Teoria da Reproducao Social: apontamentos para uma perspectiva unitaria das relacoes sociais capitalistas/Social Reproduction Theory: notes for a Unitary Theory of capitalist social relations.

AutorRuas, Rhaysa

Introducao

A Teoria da Reproducao Social (TRS) e fruto de um acumulo historico de debates que, tao antigos quanto o proprio capitalismo, foram retomados no interior de movimentos feministas-socialistas (1) e antirracistas apos as lutas por emancipacao e reconhecimento das decadas de 1950 e 1960 nos Estados Unidos da America (EUA) e na Europa ocidental. Em um primeiro momento (2), a nascente perspectiva da reproducao social buscou desenvolver um problema antigo colocado diante da teoria marxista do valor-trabalho: incluir uma compreensao sobre as formas nao-remuneradas de trabalho e responder qual seria a base material da opressao das mulheres no capitalismo (VOGEL, 2013 [1983]). Entretanto, tal perspectiva se diferenciava de outras elaboracoes teoricas que, contemporaneas a ela, buscaram explicar a opressao de genero no capitalismo. Isto porque ao inves de partir de uma concepcao dualista sobre a realidade social (i.e., considerar a persistencia de um sistema patriarcal pre-capitalista independente e transhistorico que em uma determinada fase de seu desenvolvimento se combinaria com o sistema capitalista), suas raizes podem ser encontradas na busca por uma explicacao unitaria e sistemica para este fenomeno (YOUNG, 1981; VOGEL, 2013 [1983]).

A perspectiva dualista, tambem conhecida como "teoria dos sistemas duplos", ate hoje predominante nos estudos feministas e marxistas, rapidamente se mostrou problematica para as autoras que defendiam uma concepcao unitaria. De acordo com sua logica implicita, dois motores impulsionariam o desenvolvimento da historia: a luta de classes, a ser revelada a partir da analise do capitalismo, e a luta entre os sexos, a ser revelada atraves de uma investigacao sobre o patriarcado (VOGEL, 2013 [1983]), p. 135). Do ponto de vista logico e historico, tal perspectiva, que tambem pode ser encontrada na formulacao de Engels (2012 [1884]) sobre a Questao da Mulher, era incapaz de fornecer uma explicacao consistente das dinamicas existentes entre a exploracao capitalista e a opressao de genero, reproduzindo, ironicamente, a posicao que tentava evitar: a ideia de que o modo de producao capitalista--a "logica do valor"--poderia se reproduzir independentemente das relacoes de opressao e vice-versa. Ou seja, recorrentemente, reforcava uma concepcao teorica que separava a esfera da economia das esferas cultural, politica e social: o capitalismo corresponderia a primeira, enquanto o patriarcado as ultimas. Sua principal consequencia pratica foi levar o feminismo e o marxismo a uma disputa que incluia a hierarquizacao entre as relacoes de classe e de genero, de exploracao e de opressao. Esta ideia ora se manifestava entre aquelas autoras que viam a classe acima do genero, ora entre aquelas que viam o genero acima da classe, ou ainda, o genero como classe (ARRUZZA, 2019 [2010]; RUAS, 2019, p.30-35; 49-52).

Por outro lado, uma perspectiva unitaria se lanca a compreensao do sistema capitalista como complexo de relacoes sociais de exploracao, opressao, dominacao e alienacao, que se relacionam de forma integrativa, ontologica. Subordinadas a "logica do valor", tais relacoes constituem este sistema na mesma medida em que constituem esta propria "logica". Uma teoria feminista-marxista unitaria pressupoe, portanto, desde sua genese, a tentativa de aproximacao da totalidade social no sentido marxiano. Ela clama por uma perspectiva que supere as dicotomias entre producao e reproducao social, natureza e cultura, e em ultima instancia, base economica e superestrutura politica.

A viabilidade de construcao de uma teoria unitaria das relacoes sociais sob o capitalismo foi intensamente debatida por intelectuais marxistas antirracistas, anticolonialistas e feministas no seculo XX. Os movimentos culturais no Norte Global, a luta anti-imperialista na America Latina e os processos de descolonizacao da Africa e da Asia evidenciaram a importancia de uma elaboracao teorica unitaria: uma vez que a forma como um problema e enquadrado, colocado e pensado determina sua solucao, uma teoria unitaria seria fundamental para estabelecer uma alternativa viavel a totalidade das relacoes sociais de desigualdade que compoem o mundo em que vivemos. Entretanto, historicamente, este projeto foi mais bem postulado do que de fato realizado. Em diversas elaboracoes feministas-marxistas, atingia-se apenas uma visao parcial da realidade e recorrentemente a analise das relacoes raciais ficava de fora, sintoma decorrente da universalizacao da categoria "mulher" a luz da experiencia das mulheres brancas nos Estados de Bem-Estar Social europeus e norte-americanos. Estes projetos negligenciavam a totalidade das relacoes de genero, sexualidade, raca e classe, ora hierarquizando-as, ora invisibilizando algumas dessas dimensoes, recaindo nas mesmas analises dualistas que eram objeto de sua critica.

A construcao de uma teoria unitaria das relacoes sociais no capitalismo, portanto, continua em aberto. Forjada por formulacoes contemporaneas que buscaram superar as limitacoes historicas da construcao desta perspectiva, a TRS se reaproximou da nocao marxiana de totalidade social, recuperando-a explicitamente em contribuicoes mais recentes como, por exemplo, as obras de Bhattacharya (2017b) e McNally (2017). Este artigo busca apresentar os principais tracos distintivos da TRS, que surge como reacao pratico-teorica as tres decadas de acumulacao neoliberal e traduz uma importante possibilidade de renovacao da teoria marxista no seculo XXI. Para tanto, no primeiro item faco uma reconstrucao da nocao marxiana de totalidade social, que deve servir de chave para a compreensao da proposta unitaria tal como apreendida hoje pela TRS. Em seguida, passo a uma breve exposicao da obra de Vogel (2013 [1983]), primeira sistematizacao da teoria unitaria a reconceitualizar a critica marxiana do capital a partir da perspectiva da reproducao social e ponto de partida da TRS. Meu argumento central e que embora Vogel esboce preocupacao com a nocao de totalidade ao localizar a dinamica politico-economica da relacao entre producao de mercadorias e reproducao da vida, e nesse sentido, avance em relacao as perspectivas que lhe eram contemporaneas, sua interpretacao reflete os desafios de se elaborar uma teoria unitaria, o que se evidencia, dentre outras coisas, por sua teorizacao cega a raca. No terceiro item, reconstruo brevemente o cenario de crise do marxismo que dominou o debate academico na decada de 1980, coincidindo com a publicacao de Vogel e contribuindo para que esta permanecesse no ostracismo, para, em seguida, contextualizar o surgimento da TRS. Por fim, demonstro de que formas a TRS tem resgatado a nocao marxiana de totalidade social para recentralizar classe nos debates sobre as relacoes de opressao que constituem o mundo em que vivemos. Faco isso atraves da apresentacao do que considero suas principais contribuicoes para este debate hoje.

Resgatando o pensamento de Marx enquanto teoria da totalidade social

Nos Grundrisse, Marx (2011 [1857-1858]) define de forma explicita a categoria de totalidade social e articula as nocoes de aparencia (identidade) e essencia (diferenca) (3) ao enfrentar a questao de qual seria a relacao do modo de producao capitalista com o movimento historico geral. A categoria de totalidade social aponta a complexidade da realidade material e dos processos de apreensao desta realidade atraves do conhecimento cientifico.

Uma das afirmacoes mais famosas de Marx acerca da totalidade social e: "O concreto e concreto porque e a sintese de multiplas determinacoes, portanto, unidade da diversidade" (MARX, 2011 [1857-1858], p.54). Esta afirmacao sintetiza um dos aspectos centrais de sua filosofia e resume o sentido do materialismo historico dialetico que pretendo aqui resgatar: a unidade da diversidade; uma compreensao segundo a qual o real e entendido como sintese de multiplas determinacoes concretas que sao especificas, singulares, particulares e distintas--apenas na mesma medida em que formam um todo contraditorio, um universal. Neste complexo de relacoes sociais concretas, cada categoria ganha sentido sistematico apenas por meio de seu posicionamento com respeito as outras categorias e ao todo. Assim, a nocao marxiana de totalidade social nos permite afirmar a distincao de cada relacao social especifica que constitui o capitalismo sem suprimir a sua unidade e determinacao, e nem subordinar, homogeneizar ou diluir o particular no universal.

Ao analisar a producao material, i.e., a producao socialmente determinada dos individuos, Marx (2011 [1857-1858], p. 39-40) evidencia que a concepcao dos economistas e liberais classicos--de que haveria um impulso natural que condicionasse o comportamento dos individuos isolados em uma especie de "contrato social" garantidor da igualdade e da liberdade e viabilizador da troca de equivalentes entre proprietarios dos meios de producao e de forca de trabalho--e apenas uma visao parcial e idealizada da realidade, uma aparencia da sociedade burguesa. Tal relacao social aparece, para estes autores, como ponto de partida natural da historia. A partir do ponto de vista daqueles que sao constantemente expropriados e explorados pelo capital, Marx propoe uma investigacao historico-dialetica que e capaz de demonstrar como o individuo produtor, em verdade, e membro de um todo social maior, que o coloca em uma relacao desigual com aquele que compra sua forca de trabalho. Assim, Marx se contrapoe a perspectiva sustentada pelos liberais, e afirma que por tras dessa igualdade aparente ha tambem desigualdade, diferenca, nao-identidade. Do ponto de vista dos expropriados, essa sociedade e, na verdade, o seu oposto. A troca de equivalentes e tambem uma relacao extremamente desigual e violenta: a acumulacao de capital e um processo historico de pilhagem, de roubo, e colonizacao.

Marx (ibidem, p. 41) demonstra esse duplo carater da sociedade capitalista atraves da analise da producao e da relacao geral existente...

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