Revisiting the approximation to the Marxist tradition of Brazilian social work (1960-1982)/Revisitando a aproximacao do Servico Social brasileiro a tradicao marxista (1960-1982).

AutorDutra, Silmai Lazaro Neves

1 Servico Social e tradicao marxista: ingerencias externas e particularidade brasileira

Numa analise diacronica, o proprio movimento real do Servico Social brasileiro nos demonstra como a profissao buscou legitimar sua pratica profissional e sua compreensao de mundo a partir de distintas concepcoes ecleticas e conservadoras (IAMAMOTO, 2008, 2012, 2013; IAMAMOTO; CARVALHO, 2010; NETTO, 2011a, 2011b).

Do ponto de vista da heranca intelectual--do modo de ler e conceber a sociedade e, nela, a profissao--, o Servico Social cresce no universo cultural do pensamento humanista-cristao e, mais tarde, vai se secularizar e se modernizar nos quadros do pensamento conservador europeu--do anticapitalismo romantico, que tende a ler a sociedade como uma grande comunidade, em que as classes sociais desaparecem da analise--privilegiando-se a otica da harmonia, da solidariedade no ordenamento das relacoes sociais. Mais tarde, incorporamos a heranca das ciencias humanas e sociais, especialmente na sua vertente empiricista norte-americana. A essas fontes de inspiracao intelectual alia-se, na decada de 70, no auge do movimento de reconceituacao, o estruturalismo haurido em Althusser, entre outros, e tambem o marxismo vulgar, que vem temperar uma analise de cunho marcadamente positivista e empiricista da sociedade, mas acalentada por um discurso marxista, aparentemente progressista e radical. (IAMAMOTO, 2013, p. 205--grifos nossos).

Munido de concepcoes conservadoras e tradicionais, o Servico Social, inicialmente, ancora-se em distintas e variadas referencias teoricas, ideologicas e culturais; caminha desde as bases mais doutrinarias e religiosas (com destaque para a Doutrina Social da Igreja Catolica) ate a recepcao, frequentemente acritica, de produtos e subprodutos da corrente positivista derivada de Auguste Comte e Emile Durkheim (NETTO, 2011b). No entanto, a partir da segunda metade do seculo XX, o Servico Social passa por importantes transmutacoes.

Sabe-se que o processo renovador do Servico Social emerge nos anos 1960, relacionado a inumeras ingerencias extrinsecas a profissao e influencias de um quadro societario (politico, ideocultural e economico) singular. Tem-se as "reformas de base", a "crise e colapso do populismo", a "reordenacao das posicoes dos paises imperialistas com relacao aos dependentes" etc. (QUIROGA, 1991, p. 87). Dentre os distintos processos que ocorrem na propria dinamica do capital, Netto (2011a, p. 144) sinaliza tres vetores que, convergidos, atingem (nao sem as devidas mediacoes) a reproducao da categoria profissional: a revisao critica nas Ciencias Sociais, "o deslocamento sociopolitico" das instituicoes que mantinham ligacoes historicas com o Servico Social (como a Igreja Catolica, por exemplo), e, por fim, um conjunto de contestacoes do movimento estudantil,

Alem disso, sabe-se tambem que, a partir da referida decada, o sistema capitalista enfrenta o fim paulatino das conhecidas decadas de ouro (NETTO; BRAZ, 2010), ao mesmo tempo em que determinados paises da America Latina passam por assombrosos processos ditatoriais (Brasil, Argentina e Peru, dentre outros). Desse modo, no interior da realidade latinoamericana --e por suposto brasileira--o Servico Social se desenvolve num ambiente que e marcado pela "crise do padrao de desenvolvimento capitalista do pos-guerra, pelo agravamento das desigualdades e pelo acirramento das lutas sociais e de mobilizacao das classes subalternas" (BARROCO; TERRA, 2012, p. 38-39).

Nesta conjuntura, o ambiente e "favoravel" as mobilizacoes dos subalternos em prol de pautas mais imediatas. Desse modo, juntamente com as demandas economicas, outras reivindicacoes--sociais, culturais e etnicas, dentre outras, de numerosos movimentos sociais--jovens, mulheres, negros etc.--sao notaveis. E nesse clima de efervescencia que as ingerencias mundiais imbricadas ao quadro de efervescencia social e de agitacao politica na America Latina (alem de outras especificidades nacionais) tambem impactam a profissao e impulsionam um cenario de questionamentos do Servico Social tradicional (NETTO, 2011a).

O lapso temporal que abriga tais questionamentos no contexto latino-americano compreende aproximadamente 10 anos (1965-1975) (IAMAMOTO, 2008, p. 205), desenvolvendo-se em distintos paises da regiao, tendo suas vertentes mais progressistas, num primeiro momento, refreadas pelas ditaduras implantadas com o apoio imperialista estadunidense. De acordo com Faleiros (1987, p. 51), "[...] a ruptura com o Servico Social tradicional se inscreve na dinamica de rompimento das amarras imperialistas, de luta pela libertacao nacional e de transformacoes da estrutura capitalista excludente, concentradora, exploradora".

Por Reconceituacao entende-se todo um processo de questionamento da profissao do assistente social, que se estendeu pela America Latina e que, iniciado nos anos 60, tem repercussoes e desdobramentos ate os dias de hoje. Esse movimento reuniu diferentes correntes de pensamento, que tinham entre si um ponto de convergencia inicial: o fato de serem contestarias de um Servico Social marcado pelo seu posicionamento mantenedor do status quo. (QUIROGA, 1991, p. 86-87).

Observe-se que o debate latino-americano em torno da Reconceituacao --alem de pautar a questao da superacao do subdesenvolvimento e possibilitar uma "grande uniao" (NETTO, 2011a, p. 146) entre profissionais, que abriu as vias para a dita renovacao (vide o Seminario de Porto Alegre em 1965)--, reune profissionais de varios paises, como Herman Kruse, Natalio Kisnerman, Seno Cornely, Ezequiel Ander-Egg, dentre outros da chamada "Geracao 65". Todavia, novos profissionais tambem foram inseridos neste movimento: Leila Lima Santos, Vicente de Paula Faleiros, Boris Lima etc.

De acordo com Iamamoto (2015), a "unidade desses novos interlocutores, apesar de suas diferencas internas, e a busca por fundamentos para a analise profissional no campo dos 'marxismos" (IAMAMOTO, 2015, p. 236). Notese que o "desenvolvimento das ideias de Marx, pos-Marx, foi extremamente diversificado, o que leva a que nao se possa falar de Marxismo e, sim, de marxismos, implicando diferentes compreensoes e incompreensoes de sua obra, com seus matizes variados" (QUIROGA, 1991, p. 93). Neste sentido, inicialmente o Servico Social se aproximou de determinadas correntes da tradicao marxista, como o maoismo, o neopositivismo estruturalista, o marxismo derivado da II (1) e III Internacionais (2) etc.

Em contrapartida, inserida de modo particular no bojo do movimento reconceptualizador latino-americano (1965/1975), a realidade brasileira passa igualmente por inumeras agitacoes sociais, culturais, politicas e economicas. E neste contexto que podemos encontrar e situar o ponto de partida da interlocucao do Servico Social com a tradicao marxista. Este encontro tardio em parte pode ser justificado pelo "profundo conservadorismo que dominava os meios profissionais" (NETTO, 1991, p. 85) desde sua origem (e, "ainda, a ausencia de uma definida preocupacao teorica entre os assistentes sociais"--NETTO, 1991, p. 85--grifos no original). Entretanto, nao prescinde da analise da propria realidade macrossocial na qual a profissao se insere e, logo, da propria compreensao da insercao da tradicao marxista no Brasil. Neste ultimo caso, ate 1950, o acumulo do pensamento marxista esteve diretamente ligado ao Partido Comunista do Brasil (PCB). Quando ha a quebra deste monopolio a partir de 1955 e o rebatimento da tradicao marxista em pensadores sem vinculos partidarios (como Florestan Fernandes e Alvaro Vieira Pinto), o processo de amadurecimento de uma tradicao marxista no pais e interrompido pelo regime de abril e sua politica cultural. Abriu-se um ambiente propicio para a emersao do "marxismo academico" e de "agrupamentos revolucionarios" (NETTO, 2011a).

Um dado factual a destacar e que, inserida no lapso temporal de vigencia do Movimento de Reconceituacao, nas primeiras colisoes com a referida tradicao, a descrita aproximacao se processa frequentemente junto a distintos interpretes de Marx, muitas vezes atraves de materiais de qualidade bastante discutivel, sobretudo por meio de manuais de divulgacao (NETTO, 1991, p. 86). Para Netto (2011a, p. 148-149):

E no marco da reconceptualizacao (ou reconceituacao) que, pela primeira vez de forma aberta, a elaboracao do Servico Social vai socorrer-se da tradicao marxista--e o fato central e que, depois da reconceptualizacao, o pensamento de raiz marxiana deixou de ser estranho ao universo profissional dos assistentes sociais. O recurso dos reconceptualizadores a tradicao marxista nao se realizou sem problemas de fundo: excepcionalmente com o apelo as fontes originais, no geral valeu-se de manuais de divulgacao de qualidade muito discutivel ou de versoes deformadas pela contaminacao neopositivista e ate pela utilizacao de materiais notaveis pelo seu carater tosco. Mais ainda: a diluicao da especificidade do pensamento de inspiracao marxiana no cadinho do ecletismo redundou em equivocos tao grosseiros que se chegou a supor a sua congruencia...

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