Registro imobiliário no brasil

AutorLorruane Matuszewski
Páginas110-142
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trajudicial, existindo então um furo na cadeia de domínio (chain of title).
Havia, em nossa linguagem, uma falha na cadeia dominial.191
Essas decisões marcam o estado atual acerca da fragilidade do alcance
do seguro nos Estados Unidos. O cenário local nesse país demonstra
claramente que a solução privada lá utilizada entrega menos proteção
para os adquirentes de direitos reais imobiliários que os serviços públi-
cos prestados pelos registros imobiliários brasileiros.192 Como f‌ica claro,
é um sistema inseguro, comparado ao sistema registral brasileiro, que
será examinado mais à frente.
Como exposto na introdução deste capítulo, a opção de estudo do sis-
tema dos EUA foi feita por ser comum e conhecida, entre a comunidade
registral e notarial, a heurística que af‌irma ser o sistema registral desse
país mais ef‌icaz e mais desenvolvido que o brasileiro. Tal af‌irmação utiliza
como premissa o fato de os Estados Unidos serem uma economia maior,
sem explorar a fundo o seu sistema de contratação e registro.
No próximo capítulo, estudaremos o sistema brasileiro para que o leitor
possa, ao f‌inal, fazer um cotejo entre os dois sistemas e chegar a uma con-
clusão, pautada em critérios científ‌icos, acerca dos acertos e desacertos de
cada um. O paralelo também será essencial para que possamos analisar de
maneira crítica as decisões judiciais que evolvem nosso sistema registral.
3. REGISTRO IMOBILIÁRIO NO BRASIL
O capítulo que aqui se inicia tem por f‌inalidade demonstrar a evo-
lução do sistema registral brasileiro, para que se entenda, com clareza,
as justif‌icativas históricas que nos f‌izeram alcançar o atual estado das
coisas na matéria registral imobiliária.
Para que se entenda por que e para que o sistema registral imobi-
liário existe em nosso país, é importante entender como ocorriam as
transações de imóveis em tempos anteriores à sua existência e quais as
demandas sociais que impuseram a sua criação no Brasil.
191 MAZITELI NETO, Celso. Os registros de imóveis norte-americano e brasilei-
ro: análise comparativa dos custos de transação. In: BRANDELLI, Leonardo (org.).
Transmissão da propriedade imóvel: uma análise comparada Brasil – Estados
Unidos. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 334.
192 MAZITELI NETO, Celso. Os registros de imóveis norte-americano e brasilei-
ro: análise comparativa dos custos de transação. In: BRANDELLI, Leonardo (org.).
Transmissão da propriedade imóvel: uma análise comparada Brasil – Estados
Unidos. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 330.
Diálogos para uma (re)interpretação da Súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça 111
Ao f‌inal deste capítulo, esperamos que o leitor seja capaz de en-
tender a f‌inalidade do sistema registral brasileiro, de compará-lo com
o sistema registral estadunidense (analisado no capítulo anterior) e,
ainda, de analisar as decisões judiciais mais recentes sobre a matéria.
3.1. ORIGEM DA PROPRIEDADE PÚBLICA NO BRASIL
Para que seja possível entender como funciona o registro imobiliário
no Brasil hoje, compará-lo com outros sistemas de maneira crítica e
defender ou não alterações em seu ordenamento, é preciso entender
como o sistema surgiu e como evoluiu para chegar até o ponto que
existe hoje. Essa será a proposta do presente capítulo.
Celso Antônio Bandeira de Mello aponta que a origem da propriedade
imobiliária no Brasil é pública. Por direito de conquista, toda terra brasi-
leira descoberta veio a pertencer à Coroa Portuguesa. A Coroa, por meio
de cartas de sesmarias, transferia as terras aos que estivessem dispostos a
povoá-la, dando início à propriedade privada no Brasil. Assim, aos pou-
cos, a propriedade privada foi se multiplicando e sendo alienada entre
particulares pelos meios tradicionais de direito privado.193
Em verdade, no início da colonização, o território brasileiro subme-
tia-se a dois conjuntos distintos, e em alguns momentos até conf‌litantes,
de normas: as bulas papais e as ordenações do reino. De acordo com o
preceituado nas cartas pontifícias, as terras do Brasil pertenciam à Ordem
de Cristo, pois se achavam colocadas sob sua jurisdição espiritual e ca-
bia-lhe – para prestar auxílio f‌inanceiro para as conquistas ultramarinas
e fazer frente às despesas com a propagação da fé – o direito de receber o
dízimo194. Já as Ordenações, que nada previam em relação à cobrança dos
dízimos, proibiam que Ordens, Igrejas e Mosteiros se apropriassem dos
maninhos – caso das terras da Colônia, que nunca haviam sido lavradas
ou aproveitadas – que não fossem possuídos por título aquisitivo apro-
193 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Terra Devoluta. Imóvel particular assim
qualif‌icado em discriminatória administrativa. Inadmissibilidade – Origens e his-
tórico da propriedade imobiliária no Brasil. RDI 4/57. Jul./dez. 1979. São Paulo:
Revista dos Tribunais.
194 Bula Cuncta mundi, expedida em 8 de janeiro de 1454, por Nicolau V, con-
f‌irmada pelas bulas Inter coetera, de Calixto III (1456) e Aeterni regis, de Sisto IV
(1481). Cf. Lima, Graziela F. Buscarin. Evolução histórica da propriedade territorial
no Brasil. Dissertação de Mestrado em Direito Civil. São Paulo: Faculdade de Direito
da USP, 2002, p.36-8.
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priado195. Como essas entidades, entre elas a Ordem de Cristo, achavam-se
impedidas de fazer uso de contratos de aforamento ou enf‌iteuse com os
povoadores, inevitável se tornava a transplantação do instituto das sesma-
rias, para a terra achada por Cabral, suposto que meio legal diverso não
havia para povoamento da imensa gleba, ainda inviolada196. Por decorrên-
cia, os maninhos descobertos no Brasil constituam propriedade da Coroa
portuguesa, ainda que sobre seus benef‌iciários recaísse a obrigatoriedade
do pagamento de dízimos à Ordem de Cristo.
Em Portugal grande parte das terras estavam sob a jurisdição ecle-
siástica da Ordem de Cristo, como senhora feudal. A Ordem de Cristo
é herdeira da Ordem dos Templários compostas de pessoas ao mesmo
tempo monges e militares cujo propósito era defender os cristãos dos
muçulmanos. Os templários surgiram em 1113 e se extinguiram em
1312, no contexto das Cruzadas Medievais. A Ordem de Cristo, toda-
via, foi mantida por determinação de D. Diniz (1279 – 1325), por inte-
resse de povoar os territórios retomados dos muçulmanos no período
da Guerra da Reconquista, logo promovendo a formação do território
português e se precavendo de ainda possíveis ameaças mouras197.
Desse modo, com a expulsão dos árabes pelos cristãos, processo que
se estende do séc. XI ao XV, chamado período da Reconquista, passou
a se mostrar necessária a administração das terras portuguesas198.
O regime de sesmarias já vigorava em Portugal por volta do ano de
1375,199 embora essa data não seja precisa, uma vez que a lei foi publicada
sem data e em blocos. Somente em 1446 foram publicadas as Ordenações
de D. Afonso V, como uma compilação de todo o direito já existente.200
195 LIMA, Graziela F. Buscarin. Evolução histórica da propriedade territorial no
Brasil. Dissertação de Mestrado em Direito Civil. São Paulo: Faculdade de Direito
da USP, 2002.
196 LIMA, Ruy Cirne. Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras devo-
lutas. 4.ed. Brasília: ESAF, 1988, p. 36.
197 Lima, Ruy Cirne Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras devo-
lutas. 4.ed. Brasília: ESAF, 1988, p. 36.
198 Laura Beck Varela, Das sesmarias à propriedade moderna: um estudo de his-
tória do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 19-20, 32-33.
199 BARROS, Henrique de Gama. História da administração pública em Portugal
nos séculos XII a XV. 2. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1945. v. 8.
200 COSTA, Mário Júlio de Almeida. História do direito português. 3. ed. Coimbra:
Almedina, 2000.

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