Sexualidade e calça jeans: uma survey experimental de marketing

AutorDouglas Onzi Pastori; Paula Cristina Visoná
Páginas69-86

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1 Introdução

Partindo do argumento12 de que a moda captura e legitima discursos e dinâmicas de disseminação sígnica na sociedade mediante a captura de desejos no sistema de consumo – trikle down e bubble up – (termos devidamente aprofundados em parágrafos posteriores), propomos uma pesquisa empírica deste tema selecionando um estudo de caso – a calça jeans como afirmação (ou não) de uma identidade sexual. Coloca-se, lado a lado, signos que viabilizem socialmente o investimento do desejo, cujo objetivo é gerar um ciclo econômico-cultural de formação de subjetividades circunscritas no território do mercado,Page 70 onde a constante ‘guerra do sexos’ é instituída sob o aval discursivo das latentes diferenças sexuais.

Como a sociedade responde a isso quando chamada à consciência? Através de uma survey baseada em uma escala de marketing, tentamos investigar esse problema de forma ainda iniciática com um grupo um tanto quanto restrito, mas que, devido a esse próprio caráter experimental, acreditamos, possa ser aprofundado e expandido não só aos signos da sexualidade e sua relação com o mercado, mas a tantos signos quantos discursos possíveis de serem capturados e metabolizados mercadologicamente.

2 O Sistema Moda

Para falar do Sistema Moda, primeiramente, é preciso que se tenha consciência de sua temporalidade específica. Segundo Mendes e de la Haye:

(...) o sistema da moda veio a girar em torno da exigente programação bienal das coleções de outono/inverno e primavera/verão e, depois, foi ampliada de modo que incluiu coleções de meiaestação e linhas especializadas. O período testemunhou uma importante mudança na produção dos grandes estilistas, desde a alta-costura, que era, e ainda é, feita a mão e por encomenda para cada cliente, até o desenho de linhas de difusão mais baratas, de produção limitada e modas prontas para usar, rapidamente manufaturadas. (MENDES e DE LA HAYE, 2003, p.1).

A moda se renova em períodos alternados, através de uma sistemática que busca, a um só tempo, inaugurar e legitimar uma nova categoria de signos, associando-os a significados subjetivos. Esta prática, que se engendra por mecanismos como Fashion Groups – ou Berraux de Estilo – concomitante às áreas específicas da indústria têxtil e química, procura uma ordenação sígnica de modo a construir novos significantes que deem conta das necessidades de consumo, presumivelmente, apreendidas dos indivíduos.

A dinâmica, portanto, busca a constituição de um novo discurso, a ser instaurado sob a premissa de um ciclo de vida já pré-determinado – o período que corresponde aos lançamentos de novas coleções, a cada seis meses (estações do ano e seus desfiles primavera-verão/outono-inverno) ou em períodos mais curtos. Esta ordenação se engendra devido ao princípio de obsolescência constituinte do Sistema Moda, que opera sob a premissa de procurar despertar e atender desejos de consumo que se dizem identificados/originados em nichos distintos do mercado.

A organização destas prerrogativas procura, assim, atender dinâmicas que corresponderão a geração de mais e mais consumo, alimentando setoresPage 71 da indústria que se apropriarão de múltiplas vozes para constituírem uma linguagem uníssona. A configuração desta prática pode ser entendida através das considerações oferecidas por Michael Foucault que, em seu livro, A Ordem do Discurso, avalia as dinâmicas de poder contidas na configuração de um discurso, analisando, a um só tempo, o que está manifestado através da associação entre o signo e os possíveis significados, bem como, aquilo que está oculto neste arranjo discursivo, visto que o desejo e a sua possível apreensão, na maior parte dos casos, está no que não é dito (FOUCAULT, 2008).

Deste modo, é possível que percebamos a moda tanto por aquilo que é instituído como moda, ou seja, através do discurso institucionalizado pelas esferas que compõe o Sistema Moda, como por aspectos ocultos, que podem ser perceptíveis através do entendimento interdiscursivo, onde é possível identificar práticas de manipulação e apropriação das várias vozes que constituem o discurso original.

Este, por sua vez, pode ser entendido como o desejo potencial disperso no meio social que, ao mesmo tempo em que alimenta a sistemática da moda, também é passível de distorção e reordenação por ela, servindo a interesses que tanto buscam dar conta da necessidade social de conquistar e manter uma determinada posição social (JOFFILY apud TREPTOW, 2003), como de renovar o próprio discurso do Sistema Moda.

Pela constante repetição de seus ciclos – lançamento, aceitação, cópia e desgaste – a moda institui novas práticas discursivas, potencializadas pelas associações a seguidores, que poderão identificar, nestes ciclos, suas vozes reverberando pelas espirais de atuação do Sistema Moda. Este reconhecimento atua de duas formas: por um lado a distinção social, possibilitada pela moda, que se configura através de novos parâmetros de aparência, incita e corrobora a individualização (TREPTOW, 2003).

Por outro lado, a identificação com vozes semelhantes, constituída através dos signos e, portanto, passível de entendimento devido aos significados correspondentes, associa vários indivíduos em torno de um discurso uníssono, que procura disseminar uma determinada verdade através de dinâmicas ritualísticas (FOUCAULT, 2008). Estas dinâmicas ritualísticas são os mecanismos utilizados pelo sistema para a disseminação desta nova verdade, ou seja, os mecanismos utilizados para difundir as novas práticas discursivas, como books de tendências, salões de matérias-primas, desfiles, campanhas publicitárias, etc.

Analisando a primeira premissa, ou seja, a lógica de diferenciação, vemos que esta se encontra intimamente ligada ao surgimento da moda na sociedade europeia. Até a Idade Média, leis sumárias garantiam que certos trajes, constituídos por determinados tecidos e cores, fossem utilizados apenas por indivíduos distintos, como o Rei de uma nação e sua consorte. Deste modo, era impossível que uma determinada moda, ou seja, uma linguagem correspondente a um arsenal sígnico, se concretizasse, visto que as castas operavam por dinâmicas rígidas de vestimenta e atuação. Através do advento da RevoluçãoPage 72 Comercial, uma nova lógica se inaugura, possibilitada pelo enriquecimento da burguesia, que busca exprimir sua ascensão social através da aparência.

Segundo Treptow (2003), conforme esta mesma classe ia se organizando em torno de esferas de poder e, portanto, tornando-se influente na sociedade, suas vestimentas despertavam a curiosidade de outros indivíduos, que copiavam a forma de vestir desta, no intuito de assemelhar-se à classe que agora dominava. Assim, começou a tomar corpo uma nova sistemática social. Esse fenômeno deu início à moda, que no princípio, servia a interesses determinados, para depois servir a um sistema que se apropriou desta prerrogativa de diferenciação como forma de identificação de status entre classes diversas.

Essa dinâmica é intitulada de Trickle-Down (TREPTOW, 2003), ou seja, o topo da elite social – ou da moda, segundo a sistemática engendrada na sociedade – lança uma peça, ou um estilo, que após será decodificado por diversos atores correspondentes à cadeia constitutiva do sistema. Este gotejamento busca a propagação de um determinado discurso sob uma dinâmica de cima para baixo, prevendo novos gotejamentos sequentes conforme a apropriação, por parte das camadas inferiores da cadeia, do discurso gerador da sistemática.

A segunda prerrogativa, a lógica da associação de indivíduos em torno uma determinada verdade, prevê o funcionamento oposto. As vozes que irão constituir um determinado discurso oferecem ao sistema um arsenal de signos que possuem significados próprios, organizados em torno de um arcabouço de códigos originais. Ao despertar os interesses do sistema, este discurso será assimilado, modificado, decodificado e reorganizado em torno de um novo discurso, passível de compreensão e assimilação por indivíduos diversos.

As práticas ritualísticas do sistema tratarão, deste modo, de legitimar este novo discurso, sob o mote do consumo elitizado, que, a partir deste momento, iniciará um novo movimento espiral a partir da prerrogativa de funcionamento Bubble-Up (TREPTOW, 2003).

Partindo destas dinâmicas, é possível que se identifiquem dois caminhos distintos: o caminho associado às altas esferas dominantes, que ditam determinados parâmetros, no intuito de realimentarem uma mítica constituinte, e o caminho associado às organizações que atuam à margem do sistema, que se organizam em torno de códigos próprios e que, por isto mesmo, chamam a atenção das esferas dominantes. Estas, por sua vez, buscarão o entendimento e a apropriação destes códigos, percebendo a necessidade de atuar segundo esta dinâmica para engendrar a renovação cíclica de seu discurso.

O jeans pertence à segunda categoria de atuação, ou seja, à lógica Bubble-Up, que se caracteriza pela ebulição de um novo discurso. Mas, como este item do vestuário – um signo associado a significados diversos, inclusive, transgressão – conseguiu engendrar o caminho de ascensão na escala social e, ao mesmo tempo, manter-se por décadas como símbolo passível de apropriação por vários grupos? Para compreender esta dinâmica, é preciso conhecer um pouco da história do jeans.

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2. 1 O jeans: uma breve e significativa história

O jeans possui uma história, no mínimo, controversa. De item de uso exclusivo de mineradores e operários o jeans passou a ser uma peça cultuada pelas mais emblemáticas celebridades, compondo um espécie de discurso próprio. Associado às mais diversas simbologias durante seus cento e cinquenta anos de história, o...

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