Serviço Social e democracia: perspectiva e princípio ético-político/Social work and democracy: a perspective and an ethical-political principle.

AutorOrtiz, Fátima Grave
CargoARTIGO

Introdução

As considerações apresentadas neste artigo resultam de pesquisa desenvolvida, cujo objeto é o processo de apreensão da democracia pelo Serviço Social brasileiro nas décadas de 1980 e 1990. Para tanto, viemos analisando, por meio de ampla revisão bibliográfica e documental, os fundamentos históricos e teórico-polÃÂticos que possibilitaram ao Serviço Social brasileiro, a partir dos anos de 1990, adotar a democracia como princÃÂpio ético-polÃÂtico, ainda que a mesma já atravessasse a ética profissional nos idos de 1980.

Neste sentido, apesar de ser reconhecido majoritariamente por esta categoria como o Código de Ética Profissional de 1993, fundamentado em princÃÂpios modernos e emancipatórios, observa-se que nem sempre suas tensões internas são apreendidas do ponto de vista teórico e histórico, nem são percebidas como fruto do amadurecimento polÃÂtico e teórico desta categoria, sobretudo de suas vanguardas. Em algumas ocasiões, acusa-se o código de adotar posturas reformistas, desqualificando seu caráter histórico, os avanços teóricos e filosóficos e, principalmente, os desdobramentos importantes para o trabalho profissional.

Deste modo, objetivamos neste artigo, ainda que considerando seus limites, apresentar a partir de que elementos e processos se deu a adesão do Serviço Social àperspectiva democrática. Para tanto, marcamos a "Virada do Serviço Social" como o grande evento que delimita cronologicamente essa operação. A perspectiva democrática se afirma exatamente com a "Virada" e passa a impregnar a agenda polÃÂtica do Serviço Social a partir de então. Afirma-se também na organização polÃÂtica da categoria--desde o acolhimento de determinadas pautas, vinculadas àconstrução de uma sociabilidade antagônica ao capital, até o funcionamento cotidiano das nossas entidades e na orientação das relações profissionais, bem como na própria formação. Assim, neste artigo priorizamos comentar esta adesão do ponto de vista dos códigos de ética, neste caso, os de 1986 e 1993, explicitando os graus de adoção da democracia como perspectiva e como princÃÂpio éticopolÃÂtico.

Considerando os limites deste artigo, ratificamos a relevância deste tema para a investigação no campo dos fundamentos do trabalho profissional, uma vez que é muito importante recuperar, do ponto de vista histórico e teórico, os processos pelos quais a categoria profissional brasileira construiu estes princÃÂpios, tal como aquele sobre o qual nos debruçamos nesta pesquisa, que é a democracia. Trata-se, portanto, não apenas de uma exigência posta àapreensão da historiografia do Serviço Social, mas de analisar sua trajetória para entender as tensões presentes nestes princÃÂpios e responder a elas criticamente, àluz dos desafios do presente.

A Virada do Serviço Social no Brasil e a democracia

É bastante significativa entre as produções do Serviço Social brasileiro--sejam aquelas consideradas bibliográficas ou técnicas--a análise e a revisita histórica apresentada por meio de entrevistas, depoimentos e afins que abordam o processo que culminou com a chamada "Virada do Serviço Social" (CFESS, 2012). Grande parte de tais análises e depoimentos mostra de forma inconteste e converge no sentido de afirmar que a "Virada" foi, simultaneamente, produto de um conjunto de processos polÃÂticos e econômicos que aconteciam na época no Brasil e no mundo, e também produziu uma série de desdobramentos ou "novas viradas" para o Serviço Social e seus sujeitos profissionais, individuais e coletivos.

Assim, tomada como produto, foram muitas as determinações internas--em que se destacam a reconceituação latino-americana e a aproximação com a tradição marxista, por exemplo--e externas ao Serviço Social que proporcionaram a "Virada" em 1979 (GUERRA; ORTIZ, 2009). Podemos afirmar, neste sentido, que tal processo expressou não somente a conjuntura da época no Brasil e no mundo, mas também recebeu as influências de acontecimentos revolucionários ocorridos em vários pontos da América Latina desde os anos de 1950 até o final da década de 1970. Nesta direção, podemos destacar:

A revolução cubana (1959), as novas lutas de classe na Guatemala (1960), a influência dos movimentos desencadeados o maio francês de 1968, o Cordobazo argentino (1969), a unidade popular do Chile (1970-1973), a grande mobilização social que levou a vitória da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) em 1979, a recuperação de parte da soberania do Canal do Panamá (1977) pelo Tratado Torrijos-Carter, a guerra de libertação em El Salvador (1980) [...]. (GUERRA; ORTIZ, 2009, p.125). As diversas experiências revolucionárias observadas no âmbito da América Latina, somadas a tantas outras na mesma época, como a explosão das guerras coloniais na África, expressam a histórica tentativa da classe trabalhadora de confrontar-se com o capital, em face de processos sociais enraizados no velho imperialismo que em alguns momentos entram em ebulição. É como afirma Iasi (2012, p. 14): "mesmo a forma alienada da vida deve ser, ainda assim, uma reprodução da vida. Há momentos em que as formas instituÃÂdas que antes permitiam a reprodução da existência se convertem em obstáculos que precisam ser superados".

No Brasil, o ano de 1979 representou a confluência de processos já instalados alguns anos antes; dentre os principais, destaca-se a implementação da ditadura empresarial-militar em 1964, que, afinada com os interesses internacionais do grande capital, promoveu a perseguição e eliminação de opositores, o arrocho salarial e a intensificação do trabalho, oprimindo a classe trabalhadora e a sociedade de um modo geral (NETTO,1991; SINGER,1978). A crise econômica dos anos de 1970 aprofundou a crise polÃÂtica e, a partir desta, as cisões entre os militares e também entre os empresários (IASI, 2012).

O declÃÂnio da ditadura, por um lado, e a explosão das greves do ABC, por outro, permitem que em 1979 se observe uma espécie de fusão da classe trabalhadora, no dizer de Iasi (2012), por meio da multiplicação, por todo o paÃÂs, de greves que contavam com apoio e solidariedade popular. Dentro dessa conjuntura, destacam-se dois acontecimentos muito importantes para a organização polÃÂtica e a consequente "Virada" do Serviço Social:

O primeiro foi a sua [de Luiza Erundina--FGO] participação no Comando Geral de Greve dos funcionários públicos. Na condição de presidente da APASSP, essa inserção não passa incólume [visto o protagonismo da APASSP na Virada - FGO]; a segunda foi a participação da APASSP na discussão da 'nova' Consolidação das Leis Trabalhistas e sua integração ao movimento de unificação sindical que apoiou a greve dos metalúrgicos do ABC. (GUERRA; ORTIZ, 2009, p.127). Desta forma, foi a partir de todo este caldo polÃÂtico-cultural existente no Brasil e fora dele, bem como do relativo acúmulo crÃÂtico do Serviço Social, especialmente na América Latina, que se proporcionou a "Virada" do Serviço Social brasileiro em relação ao conservadorismo que atravessou a trajetória da profissão e sua historiografia. A "Virada" nos colocou um ponto de inflexão neste percurso, uma vez que marcou objetivamente a tentativa de ruptura com esta tradição conservadora. O Serviço...

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