Trabalho Invisivel e Ilicito: reflexoes criminologicas criticas e feministas do aumento do encarceramento de mulheres por trafico de drogas no Brasil/Invisible and Illicit Work: critical and feminist criminological reflections on the increase in the incarceration of women for drug trafficking in Brazil.

AutorMartins, Carla Benitez
  1. Introdução

    Partindo da reunião de três importantes áreas do pensamento - quais sejam reflexões de pesquisadoras e pesquisadores das criminologias críticas, das criminologias feministas e das teorias feministas marxistas (1) - e tendo como fio condutor a divisão sexual e racial do trabalho, desde uma leitura da relação entre produção e reprodução social -, buscaremos realizar neste artigo uma contribuição ao estudo dos elementos determinantes do boom do encarceramento feminino por tráfico de drogas.

    Antes de tudo, justificamos a pertinência do estudo. A população em situação de prisão no Brasil já ultrapassou 770 mil pessoas. Mais do que isso, a velocidade do encarceramento e a sua quantificação proporcional também são elevadas, em comparação com o resto do mundo. Deste cenário destacamos a existência de um problema histórico ainda maior quanto aos dados da realidade do aprisionamento de mulheres, que, ainda que tenham se tornado um dos bodes expiatórios privilegiados do sistema, continuam sendo numericamente minoritárias--são 37.129, totalizando 4,94% do total da população penitenciária -, o que faz com que as informações sobre elas, assim como políticas específicas às mesmas, sejam invisibilizadas.

    Para nós, mais do que elemento pertinente de análise, compreender o fenómeno do aumento do encarceramento das mulheres nos últimos quinze anos é uma importante tradução da conjunção de fatores determinantes da onda punitiva neste período. É uma expressão significativa do impacto do Estado penal contemporâneo, desde o polo que mais diretamente pode sentir os efeitos dos tempos de barbárie permanente: as mulheres periféricas e superexploradas, predominantemente negras. Do mesmo modo, é também um retrato elucidativo do que significam as reconfigurações da interdependência entre produção e reprodução social na etapa de crise estrutural do capital e como isso impacta a vida das mulheres trabalhadoras.

    Para entender a dramaticidade do vivido, vale destacar que a proporção de mulheres presas subiu vertiginosamente neste período, sendo que 56,16% delas estavam presas por crimes de drogas em meados do ano 2019 (2), quase o dobro da porcentagem dos homens, que contabilizavam neste período 27,97% do seu total.

    Nestes dados foram contabilizadas de maneira insuficiente as mulheres custodiadas em carceragens de delegacias ou outros órgãos destinados à custódia de pessoas, que sejam administrados por órgãos do sistema de segurança pública estadual, pois há uma "ausência de informações com recorte de gênero sobre essa população para a maior parte dos estados brasileiros", o que "limita a análise do fenómeno do encarceramento feminino no Brasil e tem impacto direto sobre a posição ocupada pelo País no ranking mundial do encarceramento feminino" (INFOPEN MULHERES, 2018, p. 9).

    Quanto ao perfil deste aprisionamento feminino por tráfico, o relatório detalha:

    3 em cada 5 mulheres que se encontram no sistema prisional respondem por crimes ligados ao tráfico. Entre as tipificações relacionadas ao tráfico de drogas, o crime de associação para o tráfico corresponde a 16% das incidências e o crime de tráfico internacional de drogas responde por 2%, sendo que o restante das incidências refere-se à tipificação de Tráfico de drogas, propriamente dita (INFOPEN MULHERES, 2018, p. 53). Apenas por estes números já se evidencia o perfil desorganizado criminalmente da maioria das mulheres, como teremos oportunidade de melhor entender ao longo deste escrito.

    O Brasil é o quarto país em números absolutos de encarceramento de mulheres, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, da China e da Rússia. Quanto à taxa proporcional (números de mulheres presas por 100 mil mulheres), "o Brasil figura na terceira posição entre os países que mais encarceram, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e da Tailândia" (INFOPEN MULHERES, 2018, p. 13).

    Assim como nos dados gerais do aprisionamento, o elemento ainda mais preocupante refere-se à velocidade do encarceramento (a variação da taxa de aprisionamento), sendo que na situação específica da mulher o número brasileiro é incomparavelmente alarmante, pois "em um período de 16 anos, entre 2000 e 2016, a taxa de aprisionamento de mulheres aumentou em 455% no Brasil. No mesmo período, a Rússia diminuiu em 2%" (INFOPEN MULHERES, 2018, p. 13-14). Já em números absolutos o aumento de 2000 a 2016 foi de 656%, enquanto o masculino neste mesmo período foi de 293%.

    Na mesma toada dos dados gerais, 45% das mulheres, como uma média nacional, são presas provisórias, entretanto com uma variação temporal maior, pois, comparando ao relatório publicado em 2018 com o de dois anos antes, o aumento foi de 15%.

    Elementos estruturais e de perfil sociodemográfico da população feminina privada de liberdade no país serão descritos em momentos oportunos, mas já podemos ter noção da dimensão do impacto social que a máquina penal tem gerado no Brasil desde o processo de redemocratização, especialmente a partir dos anos 2000.

    Para nós, a explicação deste fenómeno não está nem desde um a priori de que houve um aumento da prática de crimes por mulheres, nem está em uma análise estrita sobre a atuação das agências do controle penal brasileiro, especialmente as polícias, Ministério Público e Judiciário. O que defenderemos e desenvolveremos neste artigo é que estas análises precisam estar dialeticamente permeadas pela reflexão acerca da condição das mulheres na sociedade brasileira hoje, especialmente suas condições de trabalho (desde aquelas atividades reconhecidas como trabalho formal e informal, lícito ou ilícito até as dimensões do trabalho reprodutivo) e o reflexo disso em sua vida social de conjunto.

    A ordem social sob a qual vivemos é nitidamente racista, sexista e heterocisnormativa. Essa "relação-capital" engloba todas as instâncias de reprodução social em seu círculo autoexpansivo, sendo central a percepção de que se traduz em relações sociais de gênero, classe, raça e sexualidade, destacando-se a importância do giro epistemológico feminista e anti-racista para a compreensão estrutural da ordem social posta.

    Desde este horizonte teórico e metodológico imediatamente anunciado, o presente artigo costurará suas ideias desde o seguinte percurso:

    i. Realizando uma breve exposição teórica acerca da origem da divisão sexual do trabalho, a partir da defesa de ideias de autoras que partem seus estudos da análise da dimensão da reprodução social, desde uma perspectiva da teoria unitária, combinadas com a noção de consubstancialidade das relações de gênero, classe e raça, defendida pela escola materialista francesa, com forte enraizamento no Brasil;

    ii. Estudando as teorias históricas sobre a "delinquência" feminina e seus limites, a partir da defesa da noção de seletividade penal, combinada com as desigualdades de gênero na sociedade capitalista-patriarcal. O que nos permitirá caracterizar o sistema penal androcêntrico e seus efeitos sob a vida das mulheres;

    iii. Analisando com mais pormenores o perfil das mulheres trabalhadoras do tráfico, buscando perceber as condições dessas mulheres no mundo do trabalho e na vida social. A condição delas no tráfico é reflexo e expressão da divisão sexual do trabalho e das condições de reprodução social na ordem do capital, uma vez que o tráfico possibilita a reprodução da divisão sexual do trabalho;

    iv. Desde esta compreensão da relação entre reprodução social e a condição destas mulheres como trabalhadoras do tráfico, o artigo findará suas análises descrevendo linhas gerais do processo de trabalho do tráfico de drogas e os papeis desempenhados pelas mulheres. Aqui se evidenciará a outra faceta da divisão sexual do trabalho, percebendo (ou complexificando este entendimento) as causas da ocupação de lugares mais vulneráveis dentro da hierarquia do trabalho ilícito.

    Desde estas quatros etapas, esperamos conseguir complexificar o entendimento das múltiplas determinantes a fundamentarem as razões do aumento exponencial de mulheres em situação de prisão por tráfico de drogas.

  2. Buscando os fundamentos da divisão sexual do trabalho

    Podemos perceber que a mulher foi inserida, de maneira significativa, no mundo do trabalho, há muito tempo e cada vez mais. Do mesmo modo, na maior parte do globo está em condições de igualdade formal aos homens, em decorrência de muitos direitos terem sido por elas conquistados. Ainda assim, perpetuam-se desigualdades salariais mesmo ocupando-se cargos similares (3), há disparidades significativas em cargos de chefia ou liderança, além de permanecerem elevadíssimos os índices de violência de gênero e o trabalho doméstico, bem como os mais precarizados, continuarem sendo majoritariamente femininos.

    Ainda de acordo com a mesma Pesquisa referida acima (Pnad Contínua), do IBGE, as mulheres gastam uma média de 21h18min semanais dedicadas aos afazeres domésticos, enquanto os homens gastam 10h54min. Ou seja, as mulheres gastam 95% mais tempo em afazeres domésticos do que os homens.

    Complexificando a análise, importante evidenciar como o racismo institucional se expressa nas diferenças salariais, estando mulheres negras na base, com menores salários, realizando majoritariamente trabalhos precarizados, sobretudo como trabalhadoras domésticas (4). Do mesmo modo, observa-se a maior quantidade de mulheres negras que morrem nos atendimentos de saúde ou que adoecem por doenças como diabetes e hipertensão em comparação com outros grupos de mulheres (DAVIS, 2011 e CARNEIRO, 2003), além dos índices multiplicadores de feminicídio de mulheres negras no país.

    Não mais mulheres escravizadas, mas individual e institucionalmente violentadas, oprimidas e exploradas sob mecanismos diferenciados. Isto nos reforça o entendimento das autoras consubstancialistas que concebem as dimensões de gênero, raça e classe não apenas como marcadores de diferença, mas também como estruturantes da ordem social posta-denominadas por elas como relações sociais e não exclusivamente intersubjetivas.

    A opressão das...

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