Entre a tempestade sangrenta e a silenciada bonança: a "democracia vulgar" nos processos políticos do Brasil/Between the bloody storm and the silenced bonanza: "vulgar democracy" in Brazil's political processes.

AutorBarboza, Douglas Ribeiro
CargoARTIGO

Introdução

Leandro Konder (2001) certa vez nos revelou a necessidade de o pensamento marxista se enriquecer mediante uma atenção analÃÂtica dos seus pontos fortes a partir de um diálogo com aqueles pontos considerados enfraquecidos pelo desenrolar da história. Dentre os pontos destacados, o autor trata das dificuldades de análises de novos fenômenos complexos da polÃÂtica e reforça a urgência em se retomar e aprofundar alguns temas que, muitas vezes, estão implÃÂcitos e não são desenvolvidos no pensamento de Marx; dentre eles, aqueles relativos àchamada "questão democrática". Para Konder, Marx não é em hipótese alguma um inimigo da democracia, mas sim "um inimigo de uma superficialização, de uma banalização do discurso democrático pelos liberais" (KONDER, 2001, p. 109). Nesta direção, podemos concordar quando Texier (2005) formula a compreensão de que o pensamento marxiano, além de ser essencialmente revolucionário, é fundamentalmente democrático.

Nossa concordância com esta formulação fundamenta-se na compreensão da existência de uma similitude analÃÂtica na divisão marxiana entre economia polÃÂtica clássica/economia vulgar e entre democracia/democracia vulgar. Ou seja, propõe-se demonstrar que a sustentação do caráter fundamentalmente democrático no pensamento marxiano pode realizar-se a partir da compreensão de que a relação de Marx com a questão da democracia se dá no mesmo patamar que se realiza a sua relação com a economia polÃÂtica--a partir de uma superação crÃÂtica dos fundamentos que baseiam esses conceitos na sociedade capitalista (1). Neste sentido, é preciso perceber como os problemas centrais colocados pelo desenvolvimento capitalista também se conformaram como fundamento objetivo dos dois perÃÂodos correspondentes ao trato da democracia pelo liberalismo e suas metamorfoses.

Assim como pode ser denominada de "vulgar" a economia que restringe o seu alcance àesfera da circulação, de forma analiticamente similar também pode ser denominada de "vulgar" a democracia que, ao estabelecer o terreno polÃÂtico, mutila desse terreno tanto as concretas condições de vida quanto as reais relações de poder que sobre esta estrutura se produzem. Com a consolidação da democracia burguesa (e a consolidação de seu caráter vulgar), formata-se uma comunidade polÃÂtica que é puramente a metamorfose do espaço da circulação: nela se deparam unicamente "cidadãos" sem consecutiva caracterização ou distinção; apenas compradores e vendedores de mercadorias que usufruem o "livre direito" de escolherem diferentes produtos polÃÂticos. Nestas condições, a democracia burguesa já nasce como uma "democracia vulgar".

No momento do capitalismo em formação, quando a pesquisa cientÃÂfica ainda era uma possibilidade, a compreensão das relações, processos e estruturas da democracia tal como ela se conformara até então--ou seja, a partir das referências das primeiras práticas que foram cunhadas sob a expressão grega, que a definia como poder soberano ou governo (krátos) pelo povo (demos), considerado no seu sentido social--possibilitou a construção de uma forma de organização polÃÂtica que precisava negar o seu caráter democrático como modo de garantir a dominação da elite burguesa. Ou seja, na necessidade cientÃÂfica de distinguir o capitalismo de qualquer outro sistema, a aceitação da democracia a partir da sua significação clássica (de participação polÃÂtica e o exercÃÂcio do poder de amplos setores sociais) chocava-se com as pretensões das elites que emergiam como dominantes e com os objetivos do liberalismo clássico em articular um desenho institucional que não apenas permitisse àburguesia controlar o Estado, mas também salvaguardar o que ela entendia por direito do indivÃÂduo: o direito do indivÃÂduo na concepção liberal implica a negação dos direitos da maioria dos indivÃÂduos.

Com a consolidação polÃÂtica e econômica da ordem burguesa, e com a ampliação das lutas entre as classes fundamentais--burguesia e proletariado--assumindo um patamar no qual se tornava impossÃÂvel negar tão diretamente a participação das classes trabalhadoras no âmbito do poder polÃÂtico, foi necessária uma redefinição da democracia, que passa a associála ao liberalismo e ao capitalismo, retirando-a de seu conteúdo econômico e social (WOOD, 2003). A negação cientÃÂfica teve de se transformar em assimilação descaracterizante, reduzindo a democracia no seu caráter puramente formal: se a ideia de democracia como igualdade implicava a subversão da ordem burguesa, sua tradução através de mecanismos de liberdades jurÃÂdicas e constitucionais permitiu a inserção desta demanda nos princÃÂpios básicos do pensamento liberal, reduzindo a sua reivindicação àdivisa estritamente "polÃÂtica". Ao incorporar o significado da democracia aos bens polÃÂticos ainda toleráveis pelos seus interesses particulares, as classes dominantes dela se apropriaram e naturalizaram-na, assim como as teorias revolucionárias foram "domesticadas" pelas classes dominantes inglesa, americana e francesa. Em outras palavras, quando o liberalismo e o capitalismo "incorporam" a democracia, só a incorporam na condição de que ela já nasça definida a partir de uma perspectiva "vulgar".

A consolidação deste caráter vulgar da democracia burguesa se amplifica com a assimilação do mercado polÃÂtico ao mercado econômico. Às vésperas da instauração da ditadura fascista na Itália, a apreensão com a turbulenta entrada das massas populares no cenário polÃÂtico e a impossibilidade de neutralizar de forma direta o sufrágio universal foram o estopim para que emergissem várias sugestões crÃÂticas àdemocracia, as quais propunham desde a adoção de medidas como o voto plural, o voto corporativo etc. (que, posteriormente, perderam o seu sentido com a brutalidade do fascismo), até a denúncia do sistema proporcional. Foi neste cenário que emergiu a necessidade de impulsionar a dissociação entre cidadania ativa e passiva e de relacionar esta última tanto a requisitos de censo e de cultura, quanto a requisitos de um sistema eleitoral de segundo grau, de base profissional ou corporativa. Foi este processo que desaguou nas teorias minimalistas a cargo dos pensadores elitistas liberais, os quais, consolidando o caráter vulgar da democracia burguesa, apontavam para a impossibilidade de realização dos ideais de participação polÃÂtica direta diante da complexidade do mundo moderno, da incapacidade das massas (compreendidas ou como criaturas inertes e maleáveis, ou excitadas e desregradas), e que redefiniram a democracia para o seu caráter "procedimental", por meio da qual é recolocada a serviço da conservação da ordem existente.

Cabe destacar que a questão das restrições democráticas se agravara no cenário clássico da construção das revoluções burguesas na medida em que o discurso liberal difundia-se através de uma forma autoapologética que ocultava as tensões e contradições das reivindicações de igualdade e liberdade e seu estreito entrelaçamento com a justificação da escravidão e aniquilação dos povos coloniais. Constata-se que os paÃÂses protagonistas das três primeiras revoluções liberais (Holanda, Inglaterra e Estados Unidos) não somente acumularam um ritmo radicalmente lento no próprio terreno histórico da emancipação polÃÂtica, como também são os protagonistas de um estrito entrelaçamento entre as reivindicações de liberdade e a justificação da escravidão e aniquilação dos "bárbaros" nativos. Estas revoluções consagraram, nas palavras de Losurdo (2006), o autogoverno de uma sociedade civil constituÃÂda ou hegemonizada pelos proprietários de escravos, fortemente decididos a não tolerar interferências por parte do poder polÃÂtico central e da própria Igreja. A exaltação da liberdade vem muitas vezes acompanhada da assimilação dos trabalhadores assalariados a instrumentos de trabalho, bem como da teorização do despotismo e até da escravidão em detrimento dos povos coloniais. Isso nos revela a imensa dificuldade de conciliar, nos marcos do liberalismo, a defesa das liberdades individuais com a realidade das relações polÃÂticas e sociais.

As contradições eram mais facilmente camufladas porque as diferentes formas de trabalho compulsório que sustentaram o processo de acumulação do capital foram transladadas do cenário da "liberdade" das metrópoles para o ambiente "indolente" e "selvagem" das colônias. O argumento de que os "povos bárbaros" coloniais eram incapazes de decidir pelo seu autogoverno serviu de substrato para que, no momento de redefinição da democracia nos marcos burgueses, a tradição liberal assimilasse os trabalhadores assalariados e os não proprietários à"multidão criança", cuja extensão dos direitos polÃÂticos deveria ser neutralizada. Assim, sob os marcos liberais e nas "vias clássicas" de transformação capitalista, a democracia (vulgar) burguesa se propaga no oco.

Desta forma, podemos afirmar a existência de uma similitude analÃÂtica contida na divisão marxiana entre economia polÃÂtica clássica/economia vulgar e entre democracia/democracia vulgar. Isso nos ajuda a entender que a imensa dificuldade de conciliar, nos marcos do liberalismo, a defesa das liberdades...

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