Direito a um Tribunal Competente como Garantia para um Processo Justo. Aspectos Gerais

AutorCarolina Tupinambá
Ocupação do AutorMestre e Doutora em Direito Processual. Professora Adjunta de Processo do Trabalho e Prática Processual Trabalhista na UERJ
Páginas95-101

Page 95

1.1. Conteúdo da garantia: a inafastabilidade do Poder Judiciário e a inexistência de tribunais de exceção

A certeza de que algo existe, está disponível, ou que pode ser mobilizado, por vezes é mais importante do que a ação propriamente dita desta garantia. Ainda que não se pretenda fazer uso, é reconfortante saber que há, por exemplo, forças armadas, para defesa em caso de guerra, posto de saúde, para coleta de um medicamento que possa salvar uma vida, ou um amigo com quem pouco falamos, mas com que se saiba poder verdadeiramente contar.

A psicologia deve explicar a segurança humana auferida pela mera ciência de se ter uma garantia à disposição, latente, potencial, prestes a nos acudir. Assim é simplesmente saber que existe um tribunal competente para dirimir determinados tipos de conflitos.

É garantia e direito fundamental do cidadão a existência prévia de um tribunal competente que proporcione segurança na medida em que possa confiar nos poderes constituídos para a eventualidade de impasses ou resistências que possam ocorrer em sua esfera de direitos305.

Tal garantia encontra especial relevância nos regimes democráticos em que o Estado disponibilize aos indivíduos um conjunto de instrumentos jurídicos a fim de que possam ter direitos fundamentais efetivados306, seja através de prestações estatais positivas, negativas ou afirmativas307.

O Constituinte Originário reservou, com exclusividade, ao Poder Judiciário não só a prerrogativa de este dirimir os conflitos intersubjetivos, mediante a aplicação da lei posta pelos representantes eleitos pelo povo, como também a de anular aqueles atos dos órgãos governamentais cerceadores

Page 96

dos direitos humanos. Neste diapasão a Jurisdição é um poder-dever do Estado, realizado através da atividade dos órgãos do Poder Judiciário e que deve solucionar, de forma célere e justa, os conflitos resultantes das relações intersubjetivas308, bem como das relações que se processam entre indivíduos e Estado309.

Em outras palavras, a garantia de um tribunal competente é decorrência direta do art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça ao direito”310. Esta norma explicita que: (a) a prestação jurisdicional não é uma faculdade, mas um dever, do qual o órgão estatal investido constitucionalmente no poder de jurisdição não pode se escusar; (b) a tutela jurisdicional não é passível de delegação.

Isto quer dizer que está constitucionalmente proscrito ao juiz se negar a administrar a justiça àqueles que solicitam a inter-venção jurisdicional com o intuito de compor um determinado conflito de interesse. Estaria a segurança jurídica seriamente ameaçada se o órgão investido do poder de ministrar a justiça se recusasse arbitrariamente, sem qualquer fundamento legal, a cumpri-la.

Assim, o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional ou princípio da ação311 tem como destinatário principal o legislador, e reza que ninguém pode impedir que o Judiciário aprecie lesão ou ameaça de lesão a direito.

Em épocas de dolorida recordação, o famoso ato institucional número cinco excluía da apreciação do Judiciário todos os atos por ele acobertados. A Emenda n. 1/1969 editada pelo Executivo, constitucionalizou o malfadado ato institucional ao dispor que ficassem excluídos da apreciação do Judiciário todos os atos praticados pelo comando da Revolução de 31.3.1964, reafirmando a vigência do AI-5.

Sob a égide da Constituição de 1967 havia divergência quanto ao alcance do princípio supra, visto que o art. 153, § 4º, afirmava que não poderia ser afastado do controle jurisdicional lesão a direito individual, deixando de fazer menção aos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. A Constituição Federal de 1988, por sua vez, para corrigir o erro histórico, retirou o vocábulo “individual”, abarcando, outrossim, direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos

Vários textos supranacionais referem-se expressamente à garantia de um tribunal competente previamente definido em lei nos termos do art. 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ou do art. 5º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, para se citarem os dispositivos mais abrangentes.

A inexistência de tribunais de exceção remete, ademais, ao princípio do juiz natural, segundo o qual somente está autorizado a exercer a jurisdição o órgão do poder político, a quem a Constituição Federal tenha, previamente, atribuído competência. Neste sentido, está vedada a “possibilidade de serem constituídos tribunais ou juízos de exceção (art. 5º, incisos XXXVII e LIII, da Constituição Federal)”312 vez que instituídos ad hoc e após consumado fato. A instauração do processo transforma-se-ia em mera exigência formal, despida de todas as garantias processualísticas individuais, restando ao tribunal predeterminado julgar a lide de forma a favorecer uma das partes ou um determinado interesse313.

Page 97

Em suma, a garantia de existência de um tribunal previamente314 competente assegura que (i) todas as lesões ou ameaças podem ser levadas ao Poder Judiciário; (ii) apenas o Poder Judiciário tem o dever de prestar jurisdição; e (iii) para o exercício da Jurisdição é necessário que o poder estatal esteja previamente delimitado por um determinado órgão.

1.2. O princípio do juiz natural Um desdobramento da garantia a um tribunal competente

Historicamente, o juiz natural desenvolveu-se no ordenamento anglo-saxão, desdobrando-se para o direito norte-americano e francês.

Como garantia de proibição de juízos extraordinários, e segundo a dimensão atual, o princípio do juiz natural foi pela primeira vez incorporado na Petition of Rights, de 1627, e na Bill of Rights, de 1688. Essas duas cartas representam a concepção atual do princípio proibindo julgamento proferido por juízes extraordinários, por magistrados designados ex post facto315.

O hodierno direito norte-americano, outrossim, por intermédio da Declaração de Direitos da Virgínia (1776) e das Constituições dos Estados Independentes (1776 a 1784) vê a garantia de existência de um juízo e a inderrogabilidade da competência não apenas como simples critério de orga- nização judiciária, mas como garantia da imparcialidade do juiz316.

Na lei francesa de 24.8.1790, introduziu-se pela primeira vez, em seu art. 17 (Título II), a expressão designada atualmente, ao prescrever que a ordem constitucional das jurisdições não poderia ser perturbada, nem os jurisdicionados subtraídos de seus juízes naturais. A Constituição Francesa de 1791 incorpo-rou, portanto, o princípio vedando que os cidadãos eventual-mente fossem subtraídos dos juízes que a Lei lhes atribui317.

Também na Itália, por meio do Estatuto Albertino de 1848 (art. 17), a figura do juiz natural passou a ser um critério da atividade jurisdicional: “Ninguém pode ser subtraído de seus juízes naturais. Não poderão, portanto, ser instituídos tribunais ou comissões extraordinárias”318.

No ordenamento jurídico brasileiro o princípio do juiz natural, em geral, esteve presente em nossas constituições sob duplo aspecto: (i) proibição de juízos extraordinários ex post facto e (ii) proibição de transferência de uma causa para outro tribunal de forma arbitrária ou discricionária. Na Constituição de 1824, bem como na Constituição Republicana de 1891, não se proibia, entretanto, o poder de atribuição, o que possibilitava a instituição de juízos especiais pré-constituídos. A Carta de 1934 teve redação mais abrangente. No tocante à garantia do juiz competente, ampliou a redação das cartas precedentes, acrescentando a expressão “ninguém será processado, nem sentenciado (...)”, enquanto as anteriores referiam-se apenas a que “ninguém será sentenciado (...)”.

Durante o período do Estado Novo, na Constituição de 1937, o princípio foi omitido, tendo voltado a ser previsto na Carta de 1946, no seu duplo aspecto. Posteriormente, a Constituição de 1967 e a Emenda n. 1, de 1969, inseriram o princípio tão-somente como garantia de impedimento de foro privilegiado ou tribunais de exceção, não fazendo menção à garantia explícita do juiz competente.

Atualmente, a Constituição Federal de 1988 garante o princípio em seu duplo aspecto: “Art. 5º, XXXVII: Não haverá juízo ou tribunal de exceção; LIII: Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.

Page 98

Pela redação dos supramencionados dispositivos, poder-se-ia inferir que o princípio ora em exame alcança exclusivamente o órgão jurisdicional, ao proibir a criação dos juízos ou tribunais de exceção e garantir, ainda, que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente. Tal princípio, porém, como muito bem observa Alexandre Freitas Câmara, se desdobra em uma outra faceta: a da imparcialidade das pessoas físicas investidas no exercício da jurisdição319.

1.3. A consciência da existência do Poder Judiciário Aspecto subjetivo da garantia

Ainda no que diz respeito à garantia de um tribunal competente cumpre registrar um fenômeno bastante interessante que vem se destacando aqui e alhures nos últimos anos. Diz respeito à potencial segurança que o Poder Judiciário tem gerado no imaginário das pessoas, o que implica afirmar que, cada vez mais, o Judiciário tem desempenhado um papel assistencialista ao passo que os indivíduos entregam em suas mãos o destino de suas vidas em confiança, como se “ter um juiz” pudesse deixar as pessoas mais protegidas, menos largadas à própria sorte. Neste...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT