Tramas e interconexoes no Supremo Tribunal Federal: Antidiscriminacao, genero e sexualidade/Brazilian Constitutional Court interconnections points: Anti-discrimination, gender and sexuality.

AutorRios, Roger Raupp

Introducao

O direito constitucional brasileiro e o direito internacional dos direitos humanos tem, dentre seus conteudos fundamentais, a afirmacao do direito de igualdade. Inicialmente compreendido como proibicao de distincoes, sua compreensao evoluiu rumo a proibicao de discriminacao. Formulado e compreendido, na arena internacional, a partir das violacoes perpetradas pelos regimes totalitarios, assim como, na ordem interna, respondendo a violencia praticada pela ditadura militar que se estabeleceu no periodo da Guerra Fria, a proibicao de discriminacao ordenada pelo direito de igualdade, no direito brasileiro e no direito internacional, almeja afastar toda e qualquer diferenciacao injusta, em especial praticas e regimes de subordinacao contra individuos e grupos historica e socialmente injusticados e vitimas de preconceito e discriminacao.

Sem ignorar, muito menos menosprezar o rico e intenso debate em diversos campos (politico, social, filosofico, historico, etc.), e de se salientar que este esforco de efetivacao do mandamento antidiscriminatorio resultou, na esfera juridica, na formulacao de legislacao e jurisprudencia especificas. A litigancia, a sistematizacao e a pesquisa academica nestes campos acabaram por demarcar dominios do conhecimento e da pratica juridicos, conhecidos como "direito da antidiscriminacao". Assim designado, tal campo surge a partir da experiencia juridica estadunidense (McCRUDDEN, 1991), com os avancos do movimento de direitos civis pos II Guerra Mundial (POLE, 1993, p. 311), tendo como marco jurisprudencial indisputavel a decisao da Suprema Corte dos Estados Unidos no celebre caso "Brown vs. Board of Education", de 1954 (SCHWARTZ, 1993, p. 286; RUTHERGLEN, 2001), passando a exercer uma influencia seminal no continente europeu, tanto nos direitos nacionais (BURCA, 2011), como no direito comunitario europeu (COUNCIL OF EUROPE, 2011).

Enquanto a compreensao tradicional do principio da igualdade expoe o conteudo e a extensao dessa clausula constitucional de modo estatico, por meio da enunciacao de suas respectivas dimensoes formal e material arbitrarias (FREDMAN, 2002, p. 7; RIOS, 2002, p. 33; MOREIRA, 2017, p. 17), o conceito de discriminacao aponta para a reprovacao juridica das violacoes do principio isonomico. Passa-se a atentar para os prejuizos injustos suportados pelos destinatarios de tratamentos desiguais, objetivando enfrentar situacoes de estigma e subordinacao experimentadas por grupos discriminados (RIOS, 2008, p. 36; MOREIRA, 2017, p. 67; SOLANKE, 2017). A discriminacao enfrentada pelo direito da antidiscriminacao e, portanto, tomada por uma perspectiva mais substantiva que formal: importa enfrentar a desigualdade prejudicial e injusta, pois nem sempre a adocao de tratamentos distintos se revela malefica, sendo mesmo tantas vezes exigida, como alerta a dimensao material do principio da igualdade (o de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades).

As injusticas e as reivindicacoes na esfera do genero e da sexualidade tem posto a prova o direito da antidiscriminacao, ao mesmo tempo que o desafiam e que propiciam seu desenvolvimento; tal tarefa, por sua vez, que exige uma postura metodologica juridico-cientifica, marcada pela inquietacao teorica diante da compreensao das categorias juridicas existentes e sua relacao com genero e sexualidade, atitude diversa de uma abordagem juridico-instrumental, que se restringe a pergunta sobre a adequacao da norma ao caso concreto, sem problematizar o direito enquanto area do conhecimento da realidade (XIMENES, 2018). Para tanto, procedeu-se a exposicao, ainda que sucinta, das categorias fundamentais do direito da antidiscriminacao e sua presenca, explicita ou implicita, em decisoes do Supremo Tribunal Federal envolvendo genero e sexualidade, selecionadas pela tematica, impacto e potencial analitico, possibilitando problematizar o "duplo fazer do genero e do Estado", em que interconexoes entre manifestacoes institucionais estatais e suas categorias juridicas nao so atuam buscando instituir, por meio de instituicoes e medidas estatais, estabilizacao e regramento diante do genero, como sao produzidas na "...trama de sentidos, possibilidades de acao e formas de interdicao feitas de e por dinamicas de genero" (VIANNA e LOWENKRON, 2017a, p. 5). Trata-se de, longe de oferecer respostas acabadas, suscitar questoes e possibilidades para investigacoes sobre a dinamica constitutiva entre o direito, enquanto manifestacao estatal judicial, e as dinamicas de genero.

Com o objetivo de examinar esta equacao, este artigo divide-se em duas partes. Na primeira parte, procede a exposicao panoramica dos elementos fundamentais do direito da antidiscriminacao, em particular do conceito juridico de discriminacao e das modalidades discriminatorias direta e indireta. A seguir, na segunda parte, toma alguns julgamentos do Supremo Tribunal Federal (STF) envolvendo genero e sexualidade, deles destacando o tratamento especifico empregado a conteudos juridicos antidiscriminatorios, buscando aperceber-se das contribuicoes, desafios e limites ali presentes.

Ha, de fato, valioso material nos pronunciamentos do tribunal sobre criminalizacao da homofobia como "racismo social", proibicao de doacao de sangue por homens que tiveram sexo com homens e registro civil de pessoas transexuais, permitindo avancar na reflexao sobre a relacao e os resultados desta trajetoria em que demandas tao graves, complexas e polemicas, como as de genero e sexualidade, exigem e desafiam respostas juridicas antidiscriminatorias, ao mesmo tempo que as dinamicas de genero e sexualidade atuam de forma produtiva na constituicao e na formulacao das instituicoes e praticas estatais.

  1. Elementos fundamentais do direito da antidiscriminacao

    Os elementos fundamentais no direito da antidiscriminacao sao o conceito juridico de discriminacao, as modalidades de discriminacao, os criterios proibidos de discriminacao, as perspectivas da antidiferenciacao e da antissubordinacao e as respostas juridicas disponiveis (de cunho legislativo, politicas publicas e acoes afirmativas) (RIOS, 2008). Neste estudo, serao considerados o conceito juridico de discriminacao, suas modalidades, os criterios proibidos de discriminacao e as perspectivas da antidiferenciacao e da antissubordinacao, tomando como casos exemplares discriminacoes por genero e sexualidade.

    Conceito juridico de discriminacao

    O conceito de discriminacao merece algumas consideracoes no sentido de tornar mais clara sua compreensao e de facilitar sua concretizacao no campo juridico e nas politicas publicas. Diferentemente do preconceito, que designa percepcoes mentais e internas negativas em desfavor de individuos e grupos socialmente inferiorizados, discriminacao e a materializacao de atitudes arbitrarias, acarretando violacoes de direitos. O termo preconceito e utilizado de maneira mais frequente nos dominios da psicologia e das ciencias sociais, enquanto o termo discriminacao e mais difundido no vocabulario juridico.

    Neste sentido, a partir da analise conjunta da Convencao Internacional sobre a Eliminacao de todas as Formas de Discriminacao Racial (1) e da Convencao sobre a Eliminacao de todas as formas de Discriminacao contra a Mulher (2), o conceito juridico de discriminacao e "qualquer distincao, exclusao, restricao ou preferencia que tenha o proposito ou o efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercicio em pe de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos economico, social, cultural ou qualquer campo da vida publica." (RIOS, 2008, p. 20). Saliente-se que tal conceito juridico de discriminacao acabou por ser incorporado, com estatura constitucional, no direito interno brasileiro, em virtude da recepcao da Convencao Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiencia (3).

    A Convencao Interamericana contra toda forma de Discriminacao e Intolerancia (4) foi no mesmo sentido, definindo discriminacao como "qualquer distincao, exclusao, restricao ou preferencia, em qualquer area da vida publica ou privada, cujo proposito ou efeito seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercicio, em condicoes de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicaveis aos Estados Partes." Note-se que a insercao do fragmento "em qualquer area da vida publica ou privada" alargou a amplitude conceitual da discriminacao, censurando sua ocorrencia em qualquer ambito da vida social.

    A discriminacao em nada se confunde com a adocao de medidas de diferenciacao positiva, visto que estas possuem carater positivo, objetivando a efetivacao dos direitos, sem, portanto, a ilicitude que caracteriza comportamentos discriminatorios. Nas medidas de diferenciacao positiva, encontramos nao somente as acoes afirmativas, mas tambem a adocao de medidas de tratamentos especiais requeridos por uma especificidade de um individuo ou grupo (RIOS, 2008, p. 22).

    Modalidades de discriminacao

    No direito da antidiscriminacao, discriminacao direta e indireta sao as categorias juridicas que designam as modalidades de discriminacao enfrentadas (SCHIEK; WADDINGTON; BELL, 2007; BAMFORTH; MALIK; O'CINNEIDE, 2008; FREDMAN, 2002; RIOS, 2008; MOREIRA, 2017). Ocorre discriminacao direta, quando se da de modo intencional e consciente; ja discriminacao indireta, mediante atitudes aparentemente neutras, com impacto prejudicial, ainda que sem intencionalidade. O elemento distintivo e, como se ve, a intencionalidade da discriminacao.

    A discriminacao direta varia de acordo com o instrumento utilizado, podendo o elemento discriminador estar expresso em lei (discriminacao explicita), estar presente na aplicacao da norma, mesmo que inexistente de forma expressa na legislacao (discriminacao na aplicacao do direito) e na presenca intencional de caracteres aparentemente neutros, mas intencionalmente inseridos visando a causar prejuizos...

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