O Servico Social na atencao primaria a saude/Social Work in primary healthcare.

AutorOliveira, Andreia de

Introducao

O Servico Social e reconhecido como uma profissao da area da saude e, por isso, se insere nos processos coletivos de trabalho em saude, contribuindo para as respostas e demandas advindas do conjunto das necessidades humanas (1). Essas respostas, expressas no cotidiano da acao profissional --mesmo que em diversas situacoes circunstanciais ocorram em dimensoes imediatas--, requerem profissionais com capacidade critico-intelectual para decifrar necessidades sociais que se dao em relacoes mediatizadas pela totalidade social e sintonizadas com o seu tempo historico. A profissao, absorvida pela area da saude desde a sua origem no Brasil, passou ao longo desses anos por mudancas significativas no que diz respeito a formacao e ao trabalho profissional, especialmente a partir do Movimento de Reconceituacao.

Para Matos (2009), o Servico Social se insere inicialmente nos servicos de saude por meio de um exercicio profissional baseado no modelo medico clinico, ou seja, como um trabalhador complementar da atividade medica, por isso tambem chamado de "paramedico"--profissionais nao medicos que atuavam nos servicos de saude. No que se refere ao Movimento de Reconceituacao, desencadeado na decada de 1960 em ambito latinoamericano e marcado por rupturas e permanencias, Netto (2001) diz que esse processo assume tres direcoes no Brasil, denominando-as: modernizacao conservadora, de cariz tecnocratico e neopositivista; reatualizacao do conservadorismo, de inspiracao fenomenologica e que confere a intervencao profissional tracos microscopicos; e intencao de ruptura, caracterizada pela aproximacao a tradicao marxista. E importante registrar que nesse mesmo periodo de revisao das bases do Servico Social estava em pauta, no cenario brasileiro o Movimento de Reforma Sanitaria, que questionava o modelo sanitario vigente, ate entao baseado na tradicao da clinica-medica em um formato curativo-hospitalocentrico.

O reconhecimento dessa profissao como sendo da area da saude se faz pela contribuicao e insercao historica do Servico Social nessa area, tendo em vista sua capacidade de atender com competencia critica e propositiva as demandas e necessidades emergentes que circundam a vida em sociedade e que rebatem direta e indiretamente nas condicoes de existencia e reproducao da populacao. Ademais, o Servico Social e requisitado em todos os niveis de complexidade da saude para atender as multiplas expressoes da "questao social". Nesse sentido, tambem compoe a equipe profissional da atencao primaria a saude (APS), que, juntamente com outras profissoes, contribui para o atendimento e o acesso da populacao a politica de saude.

A "questao social" emerge na cena publica na primeira metade do seculo XIX, a partir da organizacao coletiva e luta da classe trabalhadora ao reivindicar direitos de cidadania. Desse modo, a "questao social", vinculada as lutas de classes, assume dimensao politica e precisa ser analisada com base no processo de acumulacao e reproducao capitalista, pois, contraditoriamente, na medida em que a producao da riqueza se torna cada vez mais coletivizada, o seu resultado final e sempre apropriado de maneira privada (IAMAMOTO, 2008).

Assim, a pesquisa sobre o Servico Social na APS no Distrito Federal advem da necessidade de estudos sobre o cotidiano de trabalho de assistentes sociais nesse espaco ocupacional, com o objetivo de identificar acoes desenvolvidas, atribuicoes, competencias, condicoes de trabalho, referencias e abordagens teorico-praticas presentes nos processos de trabalho em saude, em conjugacao com os principios e diretrizes do Sistema Unico de Saude (SUS), da Reforma Sanitaria e do projeto etico-politico da profissao. Isso significa apreender o trabalho de assistentes sociais sintonizado com os preceitos e direcionamentos do projeto profissional, o que pressupoe compreender a trama historica, contraditoria e tensa das relacoes sociais no capitalismo, sobretudo em um contexto de crise, de radicalizacao da "questao social" e de banalizacao do humano (IAMAMOTO, 2008).

O projeto etico-politico do Servico Social tem como referencia o Codigo de Etica do Assistente Social de 1993, a Lei n. 8662/93 de Regulamentacao da Profissao e as Diretrizes Curriculares da Abepss de 1996. Segundo Netto (2007, p. 4), os projetos profissionais apresentam

[...] a auto-imagem de uma profissao, elegem os valores que a legitimam socialmente, delimitam e priorizam seus objetivos e funcoes, formulam os requisitos (teoricos, praticos e institucionais) para o seu exercicio, prescrevem normas para o comportamento dos profissionais e estabelecem as bases das suas relacoes com os usuarios de seus servicos, com as outras profissoes e com as organizacoes e instituicoes sociais privadas e publicas. Bravo e Matos (2007) afirmam que na saude existem dois projetos em disputa: o projeto privatista e o projeto da Reforma Sanitaria. O primeiro deles tem requisitado assistentes sociais para desenvolver selecao socioeconomica de usuarios com enfase no aconselhamento, em acoes fiscalizatorias de planos de saude, no assistencialismo embasado na ideologia do favor e no predominio de praticas individuais. Ja o segundo se orienta pela democratizacao do acesso as unidades e aos servicos de saude, pelo atendimento humanizado, pelas estrategias de interacao da instituicao de saude com a realidade, com enfase nas abordagens grupais e multidisciplinares, bem como pelo acesso democratico as informacoes e estimulo a participacao cidada. Diante disso, evidencia-se que o projeto etico-politico do Servico Social esta sintonizado com os preceitos do projeto da Reforma Sanitaria.

Historicamente, o Servico Social se constitui como uma profissao dotada de competencia teorica, metodologica, tecnica e etico-politica, comprometida com as necessidades sociais e humanas da populacao. A profissao, a partir de uma direcao social critica balizada por um projeto etico-politico, e tendo na "questao social" seu objeto investigativo e interventivo, pode contribuir de forma efetiva para o acesso da populacao as politicas publicas e aos direitos sociais, como e o caso da saude.

Tal contribuicao se faz cada vez mais necessaria e ao mesmo tempo desafiante, considerando o contexto brasileiro recente de ruptura democratica apos a consolidacao do golpe parlamentar-judicial-midiaticoempresarial de 2016, que, desde entao, tem apresentado consequencias deleterias e nefastas em relacao aos ataques aos direitos, garantias e protecao social. De fato, a deposicao da presidenta Dilma Rousseff (PT), por meio de um golpe, demonstrou os limites de uma politica de conciliacao de classes no cerne da democracia brasileira de traco burgues. Isso ja estava formulado pelos conspiradores do golpe antes mesmo da sua consolidacao, como pode ser observado no plano denominado "Uma Ponte para o Futuro", apresentado pelo PMDB. Este consistia na programatica da ordem e progresso, na logica da eficiencia, eficacia e racionalizacao do aparelho de Estado, assim como em medidas de privatizacao de servicos e setores publicos.

O que se observa nesse cenario brasileiro de ameaca aos valores democraticos e o avanco do conservadorismo ultrarreacionario e o aprofundamento de medidas neoliberais que atingem visceralmente as condicoes existenciais de vida e de trabalho da populacao. O governo de Michel Temer, mesmo com dificuldades de governabilidade, baixos indices de aprovacao e popularidade, em um amplo acordo com o Congresso Nacional, aprovou de forma celere medidas regressivas e de austeridade fiscal, contribuindo para o acirramento das desigualdades sociais, elevados indices de desemprego, reducao e cortes de gastos sociais com politicas publicas. Demonstrase, assim, o proposito do governo de aniquilamento dos direitos sociais, transferindo para a iniciativa privada tal responsabilidade, como e o caso das politicas de saude, educacao, assistencia social, previdencia, dentre outras.

Em dois anos a frente da presidencia do pais, dentre as medidas regressivas, estao a Emenda Constitucional n. 95, de 2016, que estabelece o teto dos gastos publicos, ou seja, o congelamento durante 20 anos dos investimentos com as politicas sociais, atingindo brutalmente direitos como saude e educacao. Houve tambem a Contrarreforma Trabalhista (Lei n. 13.467/2017), que se apresenta falaciosamente com um discurso de "modernizacao das relacoes de trabalho". Mas, na realidade, esfacela e viola os direitos sociais do trabalho, abrindo caminhos para um amplo, aberto e profundo processo de degradacao e intensificacao de formas laborativas precarizadas, marcadas pela ausencia de garantias, direitos e protecao social da classe trabalhadora.

O balanco que se faz e dramatico, colocando para os movimentos sociais, os partidos de esquerda e o conjunto da classe trabalhadora a necessidade de formas organizativas, de resistencia e de luta coletiva para o enfrentamento dessa realidade. Isso porque o que esta em curso, e de modo acelerado, e um conjunto de medidas neoliberais que ameacam os direitos sociais e a sobrevivencia humana. Dessa maneira, sao adotadas medidas radicais, corrosivas e ofensivas para a classe trabalhadora, caracterizadas pela reorientacao do gasto publico em favor do grande capital financeiro.

Nesse cenario, o Servico Social, que atua por excelencia com as politicas sociais, se depara com complexas contradicoes, pois, ao mesmo tempo em que busca atender as demandas emergentes a partir das necessidades humanas e sociais, tambem se ve diante de limites institucionais, com a reducao e os cortes do orcamento publico para as politicas sociais. Tal conjuntura traz rebatimentos diretos e indiretos para o cotidiano profissional, como e o caso da saude e, particularmente, da APS. Longe de qualquer analise simplista, de natureza endogena ou descontextualizada do tempo presente, e importante analisar o trabalho profissional considerando questoes conjunturais e estruturais, ja que, numa relacao dialeticamente constituida, a...

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