Responsabilidade objetiva

AutorKarina Novah Salomão
Ocupação do AutorBacharel em Direito pela Universidade de São Paulo
Páginas35-67

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1. Responsabilidade objetiva: evolução do instituto até os dias de hoje

Muito embora a ideia de culpa tenha sido introduzida no Direito Romano pela Lei “Aquilia”, ainda se reconhecia, após essa lei, casos em que havia obrigação de o ofensor indenizar, sem culpa72.

Na França, a origem de uma doutrina objetiva tem início com Saleislles e Josserand. Saleislles parte de interpretação do próprio Código francês, para enfatizar que o vocábulo faute foi utilizado com o significado de fait, causa de qualquer dano. Para Saleislles, o art. 1.382 do Código Civil dispõe que “o que obriga à reparação é o fato do homem constitutivo do dano”. O Código, ao mencionar a culpa, pretende referir-se à causa. Saleislles desenvolveu sua teoria do risco sob o título de Les accidents du travail et la responsabilité civile73.

Esclarece Aguiar Dias que são precursores da teoria do risco Saleislles e Josserand, cuja defesa se faz em nome da equidade, solidariedade social, desigualdade da fortuna etc.74 Enquanto Saleislles reconhece “a necessidade de substituir a culpa pela causalidade, mediante a interpretação objetiva da palavra faute no art. 1.382 do Código francês”, Josserand entende a teoria objetiva como a responsabilidade pelo fato da coisa inanimada75. Saleislles propõe que as pessoas assumam a responsabilidade por suas ações, atendendo-se assim ao princípio da dignidade humana. Isso é o que defende, no seu

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livro Les accidents du travail et la responsabilité civile. Saleislles faz, posterior-mente, uma análise do Código Civil da província de Quebec, Canadá, demonstrando que muitos artigos referentes à responsabilidade são semelhantes aos dispositivos do Código Civil francês. Conforme destaca Aguiar Dias, o risco profissional já estava, em 1910, admitido na legislação cana-dense, a exemplo do que fizera na França a lei de 9 de abril de 1898. Mas ficavam de fora de sua aplicação muitos acidentes ocorridos durante o trabalho profissional ou causados a terceiros por máquinas ou instrumentos industriais”76. Inicialmente, não havia uma presunção legal, em se tratando de responsabilidade pelo fato da coisa. Só em 1909 é que os Tribunais canadenses reconhecem a presunção legal pelo fato da coisa. O precedente que deu origem à discussão foi o caso de um trabalhador encarregado do forno. A explosão do forno deixou-o cego. Em primeira instância, o empregado venceu, tendo o juiz entendido que o forno estava sob a guarda da empresa. Em segunda instância, o Tribunal reformou, por entender que o forno estava sob a guarda do empregado vitimado. Finalmente, o Tribunal de Apelação entendeu que a empresa tinha culpa, não havendo necessidade de prová-la, vez que o forno estava sob sua guarda77.

Fazendo referência à legislação canadense e francesa, Saleislles afirma que, no caso de empresas que exploram atividade econômica e empregam trabalho alheio, a presunção legal de responsabilidade é absoluta, somente se isentando em caso de culpa exclusiva da vítima e força maior78.

Josserand, por sua vez, escreve De la responsabilité du fait et des choses, onde vai desenvolver uma doutrina objetiva. Segundo sua perspectiva, é preciso verificar a que se deve a evolução da responsabilidade civil. Para ele, deve-se aos inúmeros acidentes, no caráter perigoso da vida atual. O indivíduo busca cada vez mais segurança. A vítima de um acidente precisa provar a culpa do autor, além do dano sofrido. Josserand argumenta com a teoria do abuso de direito. Invoca os arts. 1.384, 1.385 e 1.386 do Código Civil, sublinhando que “as presunções legais abundam em matéria de responsabilidade”79. O art. 1.384, por exemplo, dispõe que aquele que guarda a coisa responde pelos danos que ela causar. Conforme Josserand, a responsabilidade tende a objetivar-se.

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Declara Ripert, por sua vez, que a responsabilidade fundada na culpa tem raízes históricas, mas que, aos poucos, foi superada por novas regras, já que o Direito moderno não foca o autor do dano, mas a vítima. Para Ripert, o Direito moderno substitui a ideia de reparação pela de responsabilidade. Com base no art. 1.384, a jurisprudência ampliou a ideia de responsabilidade. Surge o risco profissional, o risco da propriedade, o risco criado. A fórmula adotada por Ripert é a seguinte: “[...] todo o prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o causou. O problema da responsabilidade é o da causalidade. O fato do homem ‘obriga aquele que causou um prejuízo a outrem a repará-lo’”80.

A teoria da responsabilidade objetiva tem cunho prático. Nem sempre é possível à vítima a prova da culpa do autor. Até os irmãos Mazeaud chegaram a admitir a necessidade de uma teoria para responsabilizar aquele cuja atividade causou um dano81.

Percebe-se, assim, que houve um movimento na doutrina francesa que, sem negar a responsabilidade com culpa, prevista no art. 1.382, passou a defender a responsabilidade objetiva82. A ideia é a obtenção da reparação do dano, estabelecendo-se que cada um deve suportar os riscos de sua ativi-dade.

No Brasil, a teoria do risco foi tratada sucessivamente pelos seguintes autores: Alvino Lima, em 1938, com a tese Da culpa ao risco; Wilson Melo, com a tese Responsabilidade sem culpa; José de Aguiar Dias e Caio Mário da Silva Pereira83.

Conforme ensina Aguiar Dias, na evolução da responsabilidade subjetiva para a objetiva, foram observados os seguintes fatores:

  1. facilidade na admissão da culpa; b) estabelecimento ou reconhecimento de presunções de culpa; c) substituição da noção de culpa pelo conceito de risco, ou seja, transformação da responsabilidade

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subjetiva em responsabilidade objetiva; d) eliminação da responsabilidade delitual, por maior extensão da responsabilidade contratual, favorecendo a situação da vítima em relação à prova.84Caio Mário refere-se ao Código Civil de 1916, para ressaltar que a responsabilidade objetiva ingressou em alguns dispositivos. O autor aponta os arts. 1.519 e 1.520, parágrafo único, 1.528 e 1.529, que possuem conotação objetiva. Também existem leis especiais que dispõem sobre a responsabilidade objetiva. O autor cita a legislação sobre acidente do trabalho (remetendo à já revogada Lei n. 6.367, de 1976). Refere-se ainda ao Código Brasileiro de Aeronáutica. Os arts. 1.519, 1.520, parágrafo único, 1.528 e 1.529 do Código Civil de 1916 correspondem aos arts. 929, 930, 937 (“Art. 937. O dono de edifício ou construção responde pelos danos que resultarem de sua ruína, se esta provier de falta de reparos, cuja necessidade fosse manifesta”) e 938 (“Art. 938. Aquele que habitar prédio, ou parte dele, responde pelo dano proveniente das coisas que dele caírem ou forem lançadas em lugar indevido”) do Código Civil de 20028586.

Segundo Caio Mário, quando foi chamado para elaborar um Anteprojeto de Código das Obrigações, introduziu princípio de caráter objetivista, sem excluir a responsabilidade fundada na culpa. Para ele, não deveria ser abandonada a responsabilidade com culpa, mas introduzida a teoria do risco, como princípio subsidiário87.

O art. 872 do Projeto de Código de Obrigações de 1965 previa:

[...] aquele que, em razão de sua atividade ou profissão, cria um perigo, está sujeito à reparação do dano que causar, salvo prova de haver adotado todas as medidas idôneas a evitá-lo.

O Projeto de Código Civil de 1975, por sua vez, dispunha, no art. 929:

Todavia, haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para o direito de outrem.

Caio Mário afirma que nosso Código de 1916 teve por fundamento a teoria da culpa, sem negar, entretanto, que o Código do Consumidor acolheu

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a teoria objetiva88. O autor exemplifica como casos de responsabilidade objetiva a legislação sobre acidente do trabalho e as normas que regulam o transporte em geral.

No Brasil, a legislação de acidente do trabalho teve início com o Decreto n.
3.724, de 15 de janeiro de 1919. Posteriormente, sobreveio nova legislação. Estas acolheram a teoria do risco. Ocorrendo o acidente, o empregado tem direito à indenização, devendo provar a ocorrência do acidente e a relação de emprego89.

A Lei n. 2.681/1912 estabeleceu que as estradas de ferro responderiam pelos danos que os passageiros, ao utilizar a linha, sofressem. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende que não tem validade a cláusula de não indenizar no contrato de transporte.

Igualmente, no Código Civil, são apontados alguns casos de responsabilidade objetiva. Primeiramente, o caso do dono do animal que deve ressarcir o dano causado por este, conforme art. 936 do Código Civil de 2002: “Art. 936. O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força maior”.

No que diz respeito à responsabilidade do Estado, a Constituição Federal agasalha a teoria do risco integral. O Código Civil atual, por sua vez, acolhe a teoria da culpa (art. 186) e a do risco, no art. 927 (risco criado)9091. Dispõe ainda sobre a responsabilidade do dono da casa pelas coisas que dela caírem ou forem lançadas, no art. 938.

Também o Código do Consumidor contém dispositivos sobre responsabilidade sem culpa, contra o fabricante ou produtor, o construtor ou importador, bem como sobre o comerciante.

2. Razões históricas que justificam o instituto

A responsabilidade objetiva surgiu em decorrência de inúmeras causas que a responsabilidade subjetiva era insuficiente para explicar, e para...

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