Supremo Tribunal Federal e a naturalizacao da barbarie/The Brazilian Federal Supreme Court and the normalization of barbarity.

AutorFlauzina, Ana

Introducao

Fazer uma leitura da atuacao dos orgaos do sistema de justica, notadamente do Supremo Tribunal Federal (STF), implica fundamentalmente iluminar aquilo que nao se altera no percurso historico do pais. Na contramao de uma tendencia que aposta na excecao como categoria analitica, ha uma perspectiva negra que entende a continuidade das estruturas politicas e sociais como a melhor forma de compreensao dos fatos (WILDERSON III, 2003).

A assuncao desse tipo de postura critica requer que, de partida, explicitemos as premissas que orientam nosso olhar. Aqui, assinamos um contrato com o direito a vida e a liberdade como a metrica a pautar a temperatura da acao do Estado. Trazendo a condicao especifica do povo negro para o centro do debate, sustentamos que o Poder Judiciario desempenha um papel significativo na ampliacao da chancela social para o aniquilamento de corpos negros, cuja dinamica e informada por hierarquias de genero e sexualidade que precisam ser denunciadas.

Nesse esforco de analise, empregamos a categoria genocidio em sua ampla acepcao, compreendendo-a como um processo de sufocamento das comunidades negras nas mais diversas frentes de atuacao institucional (FLAUZINA, 2008; VARGAS, 2010). Aqui, e necessario rememorar as dinamicas que determinaram a eleicao do racismo como pedra angular do Estado brasileiro e de suas instituicoes juridico-politicas.

Com Lelia Gonzalez (1988) aprendemos que a formacao historico-cultural do Brasil produziu uma neurose que tem no racismo seu sintoma por excelencia. O modelo de construcao de "superioridade" do europeu sobre povos nao-brancos na consolidacao do projeto colonial forjou-se na experiencia brasileira atraves de um modelo de organizacao (politica, social, economica e cultural) racialmente hierarquizada e estratificada. Nao por acaso, "a afirmacao de que todos sao iguais perante a lei assume um carater nitidamente formalista em nossas sociedades" (GONZALEZ, 1988, p. 73).

O racismo por denegacao (1) explicita processos de desumanizacao que se perpetuam atraves da convivencia entre institutos de igualdade juridico-formal positivada e praticas institucionais genocidas contra corpos negros. A gramatica da excecao nao se sustenta porque nos momentos considerados de estabilidade democratica a normalidade se acumpliciou com o exterminio e com os processos de morte em vida que nos foram impostos. Para os que foram racialmente estratificados na zona do nao ser (FANON, 2008), a violencia e a norma que sustenta o exercicio da legalidade e da liberdade como atributos exclusivos para a zona do ser (2).

Metodologicamente, alinhamo-nos ao feminismo ladino amefricano tal como proposto Lelia Gonzalez (1988), conferindo centralidade as permanencias que a colonialidade nos impoe atraves de suas mais diversas matrizes de dominacao (COLLINS, 2019) e a possibilidade de resgatarmos a experiencia comum que a diaspora africana nos legou (GONZALEZ, 2018, p. 335-344). Ainda que mobilizemos categorias analiticas como "genocidio", "colonialidade", "zona do ser", "zona do nao ser" e "amefricanidade", interessa-nos menos um trabalho sobre categorias analiticas e mais sobre realidades vividas que merecem ser compreendidas com a complexidade com que foram produzidas (CURIEL, 2020, p. 132).

Considerando esse aporte teorico-metodologico, entendemos que diferente do que foi testemunhado nos ultimos trinta anos de vigencia da Constituicao de 1988, que manteve o modelo de convivencia entre institutos formais de liberdade/igualdade e o exterminio massivo e multifatorial de gente negra, o contexto politico atual apresenta novidades que merecem ser destacadas. Desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016, observa-se um tipo de programa nefasto que disputa a intensidade da agenda genocida em curso no pais.

Se nao ha novidade no que tange ao animus do racismo, ja que os aniquilamentos sao uma constante do poder publico no Brasil promovidos por todos os governos, a assuncao de um projeto que celebra os exterminios traz consequencias tangiveis e preocupantes para as comunidades negras. O que significa, numa realidade como a brasileira, a necessidade de institucionalizar (atraves de dimensoes juridico-formais) o genocidio? Num pais em que maes dormem com a possibilidade de acordarem com suas crias despejadas em covas/celas clandestinas/institucionais, esse novo folego sadico nao deve ser tomado como algo menor (ROCHA, 2017).

Diante esse quadro, nos parece relevante tomar assento no lugar que nos cabe e destacar o envolvimento das trincheiras juridicas na conformacao desse estado de coisas. Para tanto, propoe-se, neste artigo, uma leitura amefricana (3) da atuacao do STF em casos envolvendo o sistema prisional brasileiro, notadamente a partir de dois julgados: o primeiro caso, a ADPF 347-DF que reconheceu o estado de coisas inconstitucional; e, o segundo caso relacionado ao HC 143641 SP, que trata das manifestacoes acerca da prisao domiciliar para gestantes, puerperas, maes de criancas e maes de pessoas com deficiencia, nas hipoteses do artigo 318 do Codigo de Processo Penal (CPP).

  1. Racismo e Sexismo na Cultura Juridica Brasileira: uma receita de morte

    O Poder Judiciario historicamente tem sido capaz de se blindar das criticas direcionadas as suas responsabilidades na perpetuacao das mazelas sociais no Brasil. A imagem de austeridade cultivada como ethos institucional, os pressupostos ilusorios da neutralidade, a aparente nao associacao com o mundo mais visivel das movimentacoes politicas tradicionais fazem com que esse ramo do poder tenha ficado menos exposto do que o Executivo e o Legislativo nas analises que emergem das demandas sociais e da pesquisa academica engajada.

    Essa tendencia vem sendo quebrada nas duas ultimas decadas com uma maior visibilidade das instancias judiciais, em especial do STF, na tomada de decisoes historicas que comecaram a pautar, cada vez mais, o Judiciario como poder a ser acompanhado de forma sistematica e critica (ALVES, 2017; SANTOS, 2017; ZAFALLON, 2018).

    As discussoes hegemonicas sobre a atuacao do Judiciario como ator politico central na articulacao com o Executivo e o Legislativo, assim como o papel por ele desempenhado na sustentacao do Estado brasileiro, costumam tomar a Constituicao de 1988 como marco temporal de analise, por supostamente ter criado condicoes institucionais mais favoraveis ao ativismo judicial. Partimos da hipotese de que com esse marco temporal perdemos a oportunidade de por em evidencia como o Judiciario tem historicamente atuado enquanto um poder politico e, por consequencia, de analisar de que maneira o sistema de justica tem tratado cidadaos de classes sociais, genero, raca, sexualidade e etnias distintas em nossa sociedade.

    Para entendermos como se da a manutencao das hierarquias de humanidade entre nos atraves do Direito--em periodos reconhecidos como de estabilidade democratica ou nao--, ao inves de tomar a Constituicao de 1988 como marco temporal para pensar a atuacao do Poder Judiciario, interessa-nos perceber o fenomeno a partir do advento dos cursos juridicos no Brasil e o papel desempenhado por eles na formacao do Estado Brasileiro.

    Os cursos juridicos no Brasil surgiram no contexto da independencia nacional. Embora com o fim do colonialismo como regime concreto em 1822, as estruturas coloniais e as hierarquias raciais, de genero, sexuais, culturais e economicas foram mantidas, revestidas com a roupagem do capitalismo liberal.

    A criacao de cursos juridicos foi discutida na Assembleia Constituinte de 1823 e procurou atender a demanda do Estado Nacional que se formava na logica de um liberalismo conservador de base escravista e na conformacao de uma elite propria para compor seu estamento burocratico e reproduzir a disciplina europeia (COSTA, 1992, p. 52). Os cursos que se formaram em 1827, inicialmente em Sao Paulo e Olinda, reproduziram a tradicao academica portuguesa.

    O Direito brasileiro se constituiu ao longo do seculo XIX, de um lado, tomando como modelos constitucionais a serem perseguidos os da independencia estadunidense e da revolucao francesa, alem de manter muitos dos institutos coloniais portugueses. De outro lado, resultou da negacao da unica experiencia constitucional radicalmente antirracista, que foi a decorrente da revolucao escrava haitiana, e que ja apontava os limites das experiencias e compromissos constitucionais estadunidenses e franceses do seculo XVIII.

    A historia dos institutos juridicos que afirmavam as liberdades publicas se desenvolveu, portanto, simultaneamente ao regime de escravidao, genocidio e exploracao dos povos colonizados (QUEIROZ, 2017).

    Nesse contexto, o sujeito de direito eleito representou a afirmacao de uma pretendida uniformidade, forjada pela exclusao material, subjetiva e epistemica dos povos subalternizados. A regua de protecao que determinou o padrao a partir do qual bens juridicos passaram a ser compreendidos e tutelados derivou da afirmacao da supremacia branca, masculina, cisheteronormativa, classista, crista e inacessivel as diferentes formas de ser e estar na natureza (PIRES, 2018).

    Constata-se, assim, que o Direito e o sistema de justica assumiram um papel central na formalizacao e na manutencao da estrutura da colonialidade, conferindo-lhe legitimidade e naturalizando seus institutos sob o signo da neutralidade. Dentro dessa dinamica, teoria do Direito e jurisprudencia passaram a consolidar os interesses dos agentes politicos hegemonicos do Estado brasileiro, excluindo do seu processo (nao apenas do acesso a justica, mas da construcao normativa de forma mais ampla) aquelas (es) cuja humanidade se negava.

    Considerando esse repertorio de vies autoritario e excludente, a incapacidade de o Direito produzir emancipacao para sujeitos, sujeitas e experiencias que nao sao levadas em conta no processo de determinacao dos bens juridicos a serem tutelados, nao pode ser simplificada em categorias como inefetividade/violacao de direitos. Ao contrario, apresenta-se...

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