Singularidades humanas - igualdades e meritocracia

AutorJurandir Sebastião
Ocupação do AutorJuiz de Direito aposentado
Páginas97-148

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De longe, somos todos iguais. De perto, diferentes (adágio popular). "Felizmente. Somos todos diferentes. Temos todos o espaço próprio de coi-sinhas próprias, como narizes e manias, bocas, sonhos, olhos que veem céus em daltonismospróprios. Felizmente. Se não o mundo era uma bola enorme de sabão e nós todos lá dentro a borbulhar, todos iguais em sopro: pequenas explosões de crateras iguais. Assim e felizmente somos todos diferentes."19

A visita de Dr Danilo

Já passava das 17 horas quando, em seu escritório, Dr. Fagundes recebeu telefonema interurbano de Dr. Danilo Pontes:

- E aí, Fagundes? Como estás e como estão as coisas aí em tua bela cidade?

- Por aqui, tudo muito bem - respondeu Dr. Fagundes. A única coisa que falta é você aparecer e participar de nossas reuniões. E vou aproveitar o telefone para, mais uma vez, reiterar o convite: quando você virá nos visitar?

- Pois é exatamente para isso que estou telefonando - respondeu Dr. Danilo. Vou prestar serviços amanhã numa cidade perto de vocês. E, se você não estiver compromissado, após o serviço pretendo "dar um pulo" até sua cidade, para uma visita e conhecer a sua tão afamada "Cozinha Cultural".

- Pois o prazer será enorme e você ficará hospedado em minha casa. É fácil você chegar. O endereço é o mesmo e, caso encontre dificuldade, qualquer pessoa poderá ajudá-lo. Vou esperá-lo amanhã, com muita alegria.

- Ok - respondeu Dr. Danilo. Devo chegar depois das 18 horas. Mas não fique me esperando. Nem se preocupe comigo. Você sabe como é serviço, não é? Tudo pode acontecer. Grande abraço. Até amanhã.

No dia seguinte, já eram 17 horas e Dr. Fagundes ainda estava em reunião na Reitoria da Universidade, onde era professor. Como os assuntos

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não se definiam, nem havia sinal de que terminariam em breve, pedindo licença deixou a sala e telefonou para o Jonas:

- Jonas, não chegarei antes das 18h30min. Providencie tudo para nossa reunião desta noite. Convide os amigos. Não se esqueça de insistir com o professor Gustavo Lavina para comparecer. E se Dr. Danilo chegar antes de mim, instale-o no apartamento de hóspede e peça para ele me aguardar.

- Já está tudo sob controle, respondeu Jonas. Já convidei seus amigos, mas, quando telefonei para o professor Gustavo, ninguém atendeu. Vou telefonar de novo.

Eram exatamente 18h40min quando Dr. Fagundes chegou a sua casa. Como Dr. Danilo ainda não havia chegado, achou ótimo. Inteirando-se com Jonas de que tudo estava sob controle, foi para o interior da casa, para o banho habitual.

Na hora costumeira foram chegando os convidados, uns se sucedendo aos outros. O Juiz de Direito, Dr. Eusébio, desta feita veio acompanhado de sua esposa, Marilena Gonçalves, que exercia o cargo de Assistente Social no Hospital Público da cidade; o advogado tributarista Geraldo Barbosa e o promotor de justiça Marcolino de Assis chegaram no mesmo automóvel; a seguir, chegaram Martins Almeida, advogado; Antônio Roberto, médico; Samuel Elias, religioso convicto; João Carlos, empresário; e a professora Marluce Costa. O professor Gustavo chegou mais tarde, por coincidência no mesmo horário em que chegava Dr. Danilo Pontes. Após as apresentações de praxe, em especial quando havia alguém novo na roda, mas sem formalidades, Dr. Danilo, com o seu ligeiro sotaque de gaúcho, não se conteve:

- Barbaridade, Fagundes! Que espaço extraordinário! Tudo de melhor qualidade e de bom gosto. Parabéns! Tu mereces!

- O que conta mesmo não é essa estrutura material, mas, sim, a qualidade dos amigos que me prestigiam e me alegram com suas presenças - respondeu Dr. Fagundes, com um sorriso.

E nesse rasga-seda geral e recíproco, todos ficaram à vontade, com papos informais, comendo os petiscos da preferência de cada um, assim como se servindo das bebidas disponíveis.

O convívio prazeroso e a fartura

Em dado momento, de entremeio à conversa geral, sobressaiu a afirmação da assistente social Marilena Gonçalves, esposa de Dr. Eusébio, exclamando:

- Que pena que o mundo não é desse jeito! Comida farta, conforto e alegria no conviver!

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O impacto dessa despretensiosa afirmação foi o de breve silêncio, interrompendo o vozerio geral. Parece que todos, instantaneamente, acordaram para a realidade da vida: realmente o mundo não é desse jeito. O empresário João Carlos rompeu o silêncio:

- Ééé! Realmente é uma pena! Mas penso que as pessoas são diferentes em tudo. E, por causa dessas diferenças grandes e pequenas, às vezes, o relacionamento se torna um desastre. Por exemplo, na minha empresa, cada empregado, ainda que aparentemente igual, ou quase igual, um é diferente do outro. E se a gente não souber lidar com essas diferenças, é só problema que brota por todos os lados.

- Concordo com sua observação - interveio o advogado Martins Almeida. No exercício da advocacia, lido com inúmeros tipos de personalidade: pessoas sérias; pessoas cínicas; pessoas pilantras; pessoas prepotentes e pessoas delinquentes. Mas, principalmente, lido com pessoas ingênuas, incautas ou hipossuficientes, que se tornam vítimas fáceis de espertalhões e estelionatários de todos os tipos. E assim por diante...

- Realmente, a sociedade humana é muito heterogênea, não obstante uma cultura geral, superficial, niveladora - entrou na conversa o juiz de direito aposentado Dr. Eusébio Marcondes.

E prosseguiu falando:

- Considero um absurdo a interpretação apressada e inconsequente que a maioria dos profissionais do Direito fazem, a meu ver, por conveniência, sobre o artigo 5Q de nossa Constituição Federal de 1988, a respeito de igualdade, afirmando que se trata de igualdade material, objetiva. A redação legal é tão clara e completa que não permite tergiversação. Diz ela, no artigo 5Q: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". Poucos dão valor à condição inicial "perante a lei". Nesse dispositivo legal, a especificação casuística que se segue, discriminando inúmeras hipóteses, em nenhum lugar contraria, nem poderia fazê-lo, a introdução da regra geral de "iguais perante a lei".

O advogado Martins Almeida, sempre pronto a contrariar, não deixou por menos:

- Mas, Dr. Eusébio, há casos em que a lei deve proteger, diferentemente, pessoas diferentes, a exemplo dos incapazes, para os efeitos de igualdade material.

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- Claro que sim, respondeu Dr. Eusébio. São as exceções. E prosseguiu: - Nesse ponto, e excepcionalmente, volto a repetir, o princípio da igualdade, quando se destina a garantir as condições mínimas para a sobrevivência biológica do ser humano, é material, é objetivo, com fundamento na solidariedade compulsória. Os incapazes, de qualquer natureza ou espécie, têm direito à proteção diferenciada e dela necessitam, na exata proporção da impossibilidade de competir e de sobreviver com um mínimo de dignidade. Mas a solidariedade compulsória, compreendida na máxima "a cada um, de acordo com a sua necessidade; de cada um, de acordo com a sua capacidade", há de ser equilibrada e tem seus próprios limites. Essa máxima, quando já satisfeitos os fatores de sustento da vida, é destinada a conter os abusos, os equívocos, a prepotência. Evidentemente que, no tocante à sobrevivência material, a satisfação pende de proporcionalidade em relação a toda a coletividade. Ultrapassada a fase da sobrevivência material mínima, indispensável, situada no reino da solidariedade compulsória, entraremos no mundo do supérfluo, do conforto, do luxo e do requinte. Aqui começa o reino da meritocracia, como regra soberana, porque, neste particular, o estímulo ao trabalho útil, via premiação proporcional, não pode ser frustrado.

- Mas o Estado não pode ficar inerte, diante de pessoas em estado de sofrimento, em razão de situações que comprometem a sobrevivência -voltou a falar o advogado Martins Almeida.

- Sim, respondeu Dr. Eusébio. É por essa razão que entendo que, no curso da história recente da Civilização Ocidental, quando se conciliou liberdade econômica, o "laissez faire, laissez passer", com solidariedade pessoal compulsória, despontaram as políticas governamentais das ações afirmativas. Por esse exato entendimento é que os portadores de cegueira total, ou de tetraplegia, ou de outras deficiências físicas substanciais merecem tratamento legal diferenciado, protetor, porque todas as restrições físicas e/ou psíquicas congênitas não são escolhas do portador. São aleatórias, são injustas, impostas pela natureza e geram impossibilidade de competir em igualdade de condições, para sobrevivência com um mínimo de dignidade e de conforto material. Para essas parciais ou totais incapa-cidades cabe ao Estado criar normas de proteção proporcional, ou seja, normas de solidariedade legal compulsória, de natureza material. Entretanto, sob a aparência desse...

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