Questão racial e formação profissional em Serviço Social na era neoliberal: desafios internos e externos à categoria/The race question and professional training in social work in the neoliberal era: internal and external challenges to the category.
Autor | dos Santos Mascarenhas, Naiara Cardoso |
Introdução
Temos visto um crescimento significativo da discussão acerca das desigualdades raciais na sociedade brasileira como fruto da atuação polÃÂtica e cultural do movimento negro organizado, que desde o inÃÂcio do século XX aponta a ausência de pessoas negras em espaços decisórios, na representação polÃÂtica, na mÃÂdia, nas universidades e nos setores estratégicos da economia.
Porém, é perceptÃÂvel que essa discussão tem ganhado mais notoriedade em cÃÂrculos liberais (grande mÃÂdia e pensadores pós-modernos) do que nos espaços mais crÃÂticos vinculados àconcepção materialista-histórica e dialética, a mais influente no Serviço Social. Essa constatação aponta para um cenário polÃÂtico contraditório e complexo, uma vez que o debate da questão racial tem sido apropriado por segmentos e grupos pouco comprometidos com a verdadeira superação do racismo: os defensores do capital.
Nessa disputa, é imprescindÃÂvel que o campo do Serviço Social assuma esse desafio de forma mais robusta e que possa se colocar como uma área do conhecimento expressiva na contribuição teórica e polÃÂtica do combate ao racismo. Isso porque se entende que o Serviço Social só terá alcançado sua maturidade intelectual e polÃÂtica, plenamente, quando conseguir compreender e expressar em suas intervenções a relação dialética existente entre raça, classe e gênero.
à famosa a afirmação da pensadora marxista estadunidense Ãngela Davis que diz que "numa sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista". Tomamos essa máxima da autora para pensarmos em como a invisibilidade da discussão racial no Serviço Social tem consequência polÃÂtica e contribui para a manutenção do racismo, enquanto não se reflete essa opressão como ponto fundamental para se entender as relações sociais do Brasil e, assim, pensar intervenções profissionais qualificadas, direta e indiretamente, no âmbito das polÃÂticas sociais.
Desse modo, no presente trabalho analisaremos o potencial embutido na formação profissional do Serviço Social no sentido de contribuir com as discussões antirracistas e assim avançar na consolidação do Projeto Ãtico-PolÃÂtico verdadeiramente comprometido com a liberdade e autonomia dos sujeitos sociais. Além disso, discutimos os pontos principais que julgamos ser relevantes para compreensão da real materialização--ou não--de um projeto de profissão antirracista, tendo em vista sua aproximação com o marxismo e também sua inserção num paÃÂs cuja elite burguesa pretendeu invisibilizar suas contradições sociais a partir da difusão do mito da democracia racial. Assim, na primeira parte localizamos o Serviço Social e a discussão racial na formação profissional, e na segunda parte buscamos apontar a necessidade da consolidação do debate racial no Serviço Social como forma de construção e fortalecimento de um projeto de formação profissional antirracista e que, desse modo, possa contribuir com a superação do racismo e demais formas de opressão.
Formação profissional também como espaço de luta e resistência
à bem conhecido entre a categoria, a partir de significativa produção teórica, o processo de surgimento, desenvolvimento e consolidação do Serviço Social no Brasil. Considerando as particularidades que envolvem o surgimento da industrialização, o movimento operário e a consolidação da classe burguesa em nosso paÃÂs, é possÃÂvel pensar os dilemas enfrentados por assistentes sociais vanguardistas no pensamento crÃÂtico e contestatório, durante o movimento de intenção de ruptura com o conservadorismo iniciado na década de 1960. Essas/es assistentes sociais buscaram, em plena ditadura militar, emergir e firmar nosso Projeto Ãtico-PolÃÂtico (1), que hoje é expresso nos principais documentos normativos da profissão: Código de Ãtica de 1993, Lei de Regulamentação Profissional de 1993 e Diretrizes Curriculares da Associação Brasileira de Ensino Pesquisa em Serviço Social (Abepss) de 1996.
Através da convergência de interesses entre Estado capitalista e Igreja católica, no inÃÂcio do século XX, surge na realidade brasileira a ampliação da profissionalização do Serviço Social, inicialmente integrada às instituições religiosas visando ao controle e doutrinação das massas operárias, que eram vistas como presas fáceis aos movimentos revolucionários pujantes na Europa (IAMAMOTO; CARVALHO, 1982).
Mas cabe salientar que o perÃÂodo em que emerge o Serviço Social e também o inÃÂcio de sua profissionalização, a primeira metade do século XX, coincide com o perÃÂodo da vigência de estudos e pensamentos eugenistas que, segundo Bolsanello (1996), buscavam planejar o progresso econômico e cultural do Brasil a partir da eliminação do povo negro, os ex-escravizados da nação. Podemos inferir que o Serviço Social, nesse sentido, tinha sua ação pautada no conservadorismo e racismo, uma vez que sua atuação era plasmada por forte teor ideopolÃÂtico junto às massas. Além disso, o processo de difusão e propaganda das ideias eugenistas junto ao Estado era eminente, demandando institucionalmente ações profissionais nesse viés junto àsociedade civil. Porém, ainda faltam muitos estudos que analisem com maior profundidade a contribuição do Serviço Social dessa época ao racismo cientÃÂfico caracterÃÂstico da Primeira República (2).
Apesar de toda conquista e maturação polÃÂtica e intelectual do Serviço Social rumo àconstrução e consolidação do Projeto Ãtico-PolÃÂtico Profissional que aponte para uma nova ordem societária, vemos que no seio da profissão ainda são presentes expressões do conservadorismo, tanto nas análises, quanto nas intervenções na realidade. Para o Boschetti (2015), o conservadorismo no Serviço Social nunca foi totalmente superado, tendo em vista que ainda vivemos e atuamos numa sociedade capitalista, essencialmente conservadora e, portanto, produtora de subjetividades também adestradas a esse modelo de sociedade.
Mesmo com as limitações impostas pelas determinações macrossociais, entendemos como possÃÂvel e necessária a permanente defesa e manutenção da hegemonia do pensamento crÃÂtico no Serviço Social a partir da qualificação da formação e do exercÃÂcio profissional. Nessa linha, acreditamos que o processo de construção do Projeto Ãtico-PolÃÂtico da profissão na atualidade precisa assumir o debate racial como elemento estruturante das sociedades latino-caribenhas e, portanto, como expressão fundamental a ser transformada no processo de ruptura com a ordem, tão preconizado pela corrente de pensamento que norteia a práxis profissional, a marxista.
Como iniciativa da categoria em seguir a luta pela transformação social, temos as Diretrizes Curriculares da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (Abepss), que foram criadas em 1996 após longo debate entre diversas/os assistentes sociais. Pautava-se a construção de um novo modelo de formação que garantisse a construção de um perfil profissional crÃÂtico, generalista e conhecedor da particularidade da formação social brasileira (ABEPSS, 1996).
Buscando fugir do caráter fragmentário e segmentado de abordagem de conteúdos na formação universitária, tÃÂpico do modelo burguês de concepção de conhecimento, o Serviço Social, por meio da Abepss, visou construir suas diretrizes baseado na concepção de totalidade e indissociabilidade do conhecimento, e assim estruturou-a em três núcleos centrais, imprescindÃÂveis para a real análise da realidade que circunscreve a atuação profissional (ABEPSS, 1996). O primeiro núcleo diz respeito àvida social na totalidade; o segundo se refere àparticularidade da formação social brasileira; e o terceiro coloca o debate da profissão e sua articulação com a totalidade social. Desse modo, entendemos que o debate étnico-racial como elemento importante das relações sociais baseadas em classe, sobretudo nas Américas, perpassa esses três núcleos e possui posição estratégica na articulação de um saber crÃÂtico, propositivo e transformador da realidade em que atuam os/as assistentes sociais.
Behring e Boschetti (2016) afirmam que toda análise das relações sociais e processos que envolvam a atividade humana é carregada de teor polÃÂtico calcado em projetos de disputa societária, apesar de algumas matrizes teóricas...
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