Solidariedade ou interesse? Reflexoes sobre a cooperacao no regime internacional dos refugiados/Solidarity or interest? Reflections on cooperation in the international refugee regime.

AutorLapa, Rosilandy Carina Candido

Introducao (1)

A busca por refugio faz parte da historia da civilizacao. Por diferentes motivos, ha sempre individuos isolados ou grupos que deixam a terra de origem para fixar-se em outro lugar. No primeiro momento, enquanto deslocados internos, eles buscam o recomeco dentro de suas proprias fronteiras. Depois, na condicao de imigrantes forcados, transpoem fronteiras e tentam superar as barreiras da distancia e da adaptacao ao meio e aos grupos locais.

A construcao do Regime Internacional dos Refugiados e fruto de acao de governanca voltada a protecao de pessoas que deixaram seu Estado de Origem. No entanto, o tema da cooperacao nao apareceu no texto da Convencao de 1951, apenas no seu preambulo, indicando que a mesma seria essencial para "reduzir os encargos indevidamente pesados para certos Paises" (2). Nesse sentido, cooperacao, no ambito do regime dos refugiados, significa o apoio da "comunidade internacional" aos Estados que recebem os fluxos massivos de refugiados, denominados Estados de primeiro asilo. Esse apoio esta relacionado aos demais Estados, oferecendo cotas de reassentamento para "reduzir os encargos indevidamente pesados" que recebem os Estados de primeiro asilo.

Quase sete decadas se passaram desde a normatizacao da protecao aos refugiados. Contudo, houve aumento no desequilibrio entre as necessidades apresentadas, afluencia de refugiados e a insuficiencia da resposta coletiva internacionalna forma de apoio aos Estados de primeiro asilo, bem como oferta de cotas suficientes para reassentamento. Por exemplo, ha, aproximadamente, 25,4 milhoes de refugiados no mundo,entretantoos Estados reassentaram, em 2016, cerca de 190 mil refugiados, com destaque para os EUA (96,8 mil), o Canada (46,7) e a Australia (27,6 mil) (UNHCR, 2017, n.p).

A problematica dessa pesquisa emerge do cenario de falta de cooperacao estatal no regime dos refugiados para aliviar os Estados de primeiro asilo que recebem contingente massivo de refugiados em seus territorios. Assim, formula-se a seguinte pergunta: como incentivar os Estados a cooperar com o Regime Internacional dos Refugiados?

A questao a ser analisada e se o regime dos refugiados teria condicoes de influenciar os Estados a cooperarem. Nesse sentido, alguns pesquisadores estudam novas estrategias, como a "criacao de um protocolo adicional a Convencao de 1951, articulando compromissos de responsabilidade compartilhada, cooperacao e solidariedade" (TURK; GARLICK, 2017, p. 656). Contudo, outros autores consideram nao ser possivel utilizar o modelo da Convencao de 1951, devido a sua inadequacao aos dilemas da atualidade, sendo necessaria uma politica que considere alternativas de cooperacao e que inclua a participacao de outros atores, como a sociedade civil e iniciativa privada, para incentivarem a cooperacao (BETTS, 2009).

Pressupoe-se que o discurso de solidariedade como incentivo principal para que haja cooperacao entre os Estados e inviavel para solucionar o problema e dar continuidade ao Regime. Assim, acredita-se ser possivel entender se sao as praticas das Nacoes Unidas que geram diferentes resultados ou se e o interesse dos Estados que determina as condicoes que os refugiados sejam recebidos e instalados nos territorios que buscam abrigo.

Como metodologia de pesquisa qualitativa, adotou-se como base epistemologica o metodo dialetico-descritivo (3), pois nao se pretende apontar uma solucao especifica para a questao da cooperacao do Regime dos Refugiados, mas estudar as suas variaveis na concepcao de solidariedade e interesse. Duas areas, Relacoes Internacionais e Direito, sao contempladas nesse estudo que analisou interesses e praticas dos Estados e organizacoes. Outro fator significativo e o recurso as obras dos campos da Sociologia e Antropologia ao longo dos conteudos relacionados a cooperacao e a solidariedade.

  1. Governanca e cooperacao para a positivacao da protecao aos refugiados

    Antes de analisar o regime internacional dos refugiados e as acoes de cooperacao, e preciso compreender o que sao as acoes de governanca e os regimes internacionais. Pensar em acoes de governanca foi possivel a partir das demandas que transpuseram as fronteiras e exigiam respostas combinadas entre os envolvidos para a solucao de questoes comuns. Aos poucos, temas que antes tinham resolucoes distintas entre os Estados foram trazidos para o debate na esfera internacional como parte do processo de globalizacao que reduziu a forca das fronteiras e encurtou as distancias.

    E importante salientar que ha tres aspectos fundamentais na definicao de governanca que merecem ser destacados: o carater instrumental, como meio e processo capaz de produzir resultados eficazes, a participacao ampliada nos processos decisorios com envolvimento de atores nao estatais e consenso e persuasao nas relacoes e acoes. De acordo com esse conceito, a governanca e essencial para a resolucao de problemas comuns por meio de articulacao dos diversos atores para enfrentarem as dificuldades (GONCALVES, 2011).

    Alguns temas debatidos no ambito da cooperacao e da governanca culminaram na adocao de principios que, por sua vez, traduzem conjuntos de normas e praticas para a sua efetividade. Quando isso acontece, ha a criacao de um regime no qual incide as acoes de governanca desenvolvidas. Nao ha roteiro definido sobre como um regime deve se constituir, mas ha interpretacoes de diversos teoricos sobre a sua formacao, manutencao e termino. Os regimes internacionais podem ser definidos como um conjunto de principios, normas, regras e procedimentos para as tomadas de decisoes de determinadas areas das Relacoes Internacionais, as quais convergem as expectativas dos atores. Ao analisar a estrutura do regime, Krasner (2012) correlaciona as avaliacoes de outros autores para determinar as causas estruturais e as consequencias dos regimes internacionais, considerando-as como variaveis intervenientes, ou seja, regimes variam de acordo com o problema especifico a ser abordado, os interesses e quantidades de atores envolvidos, a disposicao geografica, cultura e o processo de formalizacao.

    Enquanto ferramenta de coordenacao de comportamentos, um regime visa alcance maior do que acoes individuais nao coordenadas. Os atores esperam que o custo de cooperar seja compensado com as vantagens que a acao trara no futuro e, por esse motivo, aceitam participar do regime, considerado por Young (1989, p.361) um "sistema de barganha institucional".

    Os regimes podem ter impacto em situacoes que nao teriam resultados a partir de acoes individuais dos Estados ou acordos ad hoc. Contudo, regimes permeados por riscos morais, informacoes assimetricas ou desonestidade podem ter sua aplicabilidade prejudicada (KEOHANE, 1983).Desse modo, a atuacao particular dos Estados, dependendo da sua profundidade, pode causar reacao em cadeia dos demais atores, desde a mudanca nas regras e nos procedimentos, discussao sobre as normas ou ate mesmo na mudanca dos principios. Nesse sentido, o autor defende que "enquanto os Estados preveem que o seu comportamento ad hoc nao teria a mesma eficacia do que uma acao coordenada, optam por atender aos regimes" (KEOHANE, 1983, p. 330).

    Em consonancia com a sugestao de Carr (1982, p.361) de que se deve "estudar a historia antes de estudar os fatos", tracou-se, a seguir, o historico do Regime Internacional dos Refugiados construido no inicio do Seculo XX, devido ao numero expressivo de deslocamentos alem-fronteiras causados pela Revolucao Russa, Primeira e Segunda Guerras Mundiais (JAEGER, 2001).

    Por muito tempo, a concessao do refugio foi opcional. Ate a positivacao da protecao, em1951, os Estados poderiam estabelecer criterios proprios e, muitas vezes, discriminatorios para definirem a quem deveriam acolher. Durante a Segunda Guerra Mundial, estima-se a existencia de pelo menos dois milhoes de refugiados registrados na Europa (4).

    Em face disso, em 1950, foi estabelecido o Alto Comissariado das Nacoes Unidas para Refugiados (ACNUR), base institucional e, em 1951, foi elaborada a Convencao Relativa ao Estatuto dos Refugiados (Convencao de 1951), considerada a base normativa universal do instituto do refugio, uma vez que determinou as diretrizes do conceito de refugiado.

    De acordo coma Convencao, considera-se como refugiado aquele que tem fundado temor de perseguicao "em razao da sua raca, religiao, nacionalidade, grupo social ou opinioes politicas, e que estao fora do seu Estado de Origem" (ACNUR, 1951, Art. 1). A Convencao consagrou tambem o non-refoulement que pode ser concebido como uma garantia de nao expulsao pelo Estado de asilo que deve acolher o solicitante de refugio durante o devido processo legal para o seu reconhecimento (UNHCR, 1977).Tal direito ja constava do regime internacional de protecao aos refugiados desde a epoca de atuacao da Liga das Nacoes, tendo sido adotado pela mencionada Convencao de 1933 (5) e consagrado novamente na Convencao de 1951.

    Em seu preambulo, A Convencao de 1951 reconhece o carater social e humanitario do problema dos refugiados e declara que apenas a cooperacao internacional pode reduzir os encargos indevidamente pesados dos Estados de primeiro asilo, ressaltando que os Estados devem "fazer tudo que estiver ao seu alcance para evitar a tensao"(ACNUR, 1951, preambulo).

    O conceito de refugiado na Convencao de 1951 foi criado com duas limitacoes: uma geografica (aos refugiados na Europa) e outro temporal (aos acontecimentos ocorridos antes de janeiro de 1951). A fim de sanar tal limitacao, houve a revisao da abrangencia na Convencao de 1951, ocorrida em 1967, com a criacao do Protocolo sobre o Status dos Refugiados, indicando em seu preambulo que "todos os refugiados abrangidos na definicao da Convencao, independentemente do prazo de 1 de janeiro de 1951, possam gozar de igual estatuto", ou seja, removendo a reserva temporal prevista na Convencao de 1951 e, consequentemente, ampliando a protecao (ACNUR, 1967, Art. 1).

    Tal extensao da protecao continuou com iniciativas...

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