O rei esta nu: genero e sexualidade nas praticas e decisoes no STF/The king is naked: gender and sexuality in the Brazilian Supreme Court practices and decisions.

AutorVieira, Adriana Dias

No Brasil, a trajetoria de reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos e dos direitos relativos a equidade de genero e a diversidade sexual e de genero tem passado decisivamente pelo Supremo Tribunal Federal. Diante de uma maioria parlamentar conservadora e indisposta a parte significativa de suas pautas no Congresso Nacional, organizacoes da sociedade civil e movimentos sociais como os feministas e LGBTI vem mobilizando-se em torno da corte, nao raramente articulados a agentes e setores de Estado. Com isso, tais organizacoes e movimentos oportunizam o ajuizamento de acoes e a interposicao de recursos acerca daqueles direitos e acabam implicando os ministros do STF em controversias publicas intimamente relacionadas a politicas de genero e sexualidade.

Tomando parte fundamental nessas controversias, os ministros do Supremo ja decidiram sobre uma serie de questoes polemicas ou moralmente sensiveis, como as unioes estaveis entre pessoas do mesmo sexo, em razao da ADI 4277 e da ADPF 132, julgadas em maio de 2011; a constitucionalidade de dispositivos da Lei Maria da Penha, atraves da ADC 19, julgada em fevereiro de 2012; a dispensa de representacao da vitima em casos de lesoes corporais de natureza leve, em situacao de violencia domestica e familiar contra a mulher, com a ADI 4424, julgada na mesma data, em fevereiro 2012; a "antecipacao terapeutica do parto"--ou o aborto--de fetos anencefalos, com a ADPF 54, julgada pelos ministros em abril de 2012; a criminalizacao de "pederastia ou outro ato de libidinagem" presente no Codigo Penal Militar, por meio da ADPF 291, julgada pelos ministros em outubro de 2015; a substituicao de prisao preventiva por prisao domiciliar nos casos de mulheres presas gestantes ou maes de criancas de ate 12 anos ou de pessoas com deficiencia, no HC 143641, julgado em fevereiro de 2018; a alteracao de registro civil de travestis e transexuais, com a ADI 4275, julgada em marco de 2018; e mais recentemente, em junho de 2019, a criminalizacao da homofobia, por conta da ADO 26 e do MI 4733.

Mesmo quando nao provocados por movimentos sociais, contudo, os ministros do Supremo tem enfrentado casos que mantem convencoes morais de genero e de sexualidade em seu cerne e que direta ou indiretamente concernem a direitos sexuais e reprodutivos ou relativos a equidade de genero. Foi o que se deu com a acao constitucional sobre pesquisas com celulas-tronco embrionarias, a ADI 3510, movida em 2005 pelo entao Procurador-Geral da Republica contra o artigo 5 da Lei de Biosseguranca, com o objetivo de impedir o desenvolvimento dessas pesquisas. Mas tambem foi o que ocorreu, alguns anos antes, em 2002, com o iconico caso de Gloria Trevi, no qual os ministros do STF decidiram, a proposito da Reclamacao 2040, sobre a possibilidade de imposicao de exame de DNA na placenta da cantora mexicana, ainda que contra a sua vontade, com o intuito de confirmar se sua gravidez havia resultado ou nao de um estupro que teria sido cometido por policiais nas dependencias da Policia Federal, em Brasilia, onde Trevi se encontrava presa em meio a um processo de extradicao.

E possivel dizer, contudo, que esses casos estao longe de encerrar o horizonte de possibilidades de incidencia dos ministros do Supremo Tribunal Federal em controversias publicas atinentes a genero e sexualidade. Hoje, em abril de 2020, restam em aberto na corte casos emblematicos para o Movimento LGBTI brasileiro, como a ADI 5543, sobre a doacao de sangue por homossexuais; e o RE 845779, sobre o uso de banheiros por pessoas trans de acordo com sua identidade de genero. Tambem espera a decisao dos ministros a acao sobre a inconstitucionalidade da criminalizacao do aborto, a ADPF 442, e as acoes referentes a descriminalizacao do aborto provocado por mulheres infectadas pelo virus da Zika e aos direitos previdenciarios e de assistencia social de criancas com microcefalia e de suas maes, a ADI 5581 associada a uma ADPF. Essas tres acoes constitucionais sobre aborto resultaram da litigancia estrategica desempenhada por militantes e organizacoes feministas brasileiras (1) e as duas ultimas, acerca do Zika, tiveram seus julgamentos iniciados em 24 de abril de 2020, no plenario virtual do STF, enquanto concluiamos este artigo (2).

Alem disso, o recrudescimento do conservadorismo no pais e sua agenda com "foco na moral sexual", como designaram Regina Facchini e Horacio Sivori (2017), tem engendrado novas controversias que desaguam no Supremo, como aquelas acerca da "Escola sem partido" e, sobretudo, das chamadas "leis da mordaca", as legislacoes municipais que proibem a tematizacao de genero e sexualidade nas escolas e que se tornaram objeto, por exemplo, das ADPFs 460, 462, 465, 466 e 467, igualmente movidas pela Procuradoria-Geral da Republica. Uma dessas ADPFs, a 457, tambem foi julgada pelo plenario virtual da corte no ultimo dia 24 de abril. Em decisao unanime acerca de uma lei de Novo Gama (GO), os ministros reconheceram a inconstitucionalidade de legislacao municipal que proibe a utilizacao de material didatico com conteudo relacionado a diversidade sexual e de genero (3).

Partindo da compreensao da relevancia de tais processos decisorios acerca de controversias publicas de genero e sexualidade para os conflitos a respeito das fronteiras democraticas, nos procuramos tematizar, no presente artigo, diferentes formas como genero e sexualidade informam praticas e decisoes no ambito do Supremo Tribunal Federal, ao tempo que seus ministros operam politicas de genero e sexualidade. Para tanto, valemo-nos da analise dos votos dos ministros do STF em nove casos judiciais ja concluidos, com acordaos ou julgamentos publicados, e pertinentes aquelas controversias publicas (4). As leituras dos acordaos contaram com a aplicacao de um instrumento de analise estruturado para coletar trechos das narrativas judiciais que apresentam: a) os fundamentos juridicos dos votos de cada ministro em cada caso; b) referencias a justificacao exercida por cada ministro acerca da possibilidade ou do dever de decidir sobre cada caso; e c) referencias as nocoes de "minoria", "vulnerabilidade", "sofrimento" e "vitimizacao", empregadas pelos ministros em seus votos, mas aqui tomadas como categorias de analise (5).

Este artigo se subdivide em duas partes. Na primeira delas, nos investigamos as praticas generificadas de estruturacao dos acordaos produzidos no Supremo Tribunal Federal e, assim, os modos como essas decisoes judiciais parecem prescindir de um esforco de justificacao que suplante a pressuposta autoridade do conjunto das vontades individuais dos ministros. Com isso, tanto sublinhamos a relevancia dos acordaos para a performatizacao da existencia de uma "fala" institucional da corte--"o STF fala ou decide" sobre algo--quanto discutimos sobre como as maneiras com que "o STF decide" sao tramadas em relacoes de genero e de sexualidade. Por sua vez, na segunda parte do texto, nos procuramos analisar como, em seus processos decisorios, os ministros do STF se empenham em uma gramatica de sofrimento e na articulacao da figura da vitima para reconhecer ou negar direitos e sujeitos de direitos. Para tanto, detemo-nos nas disputas narrativas em torno de duas categorias que nos parecem ensejar acoes e decisoes dos ministros, as minorias e os vulneraveis. Com esses debates em mente, nos dedicamos o final do texto a algumas paginas de discussao em torno da tensa relacao entre o STF, seus ministros, suas praticas e a democracia.

As duas partes deste artigo se desenlacam atraves de referencias a duas fabulas, que nos servem ora como metafora, ora como chave poetica, ora como recurso metodologico por meio dos quais nos nos defrontamos com o nosso objeto de analise, as praticas e decisoes do STF. A primeira fabula da titulo a este texto--"O rei esta nu"--e e mencionada na cancao "Estrangeiro", de Caetano Veloso. A fabula, contudo, tornou-se conhecida sobretudo atraves do conto infantil "A roupa nova do imperador", do dinamarques Hans Christian Andersen, inspirado numa historia encontrada em uma coletanea medieval espanhola chamada "Libro de los ejemplos" (6). No conto de Andersen, um rei vaidoso aceita pagar bastante caro a um pretenso alfaiate--um bandido fugido de outro reino--por uma roupa que somente os inteligentes conseguiriam ver. O rei, mesmo sem ver a roupa, decide inaugura-la e exibi-la publicamente, contando com a admiracao e os elogios constrangidos de seus ministros e suditos, isto ate que uma crianca em meio a multidao acaba gritando "o rei esta nu". Nas proximas paginas, a nudeza do rei sera dimensionada principalmente atraves dos versos da musica de Veloso (7). Enfim, a segunda fabula com que lidamos neste artigo remete ao conceito empregado pela antropologa Mariza Correa (1983) que, em estreito dialogo com Propp (1928), cunhou uma metodologia de estudo de autos judiciais que viria a se tornar imprescindivel aos estudos de genero e sexualidade e aos estudos sobre violencia no pais.

Antes de seguir, porem, importa notar que nossa escolha por percorrer analiticamente as praticas dos ministros--nas quais se incluem suas tomadas de posicao, seus esforcos decisorios, assim como as formas com que exercem tais esforcos--resulta do proficuo contato que estamos estabelecendo com analises situadas na intersecao entre a antropologia do Estado e os estudos de genero e sexualidade. Em estreito dialogo com as contribuicoes de Philip Abrams (1988) e Timothy Micthell (1999), tais analises tem voltado atencao para as praticas e os agentes que participam do trabalho continuo, cotidiano e burocratico de producao do Estado. Assim, elas se tem desenvolvido a partir de pesquisas, de regra etnograficas, em torno da prisao e do encarceramento (Lago, 2020; Padovani, 2017), de lutas por justica em contextos de violencia e criminalizacao (Vianna e Farias, 2011; Lacerda, 2014; Efrem Filho, 2017a, 2017b) e no interior de orgaos de Estado, como cartorios policiais, reparticoes judiciais, nucleos...

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