Retrocessos na política nacional de saúde mental: consequências para o paradigma psicossocial/Regressions in the national mental health policy: consequences for the psychosocial paradigm.

AutorPassarinho, José Guilherme Nogueira

Introdução

Ao menos nos últimos quatro anos, diversos artigos têm enfatizado o caráter de descontinuidade da política de Estado para o campo da saúde mental (PASSOS, 2017; ONOCKO-CAMPOS, 2019; NUNES et al., 2019; MORAES FILHO et al., 2019; CRUZ et al., 2020; SILVA et al., 2021). Isso se deve à publicação de uma série de documentos normativos que indicam de modo inequívoco uma alteração no rumo que vinha sendo tomado pelo Ministério da Saúde (MS) nas últimas décadas, até então orientado pelos princípios da reforma psiquiátrica brasileira (RPb). Por conta disso, tais autores não têm hesitado em qualificar essas alterações como "retrocessos", em descrevê-las como "retorno ao modelo manicomial", ou em nomeá-las como uma "contrarreforma psiquiátrica". Ainda que os métodos, conceitos e argumentos empregados sejam os mais diversos, todos convergem ao afirmar um aspecto de retorno ao modelo anterior à reforma.

O MS tem nomeado esse conjunto de documentos como "nova política nacional de saúde mental", designação empregada em nota oficial do ministério (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020). Destacamos o sentido de ruptura que essa expressão veicula, bem como sua conotação positiva. São os documentos reunidos sob tal designação (1) que compõem o recorte deste trabalho, uma vez que é a partir deles que podemos delinear as questões que pretendemos discutir. Certamente existe uma convergência entre o ministério e os autores que comentamos acima, ao menos em relação ao caráter de descontinuidade representado por tais normativas. Mas a discordância se inicia ao se discutir o significado dessas mudanças. Afinal, elas seriam simples atualizações de acordo com novas descobertas científicas, correções de rota sem quaisquer relações para além do debate teóricotécnico; ou devemos compreendê-las como a reação política de um modelo já bastante conhecido, ainda que munido com novos argumentos?

No presente trabalho pretendemos endossar os argumentos que buscam qualificar essas normativas como marcos de um movimento histórico de inflexão da RPb, sendo esta última entendida como um processo social complexo de mudanças nas formas de conceber o sofrimento psíquico e de produzir atenção em saúde mental, cujos princípios teóricos, éticos e políticos apontam para a necessidade da superação do modelo manicomial (YASUI, 2010). Consideramos que essa superação começou a se desenhar no interior do processo da reforma a partir de seus desdobramentos criativos em novas práxis em saúde mental, em um conjunto de inovações técnicoassistenciais que podem ser reunidas sob o nome de estratégias da atenção psicossocial (Eaps) (YASUI; COSTA-ROSA, 2008). Essas estratégias, por sua vez, devem ser balizadas por uma nova forma de produzir atenção ao sofrimento psíquico, que chamaremos de modo ou paradigma psicossocial (PPS) (COSTA-ROSA, 2000; 2013), deduzível tanto da negação lógica das estruturas do modelo manicomial, quanto das experiências inovadoras da reforma.

É com base nesses conceitos, Eaps e PPS, que pretendemos contribuir com o debate no sentido de fundamentar o caráter de contrarreforma em curso na política nacional de saúde mental (PNSM). Em outras palavras, ao nos orientarmos pelos parâmetros identificados como paradigmáticos na produção de atenção em saúde mental, buscamos confrontar o conteúdo da "nova" política com os postulados da RPb e da atenção psicossocial. Essa abordagem é importante não apenas por conferir certo rigor ao emprego de termos como "retrocesso" e "contrarreforma", mas também devido à estratégia discursiva empregada nos documentos analisados que, mesmo alterando substancialmente o conteúdo da PNSM, continuam a utilizar em seus enunciados a terminologia típica da atenção psicossocial, numa tentativa ideológica de escamotear seus pressupostos teóricos, seu posicionamento ético e sua intencionalidade política (NUNES et al., 2019; PAS-SARINHO, 2020). São exatamente esses aspectos, dissimulados no discurso manifesto da "nova" política, que se pretende evidenciar neste trabalho.

Para tanto, foi realizada uma breve exposição das principais portarias, resoluções, notas técnicas e leis publicadas entre 2016 e 2020, período em que foram publicados os documentos que compõem a chamada "nova política nacional de saúde mental". Em seguida, apresentamos o referencial teórico-conceitual empregado em nossa leitura, para então fundamentar o caráter de retrocesso implicado nesses documentos, delineado a partir dos tensionamentos que estabelecem com a RPb e a atenção psicossocial. Dessa forma, pretendemos fazer emergir não apenas os aspectos técnicos envolvidos na questão, mas também os teóricos, éticos e políticos.

Um panorama das alterações na política nacional de saúde mental (2016-2020)

É certo que algumas das principais vitórias da reforma psiquiátrica brasileira se deram no âmbito jurídico-político, a exemplo da aprovação de uma série de legislações, a maioria delas nas décadas de 1990 e 2000, que versam sobre o cuidado em saúde mental na perspectiva psicossocial e visam à garantia de direitos básicos (AMARANTE, 2000; YASUI, 2010; VAS-CONCELOS, 2016). Ainda que com consideráveis limitações, esses documentos estão em consonância com os princípios da atenção psicossocial e contribuem para a sua efetivação. A tendência pró-reforma deu o tom da política de Estado, com certa constância, até o início da década de 2010, momento em que é possível identificar o início de uma inflexão. Sobre isso, enquanto alguns pesquisadores destacam a diminuição no ritmo de implantação e implementação dos serviços substitutivos e a insuficiência de seu financiamento (ONOCKO-CAMPOS, 2019; CRUZ et al., 2020), outros chamam a atenção para o enfraquecimento da mobilização pela RPb e para os desafios postos pelo cenário político-econômico mais amplo (VASCONCELOS, 2016).

Com efeito, os retrocessos na RPb e as lutas contra isso já se marcam no início da segunda década do século XXI, sobretudo com a introdução das comunidades terapêuticas na Rede de Atenção Psicossocial (Raps) em 2011 (VASCONCELOS, 2016; PASSOS, 2017; RAMÔA; TEIXEIRA; BEL-MONTE, 2019). Contudo, esse processo encontrou condições favoráveis com o cenário político posto a partir de 2015, quando observamos o avanço de forças que se situam no espectro do conservadorismo político, aproveitando-se de uma conjuntura político-econômica que combinou "forte recessão, alto desemprego, crise fiscal dos governos federal, estaduais e municipais [...], e uma gestão conservadora e de baixa competência para o setor" (VASCONCELOS, 2016, p. 68). O projeto explícito desses atores é o de romper de forma radical com a herança deixada pelos governos de centro-esquerda, o que inclui as orientações até então vigentes para a política de saúde mental. Assim, a partir de 2016, tem início a publicação das normativas que compõe o recorte deste trabalho.

Por seu conteúdo, a Portaria no 1.482 do MS (BRASIL, 2016), ainda que não tenha sido incluída oficialmente na chamada "nova política nacional de saúde mental", iniciou de fato a sucessão de documentos que representam o aprofundamento de uma ruptura da política oficial do ministério com os princípios da RPb. Nela temos a inédita admissão das comunidades terapêuticas (CTs) no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), facilitando o seu financiamento com recursos públicos. Em 2017, a Resolução n (o) 32 da Comissão Intergestores Tripartite (CIT) elaborou, em termos bastante vagos, novos critérios de monitoramento, avaliação e regulação para a Raps (BRASIL, 2017a). Os hospitais psiquiátricos foram incluídos pela primeira vez na Raps, e a eles foi garantido um reajuste escalonado do valor das diárias de internações. O mesmo documento versa sobre o compromisso de "fortalecer a parceria e o apoio [...] em relação as Comunidades Terapêuticas" (BRASIL, 2017a, p. 239).

Essa resolução apresentou ainda um novo serviço chamado Caps-AD IV, que também passou a integrar a Raps e que foi descrito de forma mais detalhada na Portaria no 3.588 do MS (BRASIL, 2017b). À primeira vista, ele é apresentado com terminologias típicas da atenção psicossocial, como um estabelecimento que deverá funcionar como um serviço aberto, com base na territorialidade, no...

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