Nação e (ou) Socialismo: Mariátegui, Haya de la Torre e a Internacional Comunista

AutorAndré Kaysel
CargoDoutorando em Ciência Política ? Universidade de São Paulo
Páginas52-71

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Introdução

Um dos lugares-comuns no debate em torno da história das ideias políticas e sociais na América Latina é discutir a adaptação (ou inadaptação) de teorias ou ideologias importadas da Europa ocidental para o contexto do subcontinente (Hale, 2001, p. 331). Por trás dessa perspectiva de análise, está o conceito de que a circulação e recepção das ideias está estruturada por uma lógica — análoga à da circulação de mercadorias — na qual o mundo estaria estruturado por um centro gerador e difusor de ideias, de um lado, e por uma periferia consumidora, de outro, a qual sempre procuraria adaptar ou repensar as ideias importadas do centro à luz de suas próprias realidades.

No que tange à história do marxismo na América Latina, talvez a fórmula mais forte, nesse sentido, seja a de José Aricó, para quem a teoria (marxista) e a realidade (latino-americana) “viveriam em mútua e secreta repulsão” (Aricó, 1982). Já Michael Löwy fala em duas posturas que teriam polarizado a trajetória do materialismo histórico na região: o localismo, de um lado, o qual recusaria o universalismo da teoria em nome do particularismo do real e, de outro, o cosmopolitismo, o qual submeteria qualquer particularidade ao caráter universal da teoria (Löwy, 1999, p. 9-71). Como exemplo da primeira postura, por ele considerada como “populista”, o autor brasileiro aponta a figura do teórico e líder político peruano Víctor Raúl Haya de la Torre (1893-1979), fundador e principal dirigente da Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA), o qual teria se afastado do marxismo por afirmar sua inadequação para o “espaço/tempo” da América Latina. Já como representativa da segunda postura, ele aponta a Internacional Comunista (IC), cujos representantes na região teriam aplicado de modo acrítico os esquemas do marxismo-leninismo.

Tanto para Löwy quanto para Aricó, uma das poucas figuras que, antes da Revolução cubana, teria escapado a esse desencontro teria sido o jornalista e militante peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930), cuja apropriação do materialismo histórico como método crítico para apreender o real teria lhe possibilitado produzir interpretações originais das realidades de seu país e da região. Mais do que isso, creio que se possa dizer que há um consenso de que Mariátegui foi o principal autor marxista de toda a América Latina (Therborn, 1995).

O marxismo de Mariátegui se afirmou, justamente, em uma dupla polêmica com o “localismo” de Haya de la Torre, por um lado, e com o “cosmopolitismo” da IC por outro, buscando, assim, realizar uma síntese entre o universal e o particular, a qual possibilitaria criar um marxismo enraizado nas condições latino-americanas. Diante disso, meu objetivo neste artigo é o de analisar o debate sustentado pelo autor dos Siete Ensayos de Interpretación de la Realidad Peruana, na fase final de sua obra. Como se verá adiante, sustento que essa discussão lançou categorias, problemas e temas produtivos que iriam pautar o debate da esquerda latino-americana ao longo do século XX, tais como: as modalidades da dominação imperialista, o conteúdo de um programa revolucionário e quais classes e grupos sociais seriam seus portadores.

Além disso, acredito que a posição ocupada por Mariátegui entre Haya de la Torre e a IC ilustra bem os impasses do marxismo para lidar com uma realidade que, embora

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inserida nos quadros culturais mais amplos do chamado “ocidente”, ocupa neste o papel de periferia1. O texto que se segue está estruturado em três partes. Na primeira, abordarei como Mariátegui, Haya e o Comintern discutiram o tema do imperialismo; na segunda sessão, reconstituirei o debate em torno do programa revolucionário defendido pelos contendores citados e os sujeitos sociais e políticos que, segundo seus esquemas teóricos, levariam as transformações adiante. Por fim, encerrarei com um breve balanço das implicações desta polêmica para o problema da relação entre o marxismo e a América Latina.

Antes, todavia, de entrar na discussão, é preciso fazer uma advertência: Mariátegui nunca sistematizou suas concepções políticas ou um programa de conjunto. Em carta ao seu companheiro Moisés Arroyo Posadas, o próprio Mariátegui dizia: “Trabalho também no livro que, sob o título de ‘Ideologia e Política Nacionais’, publicarei nas edições História Nueva de Madri. Este último livro, precisamente, conterá todo meu legado doutrinário e político. A ele, remeto tanto os que, nos Siete Ensayos, pretendem buscar algo que não teria porque formular em nenhum de seus capítulos — uma teoria ou um sistema políticos —, como os que, desde pontos de vista “hayistas”, me reprovam o excessivo ‘europeísmo’ ou insuficiente ‘americanismo’.” (Mariátegui, 1991, p. 139)2

Entretanto, não só o autor não o fez, como os originais desse livro se perderam e nunca foram encontrados. Diante desta perda irreparável, só resta ao estudioso reunir os elementos de um pensamento político disperso por vários textos. Uma tal reconstrução, como não poderia deixar de ser, é muito parcial e sujeita a contestações. Mas, em que pese essas deficiências, é o único modo de abordar as concepções de Mariátegui sobre a política revolucionária, forjadas no duplo debate com os adeptos da Ação Popular Revolucionária Americana (APRA) e a Internacional Comunista (IC).

Quem é o Iinimigo? O Problema do Imperialismo

Em 7 de maio de 1924, o ex-líder da Federação dos Estudantes do Peru e da luta pela reforma universitária, Víctor Raúl Haya de la Torre, a partir de seu exílio no México, funda a Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA). Inicialmente concebida como uma aliança continental de luta contra o imperialismo e pela unidade latino--americana, a APRA deveria ser uma frente única organizada em células nacionais. Seu modelo era o do Partido Nacionalista (Kuomintang) que conduzia a Revolução Chinesa, baseado em uma aliança que ia de setores nacionalistas burgueses até o nascente proletariado que já havia começado a se organizar no Partido Comunista Chinês.

Nesse mesmo período, a Internacional Comunista — confrontada com a derrota da onda revolucionária na Europa Central (1918-1923) — passara a observar com atenção

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o desenrolar dos inúmeros movimentos nacionalistas e anti-imperialistas que se passavam na periferia do capitalismo. Tomando a China como modelo paradigmático, a IC elaborou uma estratégia para a luta anti-imperialista no “mundo colonial e semicolonial” que defendia a constituição de frentes anti-imperialistas em conjunto com setores nacionalistas burgueses e pequenos burgueses (Slessinger, 1974, p. 43-53).

Ao mesmo tempo, alguns grupos nacionalistas, daquilo que viria a ser chamado de Terceiro Mundo, simpatizavam com a IC por suas declarações incisivas contra o imperialismo — a partir da “Conferência de Baku” em 1921 —, além de acompanharem com interesse os primeiros passos da União Soviética rumo à industrialização. Afinal, tratava-se de um país de estrutura socioeconômica atrasada que se propunha a se modernizar sem passar por uma etapa de pleno desenvolvimento capitalista.

Um desses nacionalistas da periferia foi justamente Haya de la Torre, o qual, em 1924, esteve na URSS. Da experiência soviética, Haya extrairia um modelo de industrialização, a partir da planificação estatal, e a concepção de partido leninista centralizado, os quais teriam grande impacto na posterior teorização do aprismo (Montesinos, 2000, p. 26)3.

Todavia, o fundador do APRA não era, nem nunca seria, um marxista ortodoxo. Aliás, o pensamento de Haya se constituiu em aberto confronto com este, o qual considerava inadequado para compreender a realidade latino-americana. Para ele, o uso do marxismo pela intelectualidade latino-americana era mais um exemplo de importação ideológica, como se pode ver pela seguinte passagem: “Nossos ambientes e nossas transplantadas culturas modernas não saíram ainda da etapa prístina do transplante. Com ardor fanático, tornamos nossos, sem nenhum espírito crítico, apotegmas e vozes de ordem que nos chegam da Europa. Assim, agitamos fervorosos, há mais de um século, os lemas da Revolução Francesa. E assim podemos agitar hoje as palavras de ordem da Revolução Russa ou as inflamadas consignas do fascismo. Vivemos em busca de um padrão mental que nos libere de pensar por nós mesmos.” (Haya de la Torre, 2000, p. 49)

Sua formação, portanto, recorria a fontes mais variadas, incluindo, por exemplo, o evolucionismo, o positivismo e a física relativista de Einstein que tinha grande repercussão no período4. Foi justamente dessa última fonte que retirou o conceito de espaço/ tempo histórico relativo.

A Indo-América viveria em um outro espaço/tempo — o do feudalismo —, diferente do da Europa — o capitalismo. Desse modo, se o marxismo era uma doutrina aplicável à realidade europeia, pois pertencia a seu espaço/tempo histórico, não o seria para a realidade indo-americana.

Um bom exemplo dessa combinação de relativismo espaço/temporal e evolucionismo é fornecido pela concepção de Haya de la Torre a respeito do fenômeno imperialista:

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“O aprismo, sintetizando seus pontos de vista teóricos, considera que o imperialismo, última etapa do capitalismo nos povos industriais, representa, entre os nossos, a primeira etapa. Nosso capitalismo nasce com o advento do imperialismo moderno. Nasce, pois, dependente e como resultado da culminação do capitalismo na Europa, Inglaterra especialmente.” (idem, p. 63)

Dessa maneira, se o autor endossa a famosa definição leninista do imperialismo como “fase superior do capitalismo”, ele a restringe à Europa e ao espaço-tempo do capitalismo avançado. Na Indo-América, o imperialismo teria sido, ao contrário, a “primeira fase” do capitalismo.

Nessa chave, o imperialismo seria não apenas uma etapa histórica incontornável, como também teria seu lado benéfico, por...

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