Recording the history of workers' health in Brazil: notes on its emergence and building/ Registrando a historia da Saude do Trabalhador no Brasil: notas sobre sua emergencia e constituicao.

AutorTambellini, Anamaria Testa
CargoDossie Trabalho, Saude e Ambiente

Introducao

A experiencia brasileira acerca do conhecimento e intervencao sobre as relacoes estabelecidas entre a Producao, o Ambiente e a Saude (P/ A/S), considerado um campo de praticas situado em territorio relativamente delimitado no interior da Saude Coletiva, e recente no pais. Este campo se desenvolveu a partir das analises criticas a Medicina Preventiva e Saude Publica Tradicional que foram realizadas pelos proprios trabalhadores dessas areas, em processo iniciado nos fins dos anos 1960.

A ideia que presidiu o entendimento da questao especifica das relacoes P/A/S se aglutinou em torno de relacoes moduladas por objetos e margens de varias disciplinas e tecnicas baseadas no conhecimento cientifico, aliada a necessidades concretas de pensar e agir, tendo em vista a saude das populacoes e de determinados grupos sociais no interior da "sociedades capitalistas subdesenvolvidas". E possivel, entao, dizer que esse entendimento, do ponto de vista do conhecimento cientifico, colocava a necessidade de rediscutir as nocoes de "determinacao" e de "causa" utilizadas pela Medicina e pela Epidemiologia, como tambem advogar a necessidade de se estabelecer estudos que lancassem mao da inter e transdisciplinaridade. Ao mesmo tempo, foram elaboradas propostas de atuacao alternativas e avancadas em forma e conteudo para a visao, entao, hegemonica e corrente da Saude Publica.

Em seus momentos iniciais, as relacoes conformadas no tripe conceituai que hoje define o campo, foram estabelecidas por pares relacionais. A primeira relacao que aparece problematizada e a do par "Saude/Trabalho" que enunciava problemas epistemicos (TAMBELLINI, 2002), teoricos e da propria intervencao concreta na realidade sanitaria. Esta relacao considerada primitiva, que trazia em si varios impulsos e origens, explicitou, porque imediatamente visivel, a ponta de uma problematica que depois iria se complexificar e se desenvolver no sentido de sua atual identidade.

Para entender este processo de vira ser, torna-se necessario refazer um percurso historico que se estendera de 1969, ano em que se concretizam as primeiras manifestacoes criticas as formas de cuidados preventivos a saude vigentes no pais e para as quais existe documentacao disponivel (DEPARTAMENTO DE MEDICINA PREVENTIVA E SOCIAL. FACULDADE DE CIENCIAS MEDICAS. UNICAMP, 1969-1974), ate o ano de 1988, quando se reescreve e e aprovada democraticamente uma nova Constituicao para o Brasil, na qual a saude dos trabalhadores e reconhecida como elemento a fazer parte dos direitos a saude e de seu respectivo sistema.

Pretende-se, neste artigo, nomear algumas categorias e pertinencias teoricas e historicas que, nos diversos momentos, foram razoes e valores centrais na origem de determinadas propostas e nos tipos de relacoes subentendidas na relacao principal visivel: saude/trabalho, bem como os avancos na concretizacao de propostas que contribuiram para o estabelecimento e desenvolvimento deste campo entre nos. Esse periodo inicial pode ser caracterizado por dois momentos: o primeiro, que vai de 1969 ate 1979, quando no campo politico o acidente de trabalho era considerado uma questao de seguranca nacional e, no plano da saude, se caracterizava por tentativas persistentes de legitimacao da area como parte da Saude Coletiva. O segundo momento, que vai de 1980 a 1988, quando ja se torna evidente a articulacao de forcas sociais na defesa da democracia e contra a ditadura, em que ficam patentes a presenca e importancia da relacao trabalho/saude nas discussoes que envolviam a questao saude, como tambem essa relacao passa a ser elemento reconhecido nas articulacoes politicas do movimento de redemocratizacao do pais, principalmente, no que se refere a luta pela saude do trabalhador, o que contribuiu para aproximacao dos sindicatos de trabalhadores com o Movimento da Reforma Sanitaria.

Por outro lado, se decidiu tambem trabalhar com documentos nao publicados que pudessem dar conta do tipo de inquietacao, dos desafios e obstaculos que tiveram que ser superados para que fosse possivel algumas das conquistas desta area. (1) Esses documentos devem ser vistos como elementos pedagogicos de um projeto que tinha como principal objetivo reconhecer a saude, enquanto direito coletivo e individual, como campo de conhecimento e area de intervencao, por meio de cuidados integrais e como elemento privilegiado de politicas publicas, a servico da classe trabalhadora.

Periodo de 1969-1979: fase de criticas e reconhecimentos de posicoes (periodo no qual predomina o debate academico sobre as questoes da saude)

Um primeiro aspecto que deve ser apontado e o da origem e procedencia da ideia da relacao Trabalho e Saude que nasceu e se desenvolveu dadas as possibilidades de elaborar uma nova visao de saude, gestada de forma peculiar em varias formacoes sociais/paises de diferentes regioes do continente neste mesmo periodo (final da decada de sessenta). Essa visao possibilitou que novas propostas viessem a luz, a partir de reflexoes e consideracoes criticas, que colocavam frente a frente realidades de saude vividas e expressas cientificamente por indicadores sanitarios, economicos e sociais em consonancia com as teorias (universais e hegemonicas) cientificamente aceitas e com as politicas e praticas de intervencao baseadas em tais conhecimentos e localmente aplicadas. A falencia em explicar esta nossa realidade e prever seus desdobramentos, bem como a incapacidade de construir instrumentos e tecnicas de intervencao adequadas e eficazes para os problemas existentes foram elementos de peso no convencimento de que se deveria procurar novas formas e conteudos para entender a saude.

Na chegada dos anos 60, podia-se perceber que as premissas de prosperidade e melhores condicoes de vida que os planos governamentais alardeavam nao estavam se concretizando e que as teorias que vinham tentando explicar esta realidade economico/social nao a penetravam.Todo o quadro se agravou quando o pais, apos um periodo de grandes lutas politicas e tensoes, sucumbiu ao poder autoritario da ditadura militar iniciada com o golpe de 64. A partir de entao houve uma busca persistente por alternativas de explicacao dos acontecimentos e processos sociais e politicos vividos nacionalmente e que, dali por diante, irao ficar cada vez mais articulados, embora mantendo feicoes particulares, de acordo com as especificidades das diferentes formacoes sociais, em outros paises do continente sulamericano. (TAMBELLINI, 2002, p.25).

O processo que levou a construcao de possibilidades alternativas para pensar a saude em suas varias dimensoes assumiu a forma de um pensamento critico e criativo, dada a impossibilidade da acao politica em um pais em que ja nao se dispunha de liberdades civis e onde os processos repressivos se faziam sentir em todas as instancias da vida publica e privada dos cidadaos. Essa critica, em um primeiro momento, nao nasceu da reflexao propriamente dita, nem da epistemologia. Ela foi uma critica politica: considerava-se a existencia de uma crise no sistema de saude, onde a falta de resolutividade das propostas procedia, em parte, do modelo cientifico adotado e grandemente dos pressupostos politicos liberais que orientavam as decisoes sobre e no interior do sistema de saude. Assim, aliou-se a essa critica que expunha a area da saude como um todo, uma atitude propositiva de alternativas, elaborada a esquerda por militantes politicos e grupos academicos e de profissionais de oposicao ao totalitarismo e a ditadura militar, que ambicionavam a restauracao das liberdades democraticas do pais e que julgavam ser a saude um dos direitos fundamentais dos povos.

Resumindo, atravessou-se um processo de construcao pleno de desafios teoricos e tecnicos que se autoalimentava continuamente. A primeira fase do processo, iniciada no final da decada de 1960, estendeu-se pelos anos 1970 quando, dadas as condicoes necessarias, iniciou-se o processo de analise critica dos pressupostos teoricos do campo da Saude Publica e Medicina Preventiva atraves de 10 encontros realizados no Estado de Sao Paulo pelos docentes de Medicina Preventiva das universidades locais (DEPARTAMENTO DE MEDICINA PREVENTIVA E SOCIAL, 1969-1974), que trataram dos objetivos e missao desta disciplina, dos temas e metodologias das pesquisas, dos programas docentes e de servicos. Tais encontros foram realizados durante o periodo de 1969 a 1973 e seu resultado final se encontra sintetizado no texto denominado "Documentos Basicos" de 1974 (DEPARTAMENTO DE MEDICINA PREVENTIVA E SOCIAL, 1974).

O conteudo dos encontros era visto e analisado a partir de dimensoes propiciadas pelas disciplinas cientificas basicas tanto para a Saude Publica quanto para a Medicina Preventiva, quais sejam: Epidemiologia, Planejamento e Administracao e Saneamento Basico. Foi incluida tambem a dimensao das Ciencias Sociais, campo ainda incipiente na Saude. Essa analise foi a base para a construcao de novas propostas que possibilitaram pensar e conhecer cientificamente a questao da saude em varias dimensoes e em suas relacoes com outras questoes e campos de conhecimento. Os trabalhos de Cecilia Donnangelo (DONNANGELO, 1972) e Sergio Arouca (AROUCA 1976, 2003) atestam a pertinencia e vitalidade dessa iniciativa.

A construcao de uma...

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