A teoria dos dois demonios: resistencias ao processo brasileiro de justica de transicao/The two demons theory: resistances to the Brazilian transitional justice process.

AutorOliveira, David Barbosa de
  1. Introducao

    A forma como Estados democraticos saidos de periodos ditatoriais enfrenta seu legado autoritario diz muito sobre como uma sociedade enxerga a si propria e desenha o seu caminho para o futuro. Situacoes nao (ou mal) resolvidas com o passado, seja distante ou recente, costumam deixar feridas abertas que inflamam em periodos de maior instabilidade politica. O Brasil, que tem sua historia enquanto pais independente marcada por conflitos e intervencoes responsaveis por excluir a populacao do direcionamento das acoes governamentais, tem uma tradicao de nao lidar diretamente com todas as consequencias dos traumas causados por violacoes aos direitos humanos. Essa experiencia nao e diferente com o tratamento do legado autoritario decorrente da ditadura civil-militar de 1964-1985.

    A tonica da recente transicao da ditadura para a democracia foi permeada, no campo juridico-politico, por disputas acerca de como tratar os responsaveis pelos crimes de direitos humanos praticados por agentes de Estado em desfavor de movimentos de resistencia ao governo. Nenhuma dessas controversias pode furtar-se a analise da Lei n. 6.683/1979, chamada "Lei de Anistia", que, ao mesmo tempo em que foi responsavel por extinguir a punibilidade dos crimes cometidos pelos funcionarios do governo e pelos membros da resistencia armada, abriu caminho para uma futura politica de reparacoes a serem concedidas pelo Estado em favor das vitimas do regime e dos seus familiares. A titulo de exemplo, podem-se citar a Lei n. 9.140/1995, que criou a Comissao Especial sobre Mortos e Desaparecidos Politicos e reconheceu como mortas pessoas desaparecidas em razao de participacao, ou acusacao de participacao, em atividades politicas, no periodo de 02/09/1961 a 15/08/1979; a Lei n. 10.559/2002, que criou a Comissao da Anistia e regulamentou o art. 8 do Ato das Disposicoes Constitucionais Transitorias a fim de instituir o regime do anistiado politico; e a Lei n. 12.528/2011, que criou a Comissao Nacional da Verdade (CNV).

    A criacao desse ultimo orgao nao passou imune a atencao de setores interessados em impedir a rediscussao do passado ditatorial brasileiro. Em 2010, ao fim do governo Lula (PT) (2003-2010), quando da elaboracao do decreto que instituiu um grupo de trabalho para desenhar normativamente a futura Comissao Nacional da Verdade, Nelson Jobim (1) e os comandantes militares criticaram seu teor por nao ter sido inclusa a investigacao de excessos praticados por grupos da esquerda armada (G1, 2012a). E importante mencionar que, de acordo com o art. 1 de sua lei constitutiva, a CNV visava justamente efetivar os direitos a memoria e a verdade historica dos fatos ocorridos no periodo ditatorial. Apos a polemica, o governo publicou um novo decreto, construido em acordo com o Ministerio da Defesa e a Secretaria de Direitos Humanos, em que a expressao "violacao dos direitos humanos" nao era associada a repressao politica. Safatle se manifestou sobre tal fato afirmando que declaracoes dessa natureza se baseiam na teoria dos dois demonios, um "malabarismo retorico de quem acredita que excessos foram cometidos dos dois lados e que, por isso, melhor seria deixar o passado no passado". Tal opiniao foi veiculada por meio de coluna no jornal Folha de Sao Paulo (2011) e serve de mola propulsora para essa investigacao

    Esse trabalho tem por objetivo demonstrar como os discursos politicos do entorno da disputa pelos direitos a memoria e a verdade fizeram uso da teoria dos dois demonios no contexto brasileiro. A partir da analise de seu surgimento e de sua utilizacao apos o periodo ditatorial argentino de 1976-1983, problematizou-se: em que medida se aproxima o uso discursivo da teoria dos dois demonios nas experiencias de justica transicional da Argentina e do Brasil? Buscou-se averiguar os eventuais pontos de consonancia e dissonancia presentes entre os conjuntos de discursos travados nas realidades geograficas mencionadas.

    Utilizou-se para tanto o metodo dedutivo, com analise de fontes bibliograficas e documentais. Fizeram parte do acervo pesquisado, alem da legislacao que regeu as experiencias transicionais, autores que problematizaram tal fenomeno e discursos de autoridades politicas e membros da sociedade civil que buscaram influenciar na construcao dos sentidos que performaram as disputas em torno das anistias e das responsabilizacoes por crimes de direitos humanos. As fontes documentais, em todas as subsecoes, foram trabalhadas de maneira contextualizada com a literatura sobre justica transicional e sobre a teoria dos dois demonios.

    O texto foi dividido em tres subsecoes. Num primeiro momento, problematizaremos a experiencia brasileira bipartida de incompletude do processo de justica transicional em relacao aos julgamentos dos crimes de direitos humanos (efeitos da anistia) e de avancos em relacao as medidas reparatorias, tudo isso a luz das disputas politicas que circundam tais fenomenos; a seguir, discutiremos o contexto do surgimento da teoria dos dois demonios na Argentina e o seu emprego a fim de, no primeiro momento da redemocratizacao, impedir as investigacoes dos atos praticados pelos agentes de Estado que cometeram graves violacoes aos direitos humanos; na ultima subsecao, analisaremos discursos de atores do campo politico brasileiro que podem ser encaixados na teoria dos dois demonios e verificaremos qual o uso dado a tal categoria.

    A inacabada transicao brasileira continua desafiando pesquisas nas ciencias sociais e humanidades a fim de se buscar a compreensao dos seus nuances. Muitas vezes, estrategias utilizadas em outras realidades historico-geograficas sao aqui usadas para dar vazao a resultados similares, o que parece ser o caso dos discursos responsaveis por vocalizar a teoria dos dois demonios no contraponto em analise.

  2. A batalha pelo esquecimento e pela memoria como legado do periodo Ditatorial Brasileiro de 1964-1985 e a incompletude do processo de Justica Transicional

    A selecao sobre o que deve ser lembrado (monumento, documento, registro do patrimonio cultural etc.) ou o que deve ser "esquecido" (anistia) nao e natural, algo que existe por si, mas uma elaboracao que reflete as lutas sociais e as disputas pelo poder. O corte intencional do Estado sobre a realidade, elegendo os fatos que serao "esquecidos", implica a formacao de um tipo de memoria que se fortalece a cada comemoracao (no sentido de memorar junto) do projeto ideologico dominante. A anistia impoe ideologicamente uma memoria, tanto que o fato, em si, nao e esquecido, permanecendo nas mentes dos que o vivenciaram.

    A par do "esquecimento" oficial, as memorias continuam circulando na sociedade, criando uma tensao entre as versoes oficial e a reprimida, o que gera uma disputa pela memoria. Para Pollak (1989, pp. 04), essas memorias subterraneas "prosseguem seu trabalho de subversao no silencio e de maneira quase imperceptivel afloram, em momentos de crise, em sobressaltos bruscos e exacerbados". A conjuntura sociopolitica do momento e determinante para definir se a memoria subterranea vira ou nao a superficie, possibilitando a disputa pela memoria oficial.

    Deste modo, o "esquecimento" proposto pela anistia, por exemplo, nao e, em si, um esquecimento, mas a selecao de uma memoria. Quando se fala da publicacao de uma lei com o objetivo de a sociedade esquecer fatos, ha uma impropriedade em face da impossibilidade de se impor o esquecimento. Nao e apropriado, pois, realizar uma vinculacao estrita da anistia com o esquecimento, porque, alem de isso conduzir a contradicoes teoricas e legais, deixa de fora uma ampla producao de memoria pelos instrumentos de reparacao que a acompanham.

    Essa vinculacao da anistia com o esquecimento induz tambem a naturalizacao do direcionamento ideologico do instituto juridico. Muitos estudiosos e operadores do Direito nao se dao conta disso e reproduzem o pensamento dominante acriticamente, afirmando, como faz Martins (1978, pp. 18), que a anistia "surge assim, de forma natural, como uma instituicao capaz de reconstruir o pais apos os efeitos de lutas civis e militares". Na verdade, a escolha do fato que sera "esquecido" e artificial, bem como nao e natural a selecao da memoria que sera (co) memorada. Essa escolha do que sera esquecido ou memorado protege uma memoria que referenda um determinado investimento politico-ideologico sobre fatos preteritos. Com o esquecimento pela anistia ou a selecao de uma memoria pelo direito a memoria e a verdade, o Estado investe sobre a realidade, selecionando ideologicamente determinados fatos, protegendo uma memoria que reproduz o pensamento socialmente hegemonico no momento da selecao, destacando fatos sociais que produzirao, ou nao, efeitos no mundo juridico.

    Se, como anota Ost (2005, pp. 47), "uma coletividade so e construida com base numa memoria compartilhada, e e ao direito que cabe institui-la", a Comissao de Anistia e a Comissao Nacional da Verdade organizaram as falas interditadas, possibilitando a escuta das memorias subterraneas, contraditando a versao oficial da memoria estatal. Deste modo, apesar da imposicao legal de que o fato destacado devera cair em esquecimento, em verdade, apenas dentro do Direito o efeito do fato queda olvidado, pois, na sociedade, esses grupos permanecem disputando a memoria oficial, constituindo instrumentos que superem o passado e afirmem suas lutas. E nesse sentido que Ricoeur (2007, pp. 462) destaca que a anistia pensada como imposicao de esquecimento "priva a memoria privada e coletiva da salutar crise de identidade que possibilita uma reapropriacao lucida do passado e de sua carga traumatica", impedindo que erros do passado venham a se tornar licoes para o futuro.

    Esquecimento e memoria nao sao dados naturais, mas construcoes sociais que caminham juntas. As discussoes sobre a justica de transicao levam em consideracao esses pressupostos, pois a anistia (selecao estatal do que deve ser esquecido, ou melhor, o que sera lembrado para que nao gere efeitos...

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