Relacoes de opressao-exploracao da modernidade colonial: notas sobre cidadania trans e emancipacao/Oppression-exploitation relationships in colonial modernity: notes on trans citizenship and emancipation.

AutorMarinho, Silvana

Introdução

Pessoas trans são aquelas que vivenciam diferentes pertencimentos de gênero não normativo, autodenominando-se pessoas travesti, transgênero, homem transexual e mulher transexual. O termo trans é aqui utilizado relativamente à própria forma êmica com a qual tem se expressado no movimento social e na academia, auxiliando a aglutinar as vivências de pessoas que escapam à cisgeneridade. Rodovalho (2017), ao refletir sobre o termo cis pelo termo trans, demonstra que não é possível imaginar a utilização de um desses termos sem nos referirmos prontamente ao outro. Etimologicamente, se de um lado o "trans" significa além de ou aquilo que cruza, que atravessa; de outro, o "cis" vem em sua oposição, significando da parte de cá, deste lado; logo, aquilo que permanece num mesmo lado. A partir desse ponto e, como travesti, Rodovalho (2017, p. 365) afirma que "o discurso médico, ao nomear como 'trans' a nossa maneira peculiar de existir, de reivindicar existência, automaticamente nomeou a outra maneira, a sua maneira, não-trans, como 'cis' ". Ademais, cabe ressaltar que essas existências trans são anteriores à nossa sociedade contemporânea. O que é contemporâneo é a presença do termo trans como categoria política e como conceito, que se relaciona com a politização desses sujeitos nas últimas décadas e com o avanço dos estudos sobre gênero e sexualidade, a despeito de ter uma história edificada no discurso médico (1).

A memória da luta trans, conquanto tenha se singularizado em termos de reivindicação de direitos, coaduna-se à história da luta LGBTQIA+, que se manifesta hoje de forma mais ampla como resposta às discriminações em razão do gênero e da sexualidade, em prol da conquista da igualdade de direitos à livre expressão sexual e de gênero.

Ressalta-se que o termo LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) veio sendo, a partir dos anos 2000, a expressão mais utilizada no campo do ativismo da diversidade sexual e de gênero a partir das conferências nacionais LGBT (I, II e III), realizadas desde 2008. Entretanto, como se trata de uma expressão em constante disputa, esse ativismo, ainda mais recentemente, vem reivindicando a sigla LGBTQIA+, de modo a buscar contemplar outras vivências de gênero e sexualidade, acrescentando-se o "Q" de queer, o "I" de intersexuais, o "A" de assexuais e o "+" para outras múltiplas formas de expressão de gênero e de orientação sexual, bem como para aquelas pessoas que não se identificam com quaisquer dos binarismos de gênero.

A formulação de políticas públicas LGBTQIA+ veio se desenhando, mais formalmente, desde meados dos anos 2000 com a criação do Programa Federal Brasil sem Homofobia (BsH). Entretanto, o cenário atual, com o governo autoritário e de tendência protofascista de Bolsonaro, tem sido de derrocada de conquistas históricas, desde normativas legais às ossaturas de políticas.

Apesar de o campo da diversidade sexual e de gênero abarcar as identidades LGBTQIA+, a identidade de gênero vem se configurar como um elemento que reitera a distinção identitária entre travestis e transexuais, de um lado, e gays, lésbicas e bissexuais, de outro (CARVALHO, 2011). Destarte, embora se reconheça a inter-relação existente entre sexualidade e gênero, uma vez que os padrões de gênero, suas hierarquias e sua base ideológica patriarcal-capitalista incidem sobre a sexualidade, o assunto diversidade de gênero não deve ser adunado ao assunto da diversidade sexual, pois cada qual expressa vivências e pautas políticas diferentes, nos chamando a atenção para a importância dessa distinção a fim de compreendermos a problemática de fundo que se relaciona com as discriminações sentidas pelas pessoas trans (MARINHO, 2018).

Trata-se de um segmento da classe trabalhadora que, frequentemente, tem suas vidas marcadas pelas violações de direitos de cidadania, como a negação de acesso ao trabalho, à educação, à saúde, à justiça e à assistência social. Isso é a expressão do abismo, próprio da chamada sociedade moderna, entre os direitos formais e as condições concretas de existência.

Sabe-se que a tradição marxista é crítica da democracia burguesa formal. São várias as teses da incompatibilidade entre democracia e capitalismo, como em Ellen Wood (2011) e em Carlos Nelson Coutinho (1997), para quem a construção dos direitos democráticos que caracteriza a modernidade termina por se chocar com a lógica do capital, evidenciando a contradição entre cidadania e classe social. Concordantemente com Coutinho (1997) e Wood (2011), a universalização da cidadania é incompatível com a existência de uma sociedade de classes. Contudo, há que se destacar que não apenas a categoria classe social obstaculiza a universalização da cidadania, mas a simbiose entre capitalismo, patriarcado e racismo torna a cidadania plena irrealizável.

Ao analisar a afirmação de Wood (2011, p. 172) de que "na democracia capitalista moderna a desigualdade e a exploração socioeconômica coexistem com a liberdade e a igualdade cívicas", é possível dizer que tal asserção aparentemente nos faz concordar com a autora. No entanto, ela carece de profundidade quando consideramos a complexidade das novas determinações dos antagonismos advindos da modernidade.

No que se refere às questões trans, as igualdades cívicas e as liberdades nem mesmo se encontram no plano formal, uma vez que, antes, a pessoa trans mereceria o reconhecimento jurídico-político. Este não tem sido o caso. Nesse sentido, as pessoas trans, "antes de reivindicar os direitos relacionados à sua pessoa, estão lutando para serem reconhecidas como pessoas", nos termos assinalados por Flavia Teixeira (2009, p. 32). Uma questão central para ilustrar o que se problematiza é o não reconhecimento do nome social nos diversos espaços, equipamentos sociais e de saúde, órgãos públicos e privados, nas unidades de ensino e no trabalho. O direito ao nome é passaporte para todos os outros direitos, porque, em sentido lato, é o direito de existir.

Por conseguinte, na falta de uma lei de identidade de gênero no Brasil (2) que regulamente e facilite o direito à expressão de gênero, a população trans-que tem acessado a retificação do seu registro civil judicialmente-vem recentemente reivindicando esse direito, não sem dificuldades, no Registro Civil das Pessoas Naturais em face de uma decisão atual de março de 2018, do Supremo Tribunal Federal (STF), que autorizou a alteração de nome e sexo para pessoas transexuais, travestis e transgêneros diretamente em cartório. Uma decisão muito comemorada pela comunidade trans, mas que ainda demonstra a dificuldade da devida atenção do poder público para com a cidadania trans.

Existe um fosso entre a formulação e a implementação de políticas públicas LGBTQIA+ no território nacional, visto que essas políticas não escapam à lógica que orienta as políticas sociais brasileiras. Elas estão assentadas no solo de um Estado de capitalismo periférico submetido às exigências do ideário neoliberal de países centrais, que tanto as fragmenta e as desfinanceiriza. Ademais, o vácuo legal no Brasil no que diz respeito ao assunto identidade de gênero e às conquistas logradas (a conta-gotas) mostra-se, especialmente, pelo fato de o parlamento ser composto por uma elite racista, machista e conservadora, como Berenice Bento (2014) assinala.

Em vista do exposto, este artigo reflete sobre identidade de gênero e cidadania à luz do materialismo histórico dialético e do feminismo marxista e decolonial, compreendendo que este tema requer, de um lado, identificar as determinações sociais dos limites da cidadania trans no seio de uma sociabilidade capitalista-(cis)heteropatriarcal-racista, própria da modernidade colonial, e, de outro, considerar que pessoas trans também são sujeitos políticos revolucionários e disputam os significados e as práticas do que é ser cidadão/ã.

Busca-se, ainda, trazer alguns elementos de análise que possam contribuir para imprimir sentido de classe aos processos de luta no campo da diversidade de gênero, bem como consciência de gênero e raça nas lutas trabalhistas, particularmente diante dos desafios atuais da cena contemporânea brasileira, fortalecendo uma unidade das lutas sociais.

As forças sociais progressistas em presença no cenário brasileiro, em tempos de crise do capital, neoconservadorismo, obscurantismo, autoritarismo, desmonte de direitos e ultraneoliberalismo, expressam-se como lutas plurais que, ao contrário da fragmentação, têm potencial emancipatório, pois são uma unidade do diverso, animando, assim, uma caminhada em direção a uma luta da classe trabalhadora verdadeiramente comprometida com a emancipação humana: uma luta anticapitalista, anticolonial, antirracista e anti-(cis)heteropatriarcal.

Tal discussão encoraja uma reflexão acerca da emancipação política e humana numa perspectiva marxista, que, não raras vezes, acaba por incorrer no falso dilema presente no campo das forças de esquerda: os embates teórico-políticos entre lutas gerais e lutas específicas. Ademais, na produção teórica da tradição marxista e nos debates políticos, a apreensão da exploração-opressão como unidade ainda ocupa um lugar periférico. Destarte, o esforço reflexivo deste artigo é o de reconhecer a indissocia-bilidade entre as determinações de gênero, raça/etnia e classe, porque são contradições que constituem a realidade concreta.

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