Prostitui

AutorRodrigues, Marlene Teixeira

Apontamentos introdutórios

São apresentadas neste texto algumas reflexões acerca das questões trazidas pela Covid-19 referentes à prostituição, às pessoas que sobrevivem dessa ocupação e às organizações de defesa de direitos de prostitutas. Em um contexto marcado pela ascensão neoconservadora (1), analisamos os temas e as ações encampados pelas entidades que integram o Movimento Brasileiro de Prostituta (2) para o enfrentamento da pandemia e a garantia de direitos. Para efeitos de organização da apresentação, após estes apontamentos iniciais, são discutidas as principais vertentes presentes no debate teórico atual sobre prostituição e que servem de referencial no exame das referidas iniciativas. Em continuação, se examina a atuação de setores neoconservadores ligados ao fundamentalismo religioso e ao feminismo abolicionista direcionada ao combate à prostituição. Finalmente, voltamos a atenção para as estratégias e iniciativas adotadas pelo movimento ante os desafios colocados no contexto da pandemia.

De início vale assinalar que a prostituição se insere dentro da diversidade de trabalhos sexuais que integram a indústria do sexo. (3) A prostituição é entendida, pois, como uma das modalidades de trabalho sexual, compondo a complexa e diversificada indústria do sexo, e engloba diferentes formas de organização. Refere-se ao "campo amplo do complexo afetivosexual em que múltiplas formas de troca são registradas para atender às necessidades humanas de afeto, cuidado pessoais e relações sexuais"--nas palavras de Laura Agustín (2002, p. 534--tradução nossa)-, e envolve valores monetários ou outros valores. (4) É importante atentar para a existência de diferentes modalidades de prostituição e suas dinâmicas específicas, dentro da indústria sexual; conforme assinalado por Cristina Garaizabal (2006, p. 66--tradução nossa):

Há diferentes maneiras de exercê-la e vivê-la. Classe social, nível cul- tural, idade, aparência física, nacionalidade, etnia, gênero (porque nem todas as pessoas que exercem prostituição são mulheres; há ho- mens assim como mulheres transgêneros), e muitos outros fatores in- fluenciam como a prostituição é exercida e até mesmo como a sociedade considera a prostituição. Embora o estigma em relação à prostituição não tenha cessado, no último quarto do século XX "a criação de "espaços práticos e intelectuais para as vozes das mulheres prostitutas", decorrente do surgimento dos referidos movimentos, constitui elemento distintivo desse período" (SCAM-BLER; SCAMBLER, 1997 apud TEIXEIRA, 2003, p. 110). Esse novo cenário, entretanto, não foi capaz de obstaculizar a utilização, ainda hoje, do termo prostituição em nossa sociedade para referir-se a condutas sexuais diversas da acima mencionada como atos de prostituição. Isso revela o conteúdo moral e o estigma que ainda cercam a atividade e a importância dos modos de percepção na definição social dela (AGUSTIN, 2002; 2008a; 2008b; JULIANO, 2002; 2006). Mais recentemente, o revigoramento do discurso conservador e de valores tradicionais tem confrontado o culto ao hiperindivi-dualismo hedonista. É neste cenário que se assiste ao recrudescimento das tensões e ao surgimento de novas inflexões que impactam diretamente o campo da prostituição. Simultaneamente, observa-se a discriminação e a exclusão dos sujeitos e das práticas concretas, desencadeadas em diferentes cidades e países, concomitante à expansão e à diversificação da indústria do sexo, bem como à naturalização da prostituição e de práticas "virtuais" (AGUIAR, 2017; AGUSTÍN, 2008b; JULIANO, 2006; 2012; TEIXEIRA, 2017).

Este é o cenário em que se dá a reação neoconservadora e em que se observa o início das "guerras sexuais" no Brasil, impactando diretamente trabalhadoras/es sexuais e suas organizações. Antes de examinar o quadro delineado a partir da chegada da pandemia, já sob o governo Bolsonaro, tratemos de analisar mais detidamente os termos em que está construído o debate teórico.

Entre a exploração e a autodeterminação--trabalho sexual em tempo de pânicos sexuais

Veremos nesta seção as principais tendências no debate contemporâneo em torno da prostituição/trabalho sexual identificadas na revisão bibliográfica realizada. Inicialmente vale assinalar a persistência de perspectivas antagónicas sobre a temática, inclusive dentro do próprio feminismo. Além disso, destaca-se a contestação da perspectiva da autodeterminação (5) por abordagens alinhadas ao abolicionismo e ao regulamentarismo (6), que reemergiram com ímpeto renovado no bojo da ascensão da chamada "nova direita" (7) e do neoconservadorismo. Essa tendência revela a emergência de "um novo tipo de capitalismo global", cuja dinâmica, marcada pela extração e destruição, produz novos e velhos tipos de "expulsões", que atingem indistintamente nações "ricas" e pobres, ainda que estas últimas com intensidade muito superior (SASSEN, 2016).

Essa "nova forma de vida", engendrada pelo "capitalismo flexível" e pela ideologia neoliberal, tem como principais características conforme Marilena Chauí (1997, p. 32): a insegurança, o medo, a dispersão e "o sentimento do efêmero e da destruição da memória objetiva dos espaços". Essas condições, segundo a autora, impulsionam a aplicação no mercado futuro, a financeirização, a busca por "uma autoridade política forte, com perfil despótico" e o fortalecimento de "instituições, sobretudo a família, e o retorno ao das formas místicas e autoritárias ou fundamentalistas de religião", assim como a valorização de "suportes subjetivos da memória (diários, biografias, fotografias, objetos)", bem como a ascensão do conservadorismo.

"Nova direita", "onda neoconservadora" ou ainda "trumpização da política"--segundo Esther Solano (2018, p. 3), essas são algumas das terminologias que têm sido utilizadas para referir-se a processos de "reorganização de grupos conservadores e/ou da direita radicalizada que tem abrangência mundial e, como não poderia ser diferente, com fortes reflexos no Brasil". O neoconservadorismo, alçado ao topo no governo de W. Bush, é a base ideológica dessa "nova direita", de acordo com Kristol (Kristol apud FINGUERUT, 2008). Defende "um Estado mais forte, porém com menos impostos"; uma política externa de defesa do patriotismo e no rechaço a "um governo mundial", por entender que este resultaria em "tirania generalizada"; e na adoção de uma política interna pautada em "distinguir amigos de inimigos" (p. 20).

À medida que avança o século XXI, assiste-se ao fortalecimento, na Europa, nos EUA e na América Latina, desses discursos neoconservadores e de organizações na esfera da nova direita, que apelam fortemente à xenofobia, ao racismo, ao sexismo e a outras bandeiras "segregacionistas". As "guerras sexuais" merecem especial atenção nesta conjuntura. Essas "guerras", assim como aquelas levadas a cabo pela direita norte-americana dos Estados Unidos a partir da década de 1970, destaca Gayle Rubin (1989), têm como alicerce o "pânico sexual" e o "terror erótico". Representam "alterações de longo alcance na regulação do comportamento sexual e revogam importantes liberdades civis" (RUBIN, 1989, p. 123). É uma "contra-ofensiva sexual à direita", em reação aos avanços na liberalização sexual promovidos pelo movimento feminista, em que o pânico moral tem centralidade. (AGUSTÍN, 2008b; BUTLER, 2015; FINGUERUT, 2008; JULIANO, 2012; SASSEN, 2016; SOLANO, 2018). O pânico moral, assinala Rubin (1989, p. 159),

cristaliza medos e ansiedades generalizadas e muitas vezes os confronta, sem olhar para as causas reais dos problemas e características que mostram, mas movendo-os para os 'tipos diabólicos de um determinado grupo social (muitas vezes imoral 'Ou os degenerados')'. A sexualidade desempenhou um papel particularmente importante em tais pânicos e 'os...

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