(Sobre)vivencias negras: desafios da cidadania diante da violencia/Black survivance: the challenges of citizenship when dealing with violence.

AutorLima da Silva, Fernanda

Introducao (1)

No dia 4 de dezembro de 2020, as primas Emily Victoria da Silva, de 4 anos, e Rebecca Beatriz Rodrigues Santos, de 7, foram mortas a tiros em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Moradores relataram que nao havia tiroteio ou operacoes policiais na regiao, porem, que viram o carro da policia passando no bairro (2). Alguns meses antes, no dia 8 de maio, Antonio Correia dos Santos foi assassinado em sua casa, no Quilombo do Barroso, no municipio de Camumu, Baixo Sul da Bahia. Lideranca quilombola e diretor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Camumu, seu Antonio, como era conhecido, estava sob medida protetiva em razao das ameacas sofridas durante acirramento de conflito agrario (3).

Longe de serem pontuais ou excepcionais, as mortes de Emily, Rebeca e seu Antonio jogam luz sobre a perversidade do racismo no Brasil. Suas mortes dao conta, ainda, das continuidades entre campo e cidade em uma geografia do exterminio (JAMES; AMPARO-ALVES, 2017), na qual agentes do Estado, milicias e forcas constituidas pelo agronegocio e pela mineracao disputam o controle e a gestao dos territorios. Nesse fazer, sem cerimonias, a maquina racista amplia seus alvos e insere criancas e idosos negros em tragicas estatisticas.

Esse texto e motivado, entao, pela interpelacao dos estudos sobre violencia quanto as formas como tem--ou nao tem--sido abordada a violencia racial. Analisamos, a partir de experiencias dos territorios de favelas e quilombos, as possibilidades de compreensao da producao da violencia, no continuum campo-cidade, mas tambem do protesto negro e suas demandas frente ao Estado. O que esses atores, em geral invisibilizados ate mesmo pelos estudos autointitulados criticos, nos informam sobre a violencia no Brasil e sobre os modos de lhe fazer frente?

Inicialmente tecemos algumas consideracoes sobre os estudos sobre violencia, no intuito de interpelacao e dialogo com o campo. Em seguida, a partir das experiencias de favelas e quilombos, particularmente no contexto da pandemia de Covid-19, realizamos uma analise das Acoes de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635 e 742. Por fim, apresentamos contribuicoes para a reflexao sobre as possibilidades de uma cidadania radical no Brasil, que de conta do enfrentamento da violencia racial.

  1. Interpelando os estudos sobre violencia e controle social no Brasil

    Nao ha novidade no apontamento de que os estudos sobre violencia e controle social no Brasil ou tem sistematicamente ignorado raca e racismo como elementos analiticos importantes, ou tem reduzido, em termos teoricos e metodologicos, as possibilidades de alcance de uma critica racial (FREITAS, 2016; PRANDO, 2017; PIRES, 2017; CASSERES; SANTOS, 2018; SILVA, 2018). Em razao disso, suas producoes nao alcancam a dimensao do terror historicamente vivido no pais.

    E verdade que nos ultimos anos experimentamos um avanco na abertura de espacos de discussao sobre os pressupostos do campo (4), mas ainda e questionavel o quanto essas discussoes tem reverberado na producao de seus autores de maior destaque. Em geral, parte-se de uma analise social focada na desigualdade de classe, compreendendo a dimensao da economia como principal fator estruturante do poder. Discussoes sobre raca, genero e sexualidade, por exemplo, tendem a aparecer de modo "anexo" ou adjetivo. Vale destacar que, mesmo em termos de critica a dominacao capitalista e imperialista, ha pouco dialogo com as producoes de teoricos negros que discutem como o racismo e um elemento central para a producao e distribuicao de poder no capitalismo. O problema, nesse sentido, e menos a analise marxista em si do que as articulacoes feitas em seu bojo (HALL, 1996).

    Em termos de Brasil, o campo ainda precisa enfrentar os pressupostos epistemologicos e teoricos mobilizados para a compreensao de nossa formacao social. Em que medida os repertorios utilizados se aproximam ou se afastam do pensamento racista? Qual o lugar, por exemplo, do positivismo e do mito da democracia racial em suas analises?

    No Brasil, a ideia de criticidade, sobretudo para a criminologia, faz oposicao, dentre outras questoes, as leituras positivistas sobre crime e sujeito criminoso. De fato, essas teorias tiveram--e ainda hoje tem--um enorme impacto na estruturacao do nosso sistema de justica criminal e na formacao de seus atores. Sua articulacao, sabemos tambem, esta profundamente imbricada ao racismo cientifico (FRANKLIN, 2017; GOES, 2016). A despeito da critica, porem, o campo ainda investiga pouco como essas matrizes tem sido acionadas contemporaneamente a partir do dispositivo de racialidade (CARNEIRO, 2005).

    Algumas leituras de Brasil opoem-se, a nivel discursivo, a heranca positivista e tambem, de outro lado, ao pensamento freyreano e a articulacao por ele proposta do mito (como o qualificamos) da democracia racial. Apesar disso sabemos que, ao longo dos anos, o mito tem passado por reformulacoes--observaveis inclusive em expoentes do pensamento critico--e tido sucesso em acompanhar as mudancas do pais e perpetuar uma matriz de pensamento mantenedora de assimetrias raciais (FREITAS, 2020: 115-120).

    Outras interpretacoes sociais, formuladas por diversos teoricos negros, responsaveis inclusive por interpelar o pensamento critico brasileiro, ainda nao sao sistematicamente analisadas e tomadas como referencia para os dialogos do campo (GONZALEZ, 2018; NASCIMENTO, 2018; RAMOS, 1995; CARNEIRO, 2005). A contribuicao desses teoricos e destacada aqui como possibilidade de desestabilizacao de valores racistas acionados por algumas matrizes teoricas tidas como canonicas. Sua compreensao sobre poder, saber e ser, ainda, modifica o regime de verdade implicito nas interpretacoes consagradas de Brasil, de modo a nao reforcar imagens e representacoes racistas sobre o papel social da populacao negra no pacto politico.

    Entendemos que e relevante destacar, ainda, que os estudos sobre violencia se estruturaram historicamente em torno de analises focadas no espaco urbano, dirigindo pouca ou nenhuma atencao a violencia no campo. Isso nos induz a conceber uma ruptura entre campo e cidade que nao e necessariamente verdadeira. Considerando a formacao do Brasil, movimentos campo-cidade estao nas origens de instituicoes e praticas de controle (ALENCASTRO, 2000), e tem se atualizado ao longo dos anos. Momentos de escalada de violencia urbana tendem a corresponder tambem ao acirramento de conflitos no campo, com ambas as dinamicas obedecendo a um regime marcadamente racializado, que produz impactos desiguais sobre negros e tambem indigenas. A reflexao sobre as possibilidades de um continuum campo-cidade, portanto, pode nos informar sobre as condicoes de producao de desigualdades, a estruturacao do controle social e o avanco do genocidio no pais.

    Vale ainda observar que, embora seja imprescindivel destacar a relacao entre o processo de colonizacao, o sistema escravista e a violencia no pais, reduzir as analises ao apontamento da genese do sistema penal e limitado e pouco producente. Se, em termos teoricos e metodologicos, utilizamos essa estrutura de pensamento para nos esquivar de analises sobre as formas de producao da violencia hoje, esvaziamos uma agenda de pesquisa e de interpelacao das agencias de controle.

    Nesses termos, e paradoxal conceber uma critica ao sistema penal, enquanto abolicionismo, minimalismo ou garantismo, que nao se dirija a compreensao de que nosso sistema se sustenta na producao de violencia racial, sobretudo antinegra. Qualquer critica que nao consiga enxergar nos discursos negros, sejam eles academicos ou militantes, muito mais que sectarismo ou punitivismo, provavelmente se lastreia numa nocao de horizonte politico utopico que, por sua fragilidade, se constitui como um olhar vagamente sonhador e pouco comprometido com um amanha--que nao vira porque nao pode ser.

    Nesse ponto e importante destacar os problemas da nocao de punitivismo. Nao pretendemos, nesse texto, discutir a categoria--ou mesmo discutir se realmente se trata de uma categoria--mas destacar como sua denuncia, via de regra, esta associada a uma leitura diminuidora do protesto negro. Quando militantes e academicos pedem a responsabilizacao--inclusive, mas nao so, criminal--de individuos ou instituicoes pela pratica de racismo, ha mais do que simplesmente o pronto acionamento da violencia de Estado. Ha, isso sim, a compreensao de que o Estado tem se colocado como um dos principais violadores de direitos e que seu silencio diante de violacoes chancela mais uma vez a subcidadania negra, passivel de violencias varias e diarias.

    [...] Pessoas negras, inseridas em contextos de morte social sao descartaveis e sao objetos de violencia gratuita independentemente do que fazem. O mundo da politica, da sociedade civil, do estado-imperio, e um mundo cuja logica depende da morte negra, social e fisica. A pessoa negra, por definicao, morre violentamente sem causa. "Amarildo desapareceu a caminho de casa." Ou "Claudia estava indo comprar pao e foi morta pela policia." E outros tantos casos. Previsiveis em sua imprevisibilidade. Imprevisiveis em sua previsibilidade. Todos paradigmaticos: emblematicos da logica social antinegra, do mundo antinegro (VARGAS, 2017: 99). Talvez seja elementar observar que este abandono simbolico tem efeitos concretos no cotidiano dos negros. Como destacado por Ana Flauzina e Felipe Freitas (2017: 65), mesmo a condicao de vitima no Brasil obedece a um regime de poder e branquitude. Largados ao terror, sem que sua dor gere sensibilizacao nem acione mecanismos de reparacao, os negros vivem o aprofundamento do genocidio no ambito penal, assim como o reforco de representacoes sociais racistas que os aprisionam na imagem do mal e da brutalidade. Imagens estas que, ao fim e ao cabo, serao acionadas para a producao de mais violencia e invisibilidade social.

    Limitar, portanto, a compreensao do protesto negro ao reforco do sistema penal implica ignorar a critica mais profunda que se faz a violencia...

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