Rescisão

AutorAmaury Silva
Páginas581-592

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1 Financiamento Sistema Financeiro da Habitação. Inadimplência. Terceiros possuidores. Usucapião. Impossibilidade de reconhecimento

SENTENÇA

1 - Relatório

........................ aforou pedido de rescisão contratual cumulado com reintegração na posse em desproveito de ......................., .................. e ......................., assinalando que firmou com ................... um contrato particular de promessa de compra e venda, relativo ao imóvel constituído pelo apartamento ......., em .../.../......

Prosseguiu articulando que em .../.../..... o promitente comprador cedeu os direitos alusivos ao pacto aos dois primeiros réus, com anuência da autora.

Com isso, a partir de .../.../..... os dois primeiros requeridos passaram a atrasar os pagamentos das prestações mensais decorrentes do financiamento, o que, segundo a avença, implica na rescisão do pacto, já que a inadimplência superou um trimestre, com espeque no art. 1º, VI, Lei 4.864/65, e art. 63 e seus parágrafos da Lei 4.591/764.

Realizada a notificação para constituição da mora, ocorreu a permanência do casal de réus no imóvel, implicando em esbulho possessório, sobrevindo a posse exercida pela terceira ré, a quem os dois primeiros demandados cederam indevidamente a posse do bem, sem a anuência da autora.

Diante disso, pleiteou a citação e o acolhimento do pedido para se declarar a rescisão do contrato, determinando-se ainda a reintegração na posse do bem.

Inicial de f. .. instruída com documentos – f. ...

Citação pessoal da 3ª ré – f. .. e dos dois primeiros réus por edital – f. ...

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Resposta sob forma de contestação da terceira ré – f. .. acompanhada de documentos – f. .., afirmando que ocupava o bem há mais de 13 anos, militando em seu favor a usucapião, em virtude das sucessivas cessões do bem a outros possuidores, fazendo jus ao reconhecimento prescrição aquisitiva, proclamando-se o domínio a seu favor.

Aduziu ainda que, em virtude da função social do contrato, teria direito à regularização do financiamento do imóvel em seu nome junto à autora, na condição de companhia habitacional.

Contestação por negativa geral dos dois primeiros réus, por intermédio de curador especial – f. ...

Réplica – f. ...

Em audiência conciliatória – f. .. não sobreveio acordo, mas o feito foi suspenso para fins de tratativas de acordo.

Nova suspensão deferida à f. ...

Designada audiência de instrução e julgamento, as partes não compareceram, ausente produção probatória – f. ...

A parte autora pugnou pelo julgamento – f. .., noticiando que a inércia da terceira ré inviabilizaria qualquer transação.

É a concisão.

2 - Fundamentação

Presentes os pressupostos de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo. Não há preliminares, passo à abordagem e decisão do mérito.

Nessa trajetória, revela a prova de maneira indisfarçável, e assim ratificado pela conjuntura das alegações das partes, que entre a autora e os dois primeiros réus vigorou o contrato paginado na exordial, sobrevindo a inadimplência dos promissários adquirentes.

A inadimplência atinge, com isso, mais de 11 anos e autoriza de maneira plena a rescisão do pacto, ante a conjunção das normas do ajuste e da legislação referente ao financiamento habitacional no país, notadamente o art. 63 da Lei 4.591/64.

Ora, tal quadro suplanta a tese da contestação por negativa geral desenvolvida pelo ilustre Curador, e faz preponderar a procedência dos pedidos

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em relação aos dois primeiros demandados, para se rescindir o contrato e determinar a reintegração na posse do bem à autora.

Resta, assim, a definição quanto ao pedido remanescente de reintegração na posse que abrange à terceira requerida.

Nesse aspecto é inegável que a qualificação da assunção do indigitado demandado na posse do bem se deu sob o crivo da boa-fé. Os documentos de f. .. são demonstrativos claros de que a partir da saída do imóvel pelos primitivos adquirentes houve a transferência daqueles direitos emergentes a outrem, e, a partir de então, à terceira ré.

Logicamente, tal providência não tem assento e respaldo na configuração contratual e mesmo na legislação de regência, interpretada em sua literalidade, mas nem por isso se pode aclamar como espúria e ilegítima a aquisição da posse com o adjetivo da boa-fé.

Isso porque, como garantia fundamental, o direito à habitação é uma das expressões mais nítidas para a consecução do princípio da dignidade da pessoa humana, insculpido como fundamento da existência e da vida da República – art. 1º, III, Constituição Federal.

Não resta dúvida que o custeio e a realização das tarefas governamentais de concretizarem tal perspectiva de habitação, equilibrando-se o sistema e tornando-o possível, conta com a linearidade da pontualidade no pagamento das prestações e mesmo com o respeito àqueles cânones contratuais.

Todavia, o descumprimento residual e episódico, que se dê em cada caso concreto, não pode ficar à deriva da análise, sob o enfoque do princípio da proporcionalidade.

E nesse itinerário é irresistível a percepção de que o terceiro requerido, quando assumiu o bem, não o fez com a conotação ou objetivo de aniquilar o sistema financeiro, a partir da criação de obstáculos e dificuldades à companhia habitacional. Tal aporte se deu com o viso do preenchimento de seu direito à habitação, possibilitando-lhe a dignidade como pessoa humana, o que se escancara pela atitude de se dirigir ao escritório da autora, buscando formalizar a transferência do financiamento para o seu nome e ainda realizou o pagamento de algumas parcelas, outrossim, se colocando formalmente na peça contestatória tal intenção, embora tenha malogrado esse intento.

O ‘direito achado na rua’ não pode ser ignorado; a prática da transferência de posse, a terceiros, de bens financiados por mutuários é medida que não se esconde e somente nos casos de visceral deturpação do sistema é que se

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pode flexibilizar com a garantia do direito à habitação. A visibilidade desse fenômeno é mais intensa nos financiamentos para...

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