidades. Dessa forma, aponta-se aquilo que precede ao desenvolvimento do conceito moderno de Constituicao, depois se assinala como esse conceito se apresenta atualmente para, por fim, constatar como ele sistematiza as circunstancias que o precedem, ao mesmo tempo em que se diferencia delas e as supera.

Ja como metodo de procedimento, utiliza-se o metodo de procedimento historico. Afinal, somente com uma investigacao sobre as variacoes no conceito de Constituicao, torna-se possivel ressalvar as peculiaridades que esse conceito assume com o advento do modo de producao capitalista. Por fim, como tecnica de pesquisa, aplica-se a tecnica de pesquisa bibliografica.

O artigo estrutura-se em duas partes: na primeira, verifica-se como a doutrina constitucional classica compreende a Constituicao e quais os seus fundamentos. Em seguida, promove-se uma ruptura com essa abordagem, ao relacionar essa concepcao com a producao da vida material e as relacoes sociais que a constituem.

O metodo dialetico se manifesta na estrutura do artigo, na medida em que, em um primeiro momento, procede-se a identificacao do objeto a partir de um movimento de exterioridade. Nessa abordagem, o conceito de Constituicao e dado a partir de uma analise de como a organizacao do Poder ocorreu historicamente em determinadas sociedades ocidentais. Ja, na segunda parte do artigo, realiza-se uma busca do exterior ao interior, ou seja, debruca-se sobre as categorias estruturantes da Lei Fundamental de um Estado, a fim de se construir uma analise sobre as suas especificidades e contradicoes. E, ao sistematizar o desenvolvimento das circunstancias que presidem o objeto com a sua individualidade no todo social estruturado, chega-se a um conceito fundado na totalidade concreta.

Cumpre ressaltar que, para Marx, o conhecimento e comprovado atraves da praxis (MARX, 1982). Em razao disso, o presente artigo realiza breves consideracoes acerca da Constituicao da Republica Federativa do Brasil de 1988, a fim de demonstrar como a concepcao do primado da Constituicao se relaciona com e contribui para o desenvolvimento das relacoes de producao capitalistas neste pais. Contudo, em razao da complexidade do assunto, nao e possivel realizar uma abordagem mais aprofundada acerca das aplicacoes praticas do conhecimento construido no presente artigo, pois tal aplicacao demandaria uma pesquisa mais extensa.

O objetivo do presente artigo e, a partir do referencial teorico de matriz marxista, realizar uma incursao teorica acerca da relacao entre o primado da Constituicao e as relacoes de producao capitalistas, bem como averiguar a contribuicao dessa concepcao para a reproducao destas relacoes. Apontando-se os fatores primordiais que interligam esses fenomenos, a abordagem aqui realizada pode proporcionar uma nova leitura sobre o papel de uma Constituicao em uma sociedade capitalista e orientar estudos especificos acerca do ordenamento juridico de cada Estado.

1 A Constituicao como lei fundamental de um Estado de Direito

A compreensao da Constituicao como o ordenamento supremo de um Estado de Direito e uma nocao incutida na sociedade atual. Essa percepcao e amparada pela doutrina constitucional classica. Nessa senda, a Constituicao e considerada como o conjunto de normas juridicas, escritas ou costumeiras (1), que estabelecem a forma de governo, o modo de aquisicao e exercicio do poder, que limitam as acoes estatais e, alem disso, afirmam os direitos fundamentais e as garantias da pessoa humana (SILVA, 2005).

Esse conceito pode ser situado sob duas formas: do ponto de vista politico e atraves de um...

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