Racismo e a Logica do Capital: Uma Reconsideracao Fanoniana/Racism and the Logic of Capital: A Fanonian Reconsideration.

AutorHudis, Peter

I

O surgimento de uma nova geracao de ativistas e pensadores antirracistas que combatem o abuso policial, o complexo industrial prisional e o racismo enraizado nos EUA, juntamente com a crise sobre a imigracao e o crescimento do populismo de direita na Europa e em outros lugares, torna este um momento crucial para desenvolver perspectivas teoricas que conceitualizam raca e racismo como parte integrante do capitalismo, indo alem da politica de identidade que trata essas questoes principalmente em termos culturais e discursivos. As ultimas decadas produziram uma serie de estudos marxistas importantes sobre a logica do capital, bem como inumeras investigacoes de teoricos pos-coloniais sobre as narrativas que estruturam a discriminacao racial e etnica. Com muita frequencia, no entanto, essas duas correntes assumiram trajetorias diferentes ou ate opostas, tornando ainda mais dificil a superacao de analises unilaterais reducionistas sobre a classe e de afirmacoes de identidade igualmente unilaterais que ignoram ou se desviam da classe. A luz da nova realidade produzida pela profunda crise do neoliberalismo e pela iminente desintegracao da ordem politica que definiu o capitalismo global desde o final da Guerra Fria, chegou a hora de revisar abordagens teoricas que podem ajudar a delinear a integralidade da raca, da classe e do capitalismo.

Poucos pensadores sao mais importantes nesse aspecto do que Frantz Fanon, amplamente considerado um dos autores mais criativos do seculo XX no que tange a raca, ao racismo e a consciencia nacional. O esforco de Fanon para "distender ligeiramente" (como ele dizia) "as analises marxistas (...) cada vez que abordamos o problema colonial" (1) representou uma tentativa importante de elaborar a dialetica de raca e classe por meio de uma estrutura teorica coerente que nao dissolvesse uma na outra. Isso pode ajudar a explicar o atual ressurgimento do interesse em seu trabalho. Pelo menos cinco novos livros sobre Fanon foram publicados em ingles nos ultimos dois anos (2) - alem de uma nova colecao de 600 paginas em frances de seus escritos ineditos ou indisponiveis sobre psiquiatria, politica e literatura (3). Embora Fanon tenha permanecido como uma forte referencia por decadas, e impressionante a extensao desse verdadeiro renascimento do interesse em seu pensamento. Isso tambem pode ser percebido nas muitas vezes em que suas palavras apareceram em posteres, panfletos e midias sociais durante o ano passado, atraves daqueles que protestavam contra o abuso policial, o sistema de injustica criminal e o racismo dentro e fora dos campi das universidades (4).

Estas redescobertas constantes do trabalho de Fanon marcam uma ruptura radical com o teor dos debates entre os teoricos pos-coloniais ao longo das ultimas decadas - quando o assunto predominante parecia ser se ele era ou nao um "prematuro pos-estruturalista" (5). Se alguem se limitar a tais discussoes academicas, pode sair pensando que a validade do corpo de trabalho de Fanon se baseia na extensao em que ele conseguiu desconstruir a unidade do sujeito colonial em nome da alteridade e da diferenca (6). No entanto, essas abordagens - algumas das quais chegaram ao ponto de afirmar ate mesmo a discussao sobre o capitalismo ou sobre sua logica unitaria como uma capitulacao ao imperialismo epistemico - nao poderiam estar mais longe dos motivos que impulsionam a renovacao do interesse no legado de Fanon hoje (7).

O que torna o trabalho de Fanon especialmente convincente e que o capitalismo contemporaneo esta manifestando algumas das expressoes mais flagrantes de animosidade racial que vimos em decadas. E preciso apenas observar os ataques a imigrantes de cor nos EUA e na Europa, o renascimento do populismo de direita e, acima de tudo, a ascensao de Donald Trump a presidencia dos EUA. Isso levanta a questao de porque existe um ressurgimento do animus racial neste momento. Pelo menos parte da resposta e o trabalho de grupos como Black Lives Matter, Black Youth Project 100 e muitos outros que, ao se envolverem na politica a partir de uma "lente feminista-negra-queer", jogam luz sobre as questoes raciais de forma tao criativa quanto o movimento Occupy fez em relacao a desigualdade economica (8). Em reacao, um setor da sociedade burguesa decidiu abandonar a mascara da civilidade e reafirmar abertamente as prerrogativas da dominacao masculina branca. O "Whitelash" (9) esta no banco do motorista - e nao so nos EUA. Isso nao deve surpreender, uma vez que as forcas conservadoras sempre reagem quando um novo desafio a seu dominio comeca a surgir.

O crescimento de contestacoes reacionarias ao neoliberalismo nao esta desconectado deste fenomeno. Ele exige uma seria reorganizacao do pensamento, uma vez que muitos concentraram tanta atencao na critica ao neoliberalismo que pouco tiveram a dizer sobre a logica do capital como um todo. Frequentemente se esquece que o neoliberalismo e apenas uma estrategia empregada pelo capitalismo em um ponto particular no tempo - como foi o keynesianismo em um ponto anterior. E, assim como o keynesianismo foi descartado quando deixou de cumprir seu proposito, o mesmo pode acontecer com o neoliberalismo hoje. O que derrubou o projeto keynesiano foi a crise de rentabilidade enfrentada pelo capital global na decada de 1970. Os capitalistas responderam adotando o estratagema neoliberal como um meio de restaurar a lucratividade. Isso fez todo o sentido do seu ponto de vista, uma vez que e a rentabilidade - nao a demanda efetiva- que em ultima analise determina o curso do desenvolvimento da sociedade capitalista (10). As taxas de lucro aumentaram desde o inicio dos anos 1980 a 2000, uma vez que as forcas da concorrencia global, do livre comercio e da privatizacao foram liberadas, mas a maioria desses ganhos ocorreu no setor imobiliario e financeiro - onde a lucratividade do setor produtivo permaneceu em niveis historicamente baixos. E como grande parte do lucro do setor imobiliario e da financeirizacao nao foi investido na economia real, houve um declinio, nas ultimas decadas, na taxa de crescimento da produtividade do trabalho (11). Isso pelo menos em parte explica a taxa anemica de crescimento da economia mundial hoje, que esta causando tanta angustia - nao apenas entre os mais negativamente afetados por ela, mas tambem em setores da classe dominante que reconhecem cada vez mais que o "milagre" neoliberal provou ser como uma miragem.

Em muitos aspectos, isso estabeleceu o terreno para Trump. Sua vitoria eleitoral (por mais pirrica que possa vir a ser) e um sinal de que um setor significativo da direita encontrou uma maneira de falar com segmentos descontentes da classe trabalhadora, lancando criticas ao neoliberalismo em termos racistas e misoginos - assegurando, ao mesmo tempo, que o capitalismo permanecesse inquestionavel. Portanto, a oposicao a essas tendencias deve comecar e terminar com uma rejeicao firme e intransigente de qualquer programa, tendencia ou iniciativa que, de qualquer maneira ou forma, faca parte ou corresponda - nao importa quao indiretamente - a sentimentos racistas e/ou anti-imigrantes. Qualquer outra abordagem tornara mais dificil distinguir uma critica genuina da desigualdade de classe, do livre comercio e da globalizacao das criticas reacionarias.

Por essa razao, manter a critica do neoliberalismo como ponto crucial da oposicao anticapitalista nao faz mais sentido. Em vez disso, e necessario um ataque explicito ao nucleo interno do capitalismo - sua logica de acumulacao e alienacao que esta inextricavelmente ligada ao aumento do valor como um fim em si mesmo. E o racismo e parte integrante do impulso do capital em se auto-expandir.

O capitalismo surgiu primeiramente como um sistema mundial atraves do racismo antinegro gerado pelo comercio transatlantico de escravos, e desde entao dependeu do racismo para garantir sua perpetracao e reproducao (12). Marx argumentou:

A escravidao e uma categoria economica como qualquer outra (...) esclarecendo naturalmente que se trata apenas da escravidao direta, a dos negros no Suriname, no Brasil, nas regioes meridionais da America do Norte. A escravidao direta e o eixo da industria burguesa, assim como as maquinas, o credito, etc. Sem a escravidao, nao teriamos o algodao; sem o algodao, nao teriamos a industria moderna. A escravidao deu valor as colonias, as colonias criaram o comercio universal, o comercio universal e a condicao da grande industria. Assim, a escravidao e uma categoria economica da mais alta importancia. (13) Marx estava claramente ciente do papel peculiar desempenhado pela raca na escravidao americana - e nao estava menos consciente do quao a escravidao baseada na raca era integrada as origens e ao desenvolvimento do capitalismo como um sistema mundial. Mas isso significa que o racismo integra a logica do capital? O racismo pode ser um mero fator exogeno que e construido apenas em momentos especificos da historia contingente do capitalismo? Certamente, e possivel conceber a possibilidade de o capitalismo ter surgido e se desenvolvido como um sistema mundial sem a utilizacao da raca e do racismo. Mas o materialismo historico nao se preocupa com o que poderia ter ocorrido, mas com o que ocorreu e continua a ocorrer. Segundo Marx, sem a escravidao baseada na raca "nao ha industria moderna", "comercio mundial" - e nem capitalismo moderno. Portanto, a logica do capital e, em muitos aspectos, inseparavel de seu desenvolvimento historico. Refiro-me nao apenas aos fatores que levaram a formacao do mercado mundial, mas ao papel da raca e do racismo em impedir a consciencia de classe proletaria, que funcionou como um componente essencial para permitir a atualizacao da acumulacao de capital. Marx estava profundamente ciente disso, como pode ser visto em seus escritos sobre a Guerra Civil dos EUA e o impacto do preconceito anti-irlandes sobre o movimento dos trabalhadores ingleses (14). Ele se deu ao trabalho de abordar essas questoes no proprio O...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT