As Relações de Trabalho e a Disciplina Legal das Cooperativas de Trabalho

AutorMaria do Perpetuo Socorro Wanderley de Castro
Ocupação do AutorDesembargadora Federal do Trabalho, TRT 21. Mestre em Direito, Processo e Cidadania, na UNICAP, Recife,PE. 2012
Páginas45-61

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1. Introdução

A Constituição da República do Brasil enuncia a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito e assim lhe confere o significado de princípio jurídico central do sistema e elemento unificador do ordenamento jurídico.

A dignidade da pessoa humana é o conceito pelo qual se reconhece em cada pessoa o direito ao respeito do Estado, da comunidade e dos seus semelhantes que se reflete em um conjunto de direitos e deveres que constitui obstáculo a todo e qualquer ato que a degrade, ao mesmo tempo, que vem a assegurar as condições existenciais mínimas para uma vida em interação com os demais seres humanos.

Nas relações de trabalho, ela se manifesta na oposição ao movimento de precarização de que resulta a exclusão e inobservância dos direitos sociais. Na específica relação contratual trabalhista que tem como centro o trabalho subordinado e vem sendo alvo de constrição dos direitos por meio da terceirização, o tema faz aflorar a pertinência da análise da situação instaurada mediante o trabalho em cooperativas e se intensifica em vista da recente disciplina legal das cooperativas de trabalho com a ênfase nas cooperativas de serviço.

2. O trabalho humano

Inicialmente, o trabalho humano era realizado para o exclusivo atendimento das necessidades pessoais, situação que se alterou quando, com as guerras entre clãs e tribos, foi introduzido o trabalho para outrem, na forma do trabalho escravo1. Em um longo caminho, a partir da escravidão patrimonial, definitiva ou temporária, surgiu o trabalho para outrem. Nesse curso, o trabalho passou a ser prestado sob as mais diversas formas e se desdobrou em servil e livre ou autônomo.

Ao longo da Idade Média e na Idade Moderna, o trabalho servil foi marcado pela falta de liberdade do trabalhador e o caráter vitalício do vínculo. O trabalho por conta alheia, a serviço de outrem, era objeto de regulamentação esparsa, pois como se destinava ao trabalho livre ou autônomo, tinha pequena expressão nas relações de produção então existentes. A predominância do regime da escravidão e do sistema das corporações excluía a regulamentação, em que pese ao sistema corporativo medieval ter uma estruturação interna por meio dos estatutos fixados e adotados pelos mestres, por meio da qual, nas corporações de ofício, o mestre exercia poder sobre companheiros e aprendizes2.

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Esse breve registro é bastante para evidenciar a distinção entre trabalho servil e trabalho autônomo, a qual se aprofundou entre o século xVI e o século xVIII, quando as relações industriais surgiram e se fortaleceram3, passando a cidade e a indústria a oferecerem a oportunidade de trabalho. Desde a abolição das corporações, ato da Revolução Francesa expresso na Lei Le Chapelier, em 1791, surgiram incipientes normas de trabalho em esferas específicas4.

Os traços iniciais do trabalho a serviço de outrem que hoje é a feição predominante do trabalho humano, remetem ao desenvolvimento do processo de produção a partir da Revolução Industrial e do capitalismo, em cujo âmbito surgiram, como cenário, as relações sociais e o Estado, e as empresas e sindicatos como atores sociais. Ao chegar a segunda fase da Revolução Industrial, os recursos tecnológicos se multiplicaram e se acelerou seu aparecimento e desenvolvimento e eles passaram a influir em extensão e intensidade na vida cotidiana, com efeitos graduais e cumulativos que mudaram radicalmente a sociedade humana.

A evolução do modelo de produção capitalista, desencadeada pela Revolução Industrial, se realizou pelo desaparecimento da propriedade comunal e pela consolidação da propriedade privada baseada no direito de propriedade e na liberdade formal. Essa liberdade existia formalmente também para o trabalhador, a quem era assegurada a liberdade de contratar, mas, contraposta pela diferença material, estabelecendo-se o desequilíbrio contratual. Também se modificou a forma de trabalhar, por primeiro com o modelo taylorista de divisão do trabalho e o controle dos tempos e movimentos, seguindo-se o modelo fordista e, atualmente se depara o modelo toyotista.

No momento do Estado de Bem-Estar Social, houve intervenção estatal na economia e à acumulação capitalista foi contraposto o ideário marxista e socialista voltado para o reconhecimento da necessi-dade da libertação econômica do homem. Com esse acervo social e econômico, estruturou-se a relação empregatícia, como relação jurídica central do sistema de produção capitalista e categoria propiciadora de mudanças nas relações de produção até então consolidadas, já que se mostrava sustentada no elemento distintivo da subordinação jurídica5.

A precariedade das condições de trabalho formou uma consciência de classe determinante da criação dos movimentos associativos, na primeira fase do capitalismo, caracterizada pelo ideário liberal e o individualismo político. Por meio do associativismo, os trabalhadores descobriram o poder da ação coletiva perante o Estado e o empregador. Surgiu o sujeito coletivo obreiro para se contrapor à força econômica do capitalismo.

Os sindicatos se desenvolveram trazendo ao lado as cooperativas, com a finalidade de fornecer meios aos trabalhadores para a aquisição de bens e melhoria de suas condições de vida. Assim, em ambos se encontra um sentimento solidarista, um no sentido que reúne os membros da categoria profissional para a contraposição à empresa que é sempre sujeito coletivo; outro mediante a reunião de profissionais que estabelecem na autonomia o reforço de seus vínculos para fazer frente ao capitalismo, na mais-valia, recolhendo para o grupo o que é acrescido.

Sobre as cooperativas, é importante atentar para as observações feitas por Véras Neto6 referindo o pensamento de Marx de que as sociedades cooperativas dentro da sociedade capitalista somente têm valor enquanto forem criações autônomas dos trabalhadores e não forem protegidas nem pelo governo nem pelos burgueses, por apresentarem um caráter contraditório pois a um tempo levam à mudança da propriedade das relações sociais de produção, mas estão inseridas no modo de produção capitalista. O mesmo autor menciona que essa natureza híbrida também é afirmada por Rosa Luxemburgo, apontando que as cooperativas mesclam características socialistas na sua formatação microeconômica em razão de padrões de exploração da força de trabalho determinadas pela concorrência com outros agregados a características capitalistas pela necessidade de ganho de produtividade.

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A evolução do tratamento legislativo das cooperativas, no Brasil, evidencia que elas foram consideradas como uma função dentro dos sindicatos e a eles foi atribuído o dever de organizá-las: assim no Decreto n. 979, de 6 de janeiro de 1903 e no Decreto
n. 1.637, de 5 de janeiro de 19077. Tal perfil corresponde à enunciação no art. 514 da Consolidação das Leis do Trabalho, do dever dos sindicatos de empregados de promover a fundação de cooperativas de consumo e de crédito.

A força associativa impulsiona o grupo; enquanto o sindicato surgiu como um produto da sociedade industrial capitalista e instância de organização e de representação destinado à defesa do trabalhador, a cooperativa se delineou como um movimento solidário interno, destinado a propiciar melhores condições de vida mediante o acesso aos bens e ao crédito.

A questão social, como o antagonismo entre o capital e o trabalho, teve o papel fundamental de apontar a diferenciação e a desigualdade nas relações sociais e originou um conjunto normativo para incidir sobre elas, em sua formação e desenvolvimento. Com a nova posição do Estado, também um novo papel foi conferido ao sindicalismo para participar da implementação de política do pleno emprego.

O Direito do Trabalho, embora seja resultante da pressão da classe trabalhadora contra a situação em que se davam as relações de produção, foi, contraditoriamente, voltado pela burguesia para o seu serviço e a manutenção das estruturas capitalistas. Essa contradição é apontada por Monereo Pérez8, ao dizer que o ordenamento laboral é um elemento da ação da classe trabalhadora contra a ordem capitalista e um elemento da luta da classe dominante contra a ação dos trabalhadores. Também Bonavides9 aponta a elaboração da legislação social, como decorrência de imperativos da sobrevivência burguesa, conforme a teoria marxista.

A combinação entre o crescimento econômico, numa economia capitalista baseada no consumo de massa de uma força de trabalho plenamente empregada, bem paga e protegida, era uma construção política, resultado de consenso entre a direita e a esquerda em países ocidentais, que contou, também, com o consenso tácito ou explícito entre patrões e organizações trabalhistas10.

Uma nova crise do capitalismo interferiu nesse quadro e o alterou para impor o recuo de conceitos e modo de trabalho então vivenciados. O trabalho e o sindicalismo surgidos com a relação de produção das sociedades industriais encontraram-se diante de uma nova sistemática: a sociedade pós-industrial e suas transformações econômicas e sociais.

Foi nesse contexto que às cooperativas foi atribuído um novo papel que as incentivava a atuar no mercado de trabalho e nas relações de produção...

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