Tecendo tramas acerca de uma infancia sem racismo/Weaving the threads of a childhood without racismo.

AutorEurico, Marcia Campos

Introdução

A elaboração deste artigo ocorre em meio às declarações conservadoras e reacionárias de algumas autoridades públicas e parlamentares, das três esferas de governo, contra os princípios fundamentais que norteiam as normas jurídicas brasileiras em relação à defesa intransigente da infância como fase importante do desenvolvimento de nossas crianças, na perspectiva do respeito às garantias e às liberdades individuais como patrimônio de toda pessoa humana. Os ataques frontais ao debate de gênero, a reafirmação do lugar de inferioridade das meninas e da supervalorização dos meninos, mais do que um discurso sobre as cores rosa e azul, expressa o recrudescimento da cultura adultocêntrica, patriarcal e, portanto, intolerante em relação à diversidade humana. Torna clara, também, a defesa da família tradicional brasileira, cujos moldes são arcaicos e conservadores. De maneira violenta, busca manter a rigidez dos papeis sociais, ainda que a realidade aponte diariamente que a desigualdade de gênero na infância tem rebatimentos em todas as etapas da vida.

Desqualificar o debate de gênero, assim como reduzi-lo aos aspectos biológicos, se reafirma como uma estratégia de manutenção da desigualdade e da opressão que sustenta o patriarcado, nos termos de Safiotti (2015). É no exercício da função patriarcal que os homens desfrutam de todos os poderes, controle e autoridade, e as mulheres exercem papeis subordinados. As relações sociais hierárquicas se estabelecem a partir de um código de conduta moral inflexível, que deve ser seguido independente de qualquer coisa e que é, inclusive, reproduzido pelas mulheres para a manutenção da ordem patriarcal.

O impacto do pensamento conservador sobre as crianças brasileiras, na sua condição de gênero e de classe, é gigantesco e se traduz em tratamentos desumanos, degradantes; atitudes justificadas pela necessidade de defender a moral, a família tradicional, os dogmas do cristianismo e o "direito natural" dos adultos sobre a vida das crianças. Toda essa rigidez moral tem como desdobramentos diversas formas de violência que perpassam o cotidiano das famílias. Quando a estes elementos se associa o irracionalismo presente nas diversas expressões contemporâneas do racismo, nos deparamos com a violência étnico-racial, que nem sempre deixa marcas visíveis na pele, mas seguramente incide sobre a construção da subjetividade e é difícil de ser compreendida e nomeada pelas crianças.

O racismo estrutural atinge de maneira visceral as crianças negras, perpetuando a segregação e a negligência do Estado brasileiro. Isto se verifica no que os ativistas negros Stokely Carmichael e Charles V. Hamilton, no final dos anos 1960, registraram na obra Black power: the politics of liberation in America, acerca do fato de que o racismo é onipresente e permeia a sociedade tanto no nível individual quanto no institucional, de maneira aberta ou subliminar. Registra-se, também, por Cashmore et al. (2000), a exemplo dos altos índices de mortalidade materno-infantil; das ações capitaneadas por instituições que têm o papel de promover o bem-estar biopsicossocial; da ausência de proteção aos civis com operações violentas nas áreas periféricas e de maior prevalência de população negra, onde a violência é autorizada pelo discurso de "guerra às drogas"; do genocídio da população negra como caminho para atingir a tão famigerada "paz social"; da ausência de condições mínimas de sobrevivência, como acesso à moradia e saneamento básico; e da suspensão do direito de ir e vir, que vem sendo negado inclusive às crianças em muitos territórios, quando são impedidas de frequentar a escola devido aos tiroteios constantes e/ou ao toque de recolher.

Em uma busca simples na internet é possível encontrar diversas reportagens sobre a violência urbana em comunidades. Relacionam-se com os conflitos entre facções rivais, reduzindo a questão à ação dos policiais em plantão no dia da ocorrência e desvinculando o fato da estrutura racista do sistema de segurança pública, sem problematizar o quanto o racismo estrutural produziu a favela como lugar para preto e pobre, como na música Haiti, interpretada por Gilberto Gil e Caetano Veloso. Ou no relato captado pela reportagem da Agência Pública:

Como muitas crianças de favela, Matheus sabe distinguir o calibre dos tiros pelo barulho. Uma das brincadeiras frequentes do menino, seu melhor amigo e muitos outros garotos na Rocinha é disputar quem vai ser o 'dono do morro', uma versão contemporânea do velho jogo de polícia e ladrão [...]. Em dias de confronto na favela, o próprio Matheus grava vídeos dele e da irmã e envia para a mãe, procurando tranquilizá-la. Ela lamenta: 'É uma coisa horrível, né? Uma criança crescer num lugar assim... É um lugar hostil, você nunca sabe o que pode acontecer'. Os tiroteios são o maior medo de Matheus: 'Eu acho que não é legal porque pode matar uma criança de bala perdida', ele diz. (ALMEIDA; GOUVEIA, 2018, n. p.). Nas próximas linhas busca-se problematizar a intrínseca relação entre infância negra e vivências de racismo, preconceito e discriminação étnico-racial dentro de uma sociedade como a brasileira, organizada a partir do racismo estrutural e institucional. Racismo que retira da maioria das crianças negras o direito de viver a infância apenas com as preocupações típicas desta fase da vida, atribuindo a elas responsabilidades acerca da provisão da vida material, via trabalho infantil; o amadurecimento precoce, que atinge de maneira mais perversa as meninas, obrigadas a cuidar da casa, das irmãs e dos irmãos mais novos, quando os responsáveis pela própria precarização do mundo do trabalho, entre outras questões, precisam sair para trabalhar e não dispõem de recursos para custear os cuidados prestados por terceiros; a autorresponsabilização dos meninos pelo sustento da família, via remota inserção no futebol profissional como possibilidade de receber altos salários; a expertise de saber como se defender e/ou onde se esconder nos momentos de tiroteios; e o desenvolvimento da capacidade de dizer não ao convite irresistível de trabalhar no circuito de produção e distribuição das drogas ilícitas, que via de regra vem acompanhado de maior segregação territorial, do risco de internação na adolescência para cumprimento de medida socioeducativa e do encarceramento na fase adulta.

Na intersecção entre raça/etnia, gênero e classe social enquanto produtores da hierarquização entre as pessoas, o ônus do estigma da incapacidade intelectual, da moral rebaixada, da violência nata, das condutas desviantes e da hipersexualização recai sobre os corpos negros. Ao longo da história do Brasil, tais corpos desafiam a ordem vigente, abalam a estrutura de privilégios e produzem formas alternativas de sociabilidade e resistência. As formas de organização e luta são vistas como ameaça pelo grupo dominante, que tende a descrever tais ações como balbúrdia, vandalismo, coisa de "preto", e, assentado no privilégio da branquitude, contraditoriamente busca adentrar a favela, a periferia, os territórios negros e os espaços de "aquilobamento" como lugar para espiar este "outro", visto como exótico.

Pensar o racismo e sua incidência sobre a trajetória de vida das crianças brasileiras pressupõe relacionar universalidade e particularidade no processo de produção e reprodução das relações sociais, bem como refutar análises fragmentadas acerca da presença negra do Brasil. Isso requer a apropriação de como a branquitude, ao mesmo tempo, constrói e fortalece a noção de superioridade e o direito ao privilégio/acesso do grupo branco. Ademais, reforça o lugar de inferioridade e o "direito" de não ter direitos à população negra e aos povos indígenas, diversos nas suas...

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