Tempo da Constituicao e Ponte para o Futuro: uma analise a partir da teoria critica da aceleracao social/Constitution time and Bridge for the Future: an analysis from the critical theory of social acceleration.

AutorCosta, Ernane Salles da, Jr.
  1. Introducao: Crise e Constituicao

    Ao menos no Brasil, a palavra crise e uma daquelas utilizadas de forma corrente por figuras publicas e pela impressa para traduzir um estado de turbulencias e de instabilidade, por vezes corriqueiros, no cenario vigente. Concebido dessa forma, o termo ja perdeu muito de seu componente de excepcionalidade: a gradativa normalizacao do conceito--fala-se a todo o momento em crise politica, crise economica, crise de valores, crise da civilizacao--tem duas consequencias: uma especie de banalizacao da ideia de crise e uma certa opacidade do conceito (PAIXAO, 2018).

    Considerando seu significado mais preciso ou pelo menos mais restrito, aquele proveniente dos dicionarios de lingua portuguesa (1), tem-se que crise indica "mudanca subita ou agravamento que sobrevem no curso de uma doenca aguda" ou "conjuntura ou momento perigoso" ou mesmo "desacordo que obriga instituicao ou organismo a recompor-se ou a demitir-se". Remete, portanto, a uma anormalidade que conduz a ideia de um momento de transicao ou ruptura.

    Significado semelhante foi atribuido por Koselleck (1999, p. 145) que, remetendo a Rousseau, afirma que, no sentido politico, crise consistiria num desdobramento do sentido medico a partir da metafora do Estado enquanto corpo politico. A partir dai, poderia se chegar a, pelo menos tres sentidos, segundo ele, da palavra crise: transformacao no curso de uma doenca, ponto decisivo no tempo e situacao alarmante (KOSELLECK, 2006, p. p. 357-400). Ela representaria um processo critico que nao acarreta apenas um periodo de inseguranca cujo fim seria imprevisivel, mas um momento de transicao que demanda decisao e escolhas. No mesmo sentido e em leitura de suas reflexoes, Ricoeur confirmaria esse significado do termo: "en penetrant dans la sphere politique, la crise dramatise la critique; elle apporte avec elle sa connotation medicale: son pouvoir revelateur a l'egard d'un mal profond et surtout son effet de decision entre l'aggravation ou l'amelioration" (RICOEUR, 1988, p.4).

    Partindo dessa nocao tecnicamente mais afinada do termo, ha razoes para enxergar, mesmo sob uma aparente normalidade institucional, tracos de uma verdadeira "crise constitucional" na conjuntura politico-juridica brasileira de nossos tempos, exposta pelo menos desde o "impeachment" da Ex Presidente Dilma Rousseff, sem correr o risco de uma banalizacao ou instrumentalizacao ideologica do termo. Trata-se de uma "crise", primeiramente, porque coloca em evidencia a excepcionalidade e o rompimento como chave de resolucao dos problemas. Ela e "constitucional", porque e a Constituicao de 1988 que esta colocada a prova, sua funcao esta em risco e "os procedimentos ordinariamente disponiveis para o enfrentamento de impasses e discordancias nao sao suficientes para resolver o impasse politico" (PAIXAO, 2018).

    Desde pelo menos 2016, acoes adotadas pela coalizao politica que se formou para viabilizar o processo de impeachment colocaram em evidencia a crise constitucional em que o Brasil esta submetido (PAIXAO, 2018), sustentadas especialmente por meio das contrarreformas iniciadas no governo Temer e que ainda estao em curso. Ha um nucleo comum distintivo da crise: ela e propriamente uma crise desconstituinte (CATTONI DE OLIVEIRA, 2016, STRECK, 2016, PAIXAO, 2018). As contrarreformas convergem-se num ataque aberto ao sentido performativo da Constituicao de 1988, delineado pelo compromisso intersubjetivo de reconhecimento reciproco dos direitos fundamentais, por meio do esvaziamento gradual do seu nucleo inclusivo.

    A promulgacao da Emenda n. 95 que impoe o teto de gastos publicos, em areas prioritarias como saude e educacao, e um dos exemplos concretos desse esfacelamento dos direitos fundamentais por meio do recuo das politicas publicas ao longo de vinte anos, o que implica submeter a Constituicao de forma nem tao lenta--e gradativamente -, a um estado de obsolescencia (2). A implicacao imediata e de abandono progressivo das promessas nao cumpridas da modernidade reafirmadas contrafactualmente no projeto constituinte por meio de sua inversao: enquanto a Constituicao estabelece um modelo de Estado Democratico de Direito comprometido normativamente com a erradicacao da pobreza e da marginalizacao e com a reducao das desigualdades sociais e regionais, como enunciado dentre os objetivos da Republica (art. 3 CR88), a Emenda n. 95 e seu reflexo antagonico, porque coloca empecilhos concretos para a realizacao de politicas publicas que coloquem em marcha o que foi pactuado em 1988. O movimento desconstituinte delineado no teto de gastos esta justamente em excepcionalizar os direitos fundamentais, de ordem vinculante, por 20 anos e, portanto, fazer com que a Constituicao de 1988 so valha naquilo que nao contraria a Emenda. Toda a politica do Estado brasileiro passa a vincular-se a tutela estatal da renda financeira do capital, a garantia da acumulacao de riqueza privada (STRECK, 2016).

    Esse desfecho, porem, nao e inevitavel e ainda nao se configurou por completo (PAIXAO, 2018). Uma compreensao mais apurada da crise faz-se necessaria para que se possa justamente contrapor uma resistencia aos seus impulsos desconstituintes, sob um "movimento reconstituinte" (PAIXAO, 2018). A proposta do presente texto, fruto de pesquisa em sede de investigacao de pos-doutoramento, e de oferecer, sob uma perspectiva nova, um diagnostico mais profundo das bases de tal crise a fim de oferecer elementos para supera-la. A tese defendida aqui e a de que a atual crise constitucional se expressa numa crise de consciencia historica que tem sido vivenciada no Brasil desde as jornadas de junho de 2013 e que se configura por meio de uma nova relacao entre tempo e Constituicao que ali se configurou. Em outros termos, a crise constitucional (PAIXAO, 2018), alem de ser uma crise desconstituinte (CATTONI DE OLIVEIRA, 2016), e tambem uma crise temporal. Isso, por sua vez, significa que ha uma racionalidade por tras desse movimento desconstituinte que pode ser compreendida a partir de um discurso que instrumentaliza o "tempo historico" e o "futuro" em si para gerar adesao social a partir da defesa aberta da aceleracao, a defesa de um futuro que deve chegar mais rapido, de modo a sobrepor a razao do mercado sobre a do Estado (3). Tal categoria sera analisada a partir de uma leitura especifica que proponho da obra de Hartmut Rosa da Universidade de Iena (Universitat Jena), a fim de construir uma analise do pano de fundo do quadro politico-constitucional brasileiro.

    Num primeiro momento, buscar-se-a entao tracar as origens dessa crise da consciencia historica no Brasil a partir de uma breve analise da sindrome da urgencia no discurso constitucional como legado das jornadas de junho. Em seguida, essa categoria da sindrome da urgencia sera aprofundada, a partir de sua aproximacao a outra categoria, a aceleracao social, desenvolvendo-a atraves das contribuicoes de Hartmut Rosa. Na sequencia, sera examinado, de modo exemplificativo, o programa "Uma ponte para o futuro", apresentado pelo ex-presidente Michel Temer como base de seu projeto de contrarreforma a partir da analise do proprio documento lancado pelo PMDB juntamente com a Fundacao Ulysses Guimaraes (FUG) a fim de se depurar suas intencoes e ideias a luz da teoria critica da aceleracao social. Por fim, buscar-se-a mostrar as consequencias da Emenda Constitucional 95, como um projeto de aceleracao social, para o tempo do Direito e da Constituicao.

    Cabe ainda destacar, em termos metodologicos, que a pesquisa em questao nao se trata de estudo de caso do programa "Uma Ponte para o futuro", mas sim um estudo teorico-conceitual, de perfil exploratorio e de analise bibliografica e documental que toma esse programa como exemplo. A proposta e, pois, demonstrar que "Uma ponte para o futuro" e parte integrante de um projeto (contra) normativo maior de desestruturacao da Constituicao que tem se operado a partir de uma aceleracao social em face do nucleo inclusivo da Constituicao. Uma das mais importantes contribuicoes desse artigo e oferecer aporte teorico para examinar esse fenomeno com sua devida complexidade e suas consequencias, hoje, para o discurso constitucional.

  2. A crise da consciencia historica e os legados das Jornadas de Junho

    Embora a crise constitucional se expresse de forma mais evidente com o processo de impeachment da ex Presidente Dilma Rousseff em 2016, ha indicios suficientes para afirmar que ela nao se instaurou ali, havendo desde ja um pano de fundo intersubjetivamente compartilhado, que se tornou visivel no contexto dos protestos que tomaram as ruas das principais cidades brasileiras em 2013. O objetivo desse momento e retomar aqui analises e conclusoes da pesquisa de doutoramento de um dos autores (COSTA JUNIOR, 2017), ainda que de modo breve, pois ha, naqueles estudos, conclusoes em aberto que apontam para compreensoes ainda por vir. Se naquele momento, a proposta era desvelar alguns dos sentidos possiveis das jornadas de junho, o interesse agora e apresentar o modo como esses sentidos apontam rastros e fragmentos de uma normatividade ainda presente como pano de fundo para se compreender a relacao, no Brasil, entre tempo e Constituicao (4).

    Ha, nos movimentos de junho, uma pluralidade interna e uma impossibilidade da apropriacao univoca de seu sentido. Naquele contexto, as ruas revelaram-se como um grande palco de manifestacoes que tornaram explicitas a heterogeneidade e as disputas politicas de sentidos, por setores progressistas e conservadores, em meio a uma pluralidade de pautas, de narrativas e de lutas por reconhecimento e distribuicao. Alem disso, o movimento sofreu transformacoes no seu curso, o que evidencia as diversas possibilidades de interpreta-lo. Propriamente, nessa analise, o enfoque se dirigira ao modo como a crise de representatividade e os discursos contrarios a corrupcao delimitaram ali as bases do discurso constitucional que emergiu desde aquelas revoltas sociais.

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