A regulação da terceirização no Brasil

AutorSidnei Machado
Páginas116-123

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1. Introdução

Em 31 de março de 2017, foi sancionada pela presidência da República, a denominada “Lei da Terceirização”, a Lei n. 13.429/2017. É a lei que tem origem num projeto enviado à Câmara dos Deputados em 1998 — o Projeto de Lei n. 4.302/1998 tratava inicialmente da ampliação do Contrato de Trabalho Temporário — mas a Câmara dos Deputados não somente alterou os dispositivos da Lei n. 6.019, de 1974, como aproveitou a oportunidade para regular as relações de trabalho nas empresas de prestação de serviços a terceiros, a subcontratação. Poucos meses depois, a mesma Lei n. 13.429/2017, voltou a ser alterada e complementada pela Lei n. 13.467, de 11.07.2017, a lei da “Reforma Trabalhista”.

Neste texto analisa-se o conteúdo e alcance mais imediato da regulamentação da terceirização no Brasil, frente ao modelo precedente, no contexto da ampla e desreguladora reforma trabalhista de 2017, enquanto regulação e proteção do trabalho subordinado. De modo mais específico, a abordagem tem como eixo central comentar a nova regulação, resultado da iniciativa legislativa de um Projeto de Lei iniciado no ano 1998 (Projeto de Lei n. 4.302), para identificar, a partir dele alguns problemas, desafios e tendências atuais, dentro do que chamarei aqui de pontos críticos.2 O objetivo final dessa discussão é analisar alguns dos impactos e repercussões da inovação legislativa no Direito do Trabalho e na Previdência Social.

A terceirização é um tema difícil do ponto de vista metodológico. Não se trata de um tipo contratual ou uma categoria jurídica, mas um difuso processo organizativo de natureza eminentemente econômico-financeira que pode corresponder a uma diversificada modelação jurídico-negocial. Como abordá-lo? Como conceituá-lo? Dentro desse fenômeno da descentralização produtiva, que tanto desafia o Direito do Trabalho, podemos sempre introduzir na análise elementos econômicos, sociológicos, como podemos também considerar elementos qualitativos e quantitativos e, ainda, considerar as práticas distintas em alguns setores econômicos, as singularidades do setor público. Todas são perspectivas que não podem ser desprezíveis ao olhar do jurista do trabalho para compre-ender o modelo de proteção e de regulação da relação de trabalho subcontratada e, claro, seus efeitos sobre a titularidade de direitos sociais.

Nessa perspectiva, no caso brasileiro, impõe-se uma leitura crítica sobre os riscos à função protetora e homogenizadora do Direito do Trabalho, ante a ameaça produzida pela função degradadora da prática da terceirização no Brasil, doravante com a ampla chancela legal. A análise pressupõe também a possibilidade de um ponto de vista jurídico e de construção de direitos, no horizonte dos desafios de uma pauta de igualdade democrática.3

2. O difícil contexto político do debate da terceirização no Brasil

Houve nos anos recentes, sobretudo a partir de 2011, um intenso debate sobre o modelo de regulamentação a ser adotado em lei e do espaço da terceirização no Brasil, assim como um estendido debate sobre ajustes no seu quadro interpretativo pela Justiça Especializada do Trabalho. No entanto, o elemento de contextualização do tema da regulação se apresenta como primeiro ponto crítico, ou seja, a regulação como problema em si.

A prática de terceirização foi a partir da década de 90 o eixo central da precarização do trabalho no Brasil. É o que revelam inúmeros estudos e pesquisas consistentes sobre o mercado de trabalho brasileiro.4 Foi defendida como saída para o contexto macroeconômico de baixo crescimento do país para superar a suposta rigidez da legislação trabalhista brasileira e melhorar a competitividade da economia.

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Mesmo com a retomada do crescimento econômico, a redução do desemprego e da informalidade (entre 2003 e 2010 foram criados mais de 13 milhões de empregos formais), além de um conjunto amplo de políticas públicas favoráveis ao mercado de trabalho, contraditoriamente a prática da terceirização se mantém e, ainda, apresenta tendência de ampla generalização. Dados de instituições confiáveis estimam em 10.865.297 de trabalhadores em regime de trabalho terceirizado. Esse número representaria 31% dos 33,9 milhões de trabalhadores com contrato formal.5 A tendência de generalização da prática se dá em vários setores privados econômicos (comércio, indústria e serviços) e no setor público e, o que é preocupante, tende a se instalar em atividades principais do processo produtivo.

Nesse ambiente de intensificação da terceirização e de tensões no quadro interpretativo, em meio a uma conjuntura econômica favorável, é que se acentuou o debate em torno da necessidade e urgência de um marco regulatório para reduzir as incertezas da frágil regulação jurídica.

Diante da escassa normatização e do frágil quadro interpretativo da jurisprudência avançava no Congresso do Projeto de Lei (PL) 4.330/2004, que conferia ampla liber-dade de terceirização, na medida que permite o uso em atividade-fim da empresa, cujo texto veio a ser aprovado na Câmara dos Deputados, em 22 de abril de 2015.

Enquanto aguardava a apreciação do Senado (Casa revisora), a Câmara dos Deputados, de modo surpreendente, num contestado procedimento, restaurou e submeteu a votação, com disposições novas, o antigo PL 4.302, iniciado em 1998, e que se encontrava com pedido de retirada realizado pelo então Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, em mensagem de 13 de agosto de 2003. Mesmo assim, o PL 4.302 foi à votação e aprovado nas duas sessões, realizadas em 22 e 23 de março de 2017, na Câmara dos Deputados. Finalmente foi sancionado pelo Presidente da República, em 31 de março de 2017, na forma da Lei n. 13.429.

Paralelamente, tramitou na Câmara dos Deputados o ambicioso projeto de “Reforma Trabalhista”, (PL
6.787/16), enviado pelo governo Temer ao Congresso Nacional, em 23 de dezembro de 2016. O PL 6.787, graças a uma manobra parlamentar, recebeu na Câmara dos Deputados um substitutivo ao projeto do governo, no qual, dentre outros temas novos, foram inseridos dois artigos para dispor regras sobre terceirização, para aprimorar o texto da lei anterior e acrescentar disposições complementares sobre o uso da terceirização. O texto, aprovado na

Câmara dos Deputados, foi mantido no Senado Federal e, finalmente, foi sancionado pelo Presidente da República em 13 de julho de 2017, na forma da Lei n. 13.476, com vigência a partir de 11 de novembro de 2017.

A normatização que se esperava, diante do frágil quadro jurisprudencial e o uso crescente da terceirização, seria de uma norma que fixasse limites para a terceirização, salvaguardando especialmente o seu uso em atividade principal da empresa, definindo um regime de responsabilidade solidária e assegurando igualdade de direitos entre terceirizados e contratados pela empresa; fixando penalização da fraude e dos infratores.

Uma normatização, para que contivesse a precariedade provocada pela relação triangular de trabalho que afeta os trabalhadores terceirizados, seria adequada para definir o que pode ser objeto de terceirização, identificar claramente quem são as empresas que podem subcontratar e definir as suas responsabilidades. No entanto, a regulamentação brasileira de 2017 é demasiadamente permis-siva com o uso da terceirização, uma vez que não impõe praticamente limites ao seu uso.

É fato que a perspectiva de setores empresariais, liderados pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e outras cinco entidades patronais, sempre foi de uma irrestrita defesa da ampla liberdade de terceirização, que supostamente geraria impactos positivos na competitividade e no ambiente de negócios. Os governos do Partido dos Trabalhadores (2003 a 2015) tinham assumido um papel de mediador pouco ativo do processo negocial construído no parlamento; porém com ascensão do governo Michel Temer, em 2016, o Executivo passou a ter a liderança da regulamentação da terceirização, encampando as propos-tas dos setores empresariais.

Devemos agregar um dos elementos-chave que foi a crise política instaurada no Brasil, que eclodiu a partir das manifestações de junho de 2013. A crise política conduziu, pouco a pouco, no desmonte da base de sustentação do governo de Dilma Rousseff, na perda de apoio popular e no processo de ruptura institucional que culminou com o impeachment da presidenta em agosto de 2016. A inserção dos trabalhadores nas reivindicações aparece em uma primeira manifestação, do dia 11 de julho, em ato conjunto, convocado por sete centrais sindicais (CUT, CTB, Força, UGT, CSP/Conlutas, CGTB, CSB e NCST), que inseriram como uma de suas bandeiras o fim do Projeto de Lei
n. 4.330, que, nas palavras do presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Vagner Freitas: “esse projeto de lei nefasto que acaba com as relações de trabalho no Brasil

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e é, na verdade, uma reforma trabalhista escondida atrás de uma proposta de regulamentação da terceirização”. Apesar de que essas bandeiras não tenham mobilizado os trabalhadores em grande número nas ruas, o ambiente político teve o efeito de provocar uma maior tensão política em torno do modelo de regulação da subcontratação.

Esse é o complexo contexto do debate público brasileiro que resultou na regulamentação e construção de um quadro normativo de livre uso da terceirização frente a uma realidade e uma prática estendida ainda muito associada ao trabalho precário, que tende a se expandir com a legalização dessas práticas.

Em razão das percepções distintas...

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