Travassos e Malagrida Quando Defrontados: Qual é a Possibilidade de uma Comparação?

AutorMarcos Antônio Fávaro Martins/Maria Cristina Cacciamali/André Roberto Martin
CargoMestre, aluno do curso de doutorado do programa de pós-graduação em integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM/USP); bolsista CAPES pelo programa Demanda Social (DS/CAPES)/Doutora, Professora Titular da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP); Professora do Programa ...
Páginas115-130

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1. Introdução

Poucos autores são tão importantes para a compreensão do pensamento geopolítico latino-americano quanto Carlos Badia y Malagrida (1890-1937) e Mário Travassos (1891-1973). Por isso, o objetivo deste artigo será apresentar ao leitor a síntese de pensamento destes teóricos fundadores e, na sequência, argumentar a favor de uma base teórica comum que orientaram estratégias nacionais distintas. Malagrida e Travassos formularam modelos geopolíticos cujas preocupações são voltadas aos aspectos endógenos das grandes questões latino-americanas. Os dois autores são pensadores da integração latino-americana, eles têm em comum várias questões relevantes para a integração, como o papel dos transportes, a importância das grandes estruturas da geomorfologia continental para a configuração territorial, a razão geográfica dos conflitos entre países latino-americanos e o papel da América Latina no âmbito da política externa dos Estados Unidos.

A análise comparativa do pensamento dos dois autores permitiu definir os contornos e os matizes da interpretação e dos achados de cada um. Ambos interpretaram a política de poder da América do Sul com base no mesmo referencial teórico — main stream da geopolítica: a extensão territorial e a posição relativa destes territórios como fatores potenciais da política; a importância das grandes feições naturais como fatores que contribuem para solidez da organização territorial e, a importância da política de implantação da infraestrutura como elemento organizador e vivificador das potencialidades dos Estados.

No entanto, um paralelo deve ser traçado: os dois geopolíticos pensam a política de poder sul-americana norteados em uma mesma base material (a grande configuração geomorfológica sul-americana), mas, em termos de grande estratégica, eles têm interpretações díspares, por que seguem valores políticos diferentes: Malagrida parte de uma concepção de mundo mais ampla, guiada pela noção de um mundo hispânico unificado; Travassos é nacionalista e pragmático, pensa a integração física do continente sob a égide brasileira.

Desta dualidade de valores, deriva um paradoxo de raciocínio estratégico: enquanto Malagrida pensa a organização dos transportes visando uma organização política do subcontinente em Estados Hispânicos de maior extensão territorial, Travassos vai vislumbrar o transbordamento fronteiriço do sistema de transportes brasileiro, no sentido de desorganizar a formação de um grande Estado platino com a estrutura de poder centrada em Buenos Aires.

É este o esboço geral das ideias que se apresentam adiante. Assim, para além desta introdução e das considerações finais, este artigo está organizado em três seções: as duas primeiras apresentam de maneira sintética o pensamento de Malagrida e Travassos, respectivamente; a terceira procura evidenciar as relações antagônicas existentes entre estes dois fundadores da Geopolítica latino-americana.

2. Repensar o mundo hispânico: carlos badia y malagrida

Um dos menos lembrados — ao mesmo tempo que um dos mais importantes geopolíticos, foi Dom Carlos Badia Malagrida. Cônsul espanhol na cidade mexicana de

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Torreón, membro do legislativo espanhol na década de 1930, Malagrida escreve em 1919 o livro El factor geográfico en la política sudamericana, notável por combinar os fundamentos da Geografia Política da época com uma visão liberal de política externa, rara nos estudos de Geopolítica do primeiro pós-guerra2. O livro é um apelo pela reconstrução democrática do mundo hispânico dentro de uma esfera de coprosperidade ibero--americana (VILLANOVA, 1919). Assim, a filiação ao pensamento liberal evidente em todas as alturas do discurso hispano-americanista de Malagrida diz respeito à comunhão entre os povos hispânicos e a importância do livre-comércio e da cooperação econômica como atalho para essa união. Ao mesmo tempo, as repetidas menções ao idioma comum, à religião católica e ao direito romano demonstram acentuados traços de uma preocupação civilizacional que ajuda a estruturar a sua concepção de mundo.

A atividade intelectual do autor teve como berço a “Casa de América e Barcelona”, centro de estudos americanistas que reunia intelectuais e homens de negócios espanhóis em torno de pesquisas sobre a potencialidade comercial da América Hispânica e Filipinas, o que evidência o interesse espanhol em suas ex-colônias nesta primeira metade do século XX (CABALLERO, 2005).

Filiando o autor ao seu contexto, destacamos quão ele foi perspicaz numa leitura do mundo de então. Espectador da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o autor sabia que os seus resultados eram temerários por promover a aproximação estratégica de Estados tradicionalmente inimigos da Espanha: a Inglaterra, a França e os Estados Unidos. A participação dos EUA na guerra não só daria impulso para a política de poder estadunidense para América Latina, como, também, aproximaria a grande república da América da França e da Inglaterra (OLIVIÉ, 2000).

A Espanha passava por uma situação de isolamento internacional no começo do século XX. Desde a perda de suas colônias de ultramar que ela não conseguia competir com paridade diante da Inglaterra e da França, e o fim da Primeira Guerra Mundial assinalava para a construção de uma comunidade atlântica dos Estados vencedores o que acentuaria a condição de isolamento da Espanha dentro do cenário europeu (MALAGRIDA, 1946). Será então em um contexto de fragilidade e isolamento que Malagrida vai argumentar pela construção de uma esfera de coprosperidade hispano-americana que representaria, por um lado, uma opção de inserção espanhola fora da Europa e, por outro, uma possibilidade de prosperidade e segurança para América Latina.

No entanto, como é de se esperar, não são questões europeias, e sim latino-americanas que compõem a maior parte das preocupações do autor. Para Malagrida (1946, p. 22), a instabilidade e fragmentação política põem em evidência uma assimetria fundamental:

Las dos Américas, la dos razas, los dos espíritus, frente a frente y en pugna constante, dentro de un mundo nuevo: tal es la vida internacional americana. Al norte, una República in-

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dustrial, poderosa, rica, pletórica de y en pleno triunfo internacional; al sur, veinte estados en formación, desiguales, y turbulentos, agotados pela anarquía y minados por la discordia.

O que Malagrida vai defender é um modelo de integração hispano-americano que acabe com os conflitos entre Estados latino-americanos e que fortaleça a América Latina enquanto bloco, a ponto de poder fazer frente à política de poder estadunidense para o continente. Para o autor, era necessário a criação da “super nación hispanoamericana” para assegurar o equilíbrio hispânico em uma nova ordem internacional.

É curioso notar que Malagrida foi advogado da causa catalã, o que bem explica a opção pelo federalismo, repetidas em diversas alturas do seu texto, por exemplo: “Dentro de esta concepción, que culmina como símbolo de la España grande, se armonizan todas las tendencia y todas as matices; desde la fecunda célula del regionalismo catalán, hasta las más amplias irradiaciones de la supernacianalidad iberoaamericana (MALAGRIDA,1946,
p. 372).

A ideia da reformulação do império espanhol, em verdade, era um conceito amplamente defendido dentro da Casa de América e Barcelona, e se quisermos proceder com justeza sobre o seu autor, teremos que dar a Isidro Lloret, a autoria do termo “super nación hispano-americana” por vezes chamada de “España Grande”. O que Malagrida fez foi operacionalizar o conceito de Lloret, usando como ferramenta a Geopolítica. Malagrida notabiliza-se e faz escola na medida em que pensa a estabilização da América Latina por meio da avaliação territorial dos Estados desta região.

Em um patamar de escala local, a Geopolítica de Malagrida centra-se em uma proposta arrojada de reconstituição da estrutura territorial dos Estados latino-americanos dentro de uma proposta federativa. Grandes e pequenos Estados deviam se integrar, respeitando o substrato geomorfológico do continente. O autor defendia que os pequenos Estados nascidos da secessão dos antigos vice-reinados espanhóis eram um empecilho para a integração continental, e via nos ensinamentos da Geografia Política de sua época o arcabouço teórico em torno do qual deveria ser orientado o projeto de reformulação da divisão política latino-americana: os pequenos Estados deveriam ser absorvidos pelos grandes, o que resultaria em unidades políticas maiores, mais organizadas e mais estáveis.

Um dos postulados da Geografia Política ratzeliana é que deve haver a harmonia dos Estados com seus respectivos territórios (RATZEL, 1975; 1983). Pelas leis da Geografia Política, Estados continentais vão procurar dominar toda a extensão de uma bacia hidrográfica, e dela aproveitar seus recursos (RATZEL, 1975). Estados que dividem a mesma bacia hidrográfica tendem a disputar a totalidade de sua extensão (RATZEL, 1990). Malagrida observa, ao examinar segundo estes critérios, que a estrutura territorial dos países latino-americanos é fragmentária e propensa ao conflito fronteiriço. Na epígrafe do livro I, está escrito que:

El progreso político de los Estados supone la previa adopción de un “criterio geográfico” de gobierno. Los pueblos hispanoamericanos viven divorciados de su geografía, y es preciso restablecer la concordancia entre su estructura natural. Con ella acabaría la actual disgre-

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gación, el federalismo cristalizaría en formas estables, y la vida política de Hispanoamérica recobraría su vigorosa “esencia nacional”. (MALAGRIDA, 1946, p. 07)

Esta é a interpretação do autor para a origem e a sequência de conflitos entre o século XIX e começo de XX na América do...

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