Para que serve o direito autoral?

AutorParanaguá, Pedro - Branco, Sérgio
Páginas13-38

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O sistema internacional de direitos autorais

Como surge o direito autoral no mundo?

A Antiguidade não conheceu um sistema de direitos autorais tal como o concebido contemporaneamente.

Como se sabe, os antigos impérios grego e romano foram o berço da cultura ocidental, em virtude do espetacular florescimento das mais variadas formas de expressão artística, principal-mente o teatro, a literatura e as artes plásticas. Era comum a organização de concursos teatrais e de poesia, nos quais os vencedores eram aclamados e coroados em praça pública, sendo-lhes também destinados alguns cargos administrativos de importância.

No entanto, nas civilizações grega e romana, inexistiam os direitos de autor para proteger as diversas manifestações de uma obra, como sua reprodução, publicação, representação e execução. Concebia-se, na época, que o criador intelectual não devia “descer à condição de comerciante dos produtos de sua inteligência”.1Porém, já surgiam as primeiras discussões acerca da titulari-

1Leite, 2005:116, que contém excelente análise histórica dos direitos autorais.

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dade dos direitos autorais. A opinião pública desprezava os plagiadores, embora a lei não dispusesse de remédios eficazes contra a reprodução indevida de trabalhos alheios.

Curiosos exemplos nos proporcionam os autores que tratam do tema. Um deles, Daniel Rocha, relata que Euforion, filho de Ésquilo, conquistou por quatro vezes a vitória nos concursos de tragédia apresentando peças inéditas do pai como se fossem suas. Assim, supõe-se que o filho herdava também a obra intelectual como se esta fosse uma coisa comum.2O domínio do autor sobre sua obra era tão grande que lhe possibilitava negociar até mesmo sua autoria. Há registros de um interessante caso em que o poeta Marcial discute com Fidentino, suposto plagiador de sua obra, os meios de aquisição de seus trabalhos. Marcial teria argumentado: “segundo consta, Fidentino, tu lês os meus trabalhos ao povo como se fossem teus. Se queres que os digam meus, mandar-te-ei de graça os meus poemas; se quiseres que os digam teus, compra-os, para que deixem de ser meus”. E teria ainda afirmado que “quem busca a fama por meio de poesias alheias, que lê como suas, deve comprar não o livro, mas o silêncio do autor”.3Atualmente, como se sabe, os princípios mais elementares das leis de direitos autorais vedam a transmissão da autoria da obra, independentemente do meio pelo qual se dê a cessão. Mesmo no caso de obras caídas em domínio público, o nome do autor, se conhecido, deve permanecer a elas vinculado eternamente. Assim, quando se realiza um filme como Tróia,4há que se fazer referência a Homero, em cuja obra A Ilíada o filme se baseia.

2Rocha, 2001:14.

3Ibid., p. 15.

4Troy, dirigido por Wolfgang Petersen em 2004.

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A invenção da tipografia e da imprensa, no século XV, revolucionou os direitos autorais, porque os autores passaram a ter suas obras disponíveis de maneira muito mais ampla. Nessa época surgiram os privilégios concedidos a livreiros e editores, verdadeiros monopólios, sem haver ainda o intuito, porém, de proteger os direitos dos autores.

Durante a Renascença, recuperou-se o gosto pelas artes e pela ciência, que haviam ficado latentes e sobejamente esquecidas ao longo de toda a Idade Média. Ao mesmo tempo em que a invenção da tipografia por Gutenberg foi capaz de popularizar os livros como nunca antes se imaginara possível, teve como consequência despertar o temor da classe dominante, representada à época pela Igreja e pela Monarquia, de perder o controle sobre as informações que estavam sendo propagadas, o que de fato começou a ocorrer.

Naturalmente, esse temor da Igreja quanto ao surgimento de ideias perigosamente hereges e da Monarquia quanto a mo-tins políticos acarretou, em pouco tempo, inevitáveis represálias.

Paralelamente, já nesse primeiro momento surgiram práticas de concorrência desleal. Os livreiros em geral arcavam com custos altíssimos para a edição das obras escritas. Além disso, faziam incluir nas obras gravuras e informações adicionais ao texto original. Não raro, entretanto, tais obras eram copiadas por terceiros, que as reproduziam e imprimiam sem tomar todos os cuidados necessários e sem arcar com os custos da edição original.55 Vê-se assim que a chamada “pirataria” não é uma prática exclusivamente contemporânea. É evidente que o avanço da tecnologia permite que a contrafação seja uma prática difundida e lucrativa, já que a cópia de obra alheia resulta em exemplares muitas vezes praticamente idênticos ao original e de custo muito reduzido, prejudicando-se em muitos casos a qualidade da obra e o investimento feito em sua concepção, manufatura e distribuição.

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Por isso, também os livreiros passaram a se preocupar com sua atuação no mercado e decidiram pressionar as classes dominantes para terem seus direitos resguardados.

Com o passar do tempo, os livreiros começaram a obter lucro com sua atividade, mas continuaram a remunerar os autores de maneira exígua. Os autores, por sua vez, passaram a entender que eram detentores de direitos que mereciam ser protegidos.

Foi nesse cenário de temor por parte das classes dominantes em razão das ideias que poderiam vir a ser veiculadas, de insatisfação dos livreiros, que viam suas obras serem copiadas sem licença, e também dos autores quanto à remuneração recebida que surgiram os primeiros privilégios.

Claramente, o alvorecer do direito autoral nada mais foi que a composição de interesses econômicos e políticos. Não se queria proteger prioritariamente a “obra” em si, mas os lucros que dela poderiam advir. É evidente que ao autor interessava também ter sua obra protegida em razão da fama e da notoriedade de que poderia vir a desfrutar, mas essa preocupação vinha, sem dúvida, por via transversa.

No século XVI começaram a ser atribuídas licenças aos livreiros para que publicassem determinados livros. Mas passou-se a exigir dele que tivesse autorização do autor para publicar sua obra.

No entanto, a crescente insatisfação dos autores e o desenvolvimento da indústria editorial acabaram por enfraquecer o sistema de censura legal. Assim, na Inglaterra, a censura chegou ao fim em 1694 e, com ela, o monopólio. Os livreiros, debilitados, decidiram mudar de estratégia: começaram a pleitear proteção não mais para si próprios, mas para os autores, de quem esperavam a cessão dos direitos sobre as obras.66Abrão, 2002:29.

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Assim é que, em 1710, foi publicado o notório Statute of Anne (Estatuto da Rainha Ana), que concedia aos editores o direito de cópia de determinada obra pelo período de 21 anos. Mesmo sendo apenas um primeiro passo, tratava-se de evidente avanço na regulamentação dos direitos de edição, por consistir em regras de caráter genérico e aplicáveis a todos, e não mais em privilégios específicos garantidos a um ou outro livreiro individualmente.

Na França, logo após a Revolução, um decreto-lei regulou, de maneira inédita, os direitos relativos à propriedade de autores de obras literárias, musicais e de artes plásticas, como pinturas e desenhos.

Mas somente em 1886 é que surgiram as primeiras diretrizes para a regulação ampla dos direitos autorais. Foi nesse ano que representantes de diversos países se reuniram na cidade de Berna, na Suíça, para definir padrões mínimos de proteção dos direitos a serem concedidos aos autores de obras literárias, artísticas e científicas. Assim, celebrou-se a Convenção de Berna, que desde então serviu de base para a elaboração das diversas legislações nacionais sobre a matéria.

A convenção impôs verdadeiras normas de direito material, além de instituir normas reguladoras de conflitos. Mas o que de fato impressiona é que, apesar das constantes adaptações que sofreu em razão das revisões de seu texto — em 1896, em Paris; 1908, em Berlim; 1914, em Berna; 1928, em Roma; 1948, em Bruxelas; 1967, em Estocolmo; 1971, em Paris e 1979 (quando foi emendada) —, a Convenção de Berna, passados mais de 120 anos de sua elaboração, continua a servir de matriz para a confecção das leis nacionais (entre as quais a brasileira) que irão, no âmbito de seus Estados signatários, regular a matéria atinente aos direitos autorais. Inclusive no que diz respeito a obras disponíveis na internet.

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A história no Brasil: um direito constitucional

Antônio Chaves (1987:27) divide a história do direito de autor no Brasil em três fases: de 1827 a 1916, de 1916 a 1973 e desse ano aos nossos dias.

O primeiro diploma que contém uma referência à matéria é dos mais nobres e reverenciados: a lei de 11 de agosto de 1827, que “crêa dous Cursos de sciencias jurídicas e sociaes, um na ci-dade de São Paulo e outro na cidade de Olinda”.7Embora o Código Criminal de 1830 previsse o crime de violação de direitos autorais, a primeira lei brasileira a tratar especificamente da proteção autoral foi a Lei nº 496/1898, também chamada de Lei Medeiros e Albuquerque, em homenagem a seu autor.

Até o advento dessa lei, no Brasil, a obra intelectual era terra de ninguém. Tanto era assim que Pinheiro Chagas, escritor português, reclamava ter no Rio de Janeiro um “ladrão habitual”, que ainda tinha a audácia de lhe escrever dizendo: “Tudo que V. Exa publica é admirável! Faço o que posso para o tornar conhecido no Brasil, reimprimindo tudo!”. O que ocorria é que, na época, era comum pensar-se que a obra estrangeira, ainda mais do que a nacional, podia ser copiada indiscriminadamente.8A Lei nº 496/1898 foi, porém, logo revogada pelo Código Civil de 1916, que classificou o direito de autor como bem móvel, fixou o prazo prescricional da ação civil por...

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