Ser desempregado para os sociólogos

AutorDidier Demazière
CargoSociólogo, pesquisador no CNRS, diretor do Laboratório PRINTEMPS (Université de Versailles em Saint Quentin Yvelines).
Páginas109-182
Dossiê
Ser desempregado para os sociólogos
Didier Demazière*
Ora, produz-se [...] um fenômeno notável: como fato eco-
nômico, a burguesia é nomeada sem dificuldade: o capi-
talismo se professa. Como fato político, ela se reconhece
mal: não há partido “burguês” na Câmara. Como fato
ideológico, ela desaparece completamente: a burguesia
apagou seu nome passando do real à sua representação,
do homem econômico ao homem mental: ela se atribui
fatos, mas não compõe com os valores, ela submete seu
estatuto a uma verdadeira operação de ex-nominação;
a burguesia se define como a classe social que não quer
ser nomeada. “Burguês”, “pequeno-burguês”, “capitalis-
mo”, “proletariado”, são os pontos de uma hemorragia
incessante: fora deles o sentido desaparece até que o
nome se torne inútil.
(BARTHES, 1957, p. 211-212)
Como os sociólogos esmiúçam a categoria “desemprego” para
analisar os desempregados? Para além dessa ancoragem temá-
tica, eu gostaria de delimitar as condições de desenvolvimento de
análises empíricas do fenômeno da categorização social concen-
trando-me, sem julgamento de valor, no conceito de desemprego
e excluindo qualquer outra grandeza ou propriedade. Ao enraizar
a análise num campo particular, não pretendo adotar um ponto de
vista sobrepujante sobre um domínio de pesquisas que me interes-
sa, mas creio simplesmente encontrar, nessa opção, uma ilustração
comprovadora e estimulante. Os conhecimentos acumulados sobre a
condição de desempregado são importantes e mais preciosos ainda
pelo fato de destinarem-se a leitores pouco concernidos pessoal-
mente pela experiência biográfica do desemprego. Eles permitiram
* Sociólogo, pesquisador no CNRS, diretor do Laboratório PRINTEMPS (Université
de Versailles em Saint Quentin Yvelines). Endereço eletrônico: didier.demazie-
re@printemps.uvsq.fr.
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Nº 13 – outubro de 2008
melhor compreender as interpretações que os sujeitos privados de
emprego faziam da experiência do desemprego. Minha hipótese é
que as pesquisas sociológicas realizadas contribuíram para produzir
análises racionais das maneiras de viver o desemprego, mas sem
jamais enfrentar o problema, crucial a meu ver, dos mecanismos de
definição dos desempregados, dos usos desta palavra identitária.
Eu gostaria de argumentar inicialmente que a orientação maciça
em direção ao estudo do vivido do desemprego contribuiu consi-
deravelmente para distanciar as pesquisas sociológicas sobre os
desempregados das problemáticas da categorização social1.
Não é fácil encontrar explicações para a frágil ancoragem teó-
rica dessas pesquisas e para a timidez das teorizações decorrentes.
Mas deve-se reconhecer que esse domínio praticamente não foi
estruturado pelos debates conceituais da disciplina e sempre esteve
marcado por um empirismo invasor. Uma tradição temática capaz
de identificar uma “sociologia do desemprego” (DEMAZIÈRE, 1995a)
não se constituiu, e o interesse pelo desemprego foi descontínuo,
com uma inflação de pesquisas a partir de meados dos anos 1980,
sob o impacto de uma demanda pública que fez eco à persistência
da penúria de empregos (DEMAZIÈRE,1992c; GARRAUD, 2000).
Esses financiamentos contratuais pesaram de maneira muito
direta sobre as orientações de pesquisa, por exemplo, com a pro-
gressão rápida do tema de avaliação das políticas públicas de luta
contra o desemprego. Para completar as abordagens estatísticas,
altamente dominantes e reservadas aos economistas, os sociólogos
foram encarregados de analisar o vivido do desemprego. Tornaram-
se os especialistas desse vivido: os que fazem o trabalho de campo
encontram os desempregados, entrevistam-nos, prestam conta
daquilo que escutaram e viram. As diretrizes para a pesquisa estão
aparentemente muito soltas e pouco diretivas, pois essa orientação
valoriza o trabalho empírico e indutivo, delega ao pesquisador a
condução de pesquisas qualitativas, atribui ao sociólogo um saber-
1 Extraído do livro: DEMAZIERE (2003). Le chômage: comment peut-on être chômeur?
Cap. 6, «Être chômeur, pour les sociologues» (p. 215- 274). Texto traduzido por
Bernardete Wrublewski Aued e Ione Ribeiro Valle. Revisado por Anne-Sophie
de Pontbriand Vieira.
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Ser desempregado para os sociólogos
Dossiê
fazer na forma de abordar as populações reputadas como difíceis e
pouco loquazes, um pouco misteriosas e, porque não, inquietantes.
Ao mesmo tempo em que a sociologia ganhava um espaço reconhe-
cido e valorizado, mesmo sendo freqüentemente considerado como
menor em relação às abordagens quantitativas ou matemáticas,
encontrava-se consignada e confinada nesse espaço, porque nenhum
princípio de estruturação interna pôde corrigir e compensar essas
diretivas externas. Ao contrário, se pudéssemos diagnosticar uma
continuidade nas pesquisas sociológicas sobre o desemprego, ela
diria respeito igualmente à análise das maneiras de viver essa expe-
riência (DEMAZIÈRE, 1996); isso explica porque ela não se constituiu
num contrapeso aos efeitos da encomenda pública de pesquisas.
Esta constatação significa que as problemáticas da categori-
zação social não estiveram no centro de uma sociologia preocupada
em compreender como os indivíduos revestem-se estatuto social de
desempregado. Uma vez constituído esse estatuto, os indivíduos
que o ocupam são considerados como desempregados, mesmo
que interpretem diversamente sua situação. Mas essa situação está
dada e, além de tudo, ela cria desempregados: o problema das mo-
dalidades de passagem de uma categoria estatutária à qualificação
de situações individuais não é central, ao menos em uma primeira
análise. Decerto os sociólogos afirmam que o desemprego não é
somente uma condição econômica ou uma privação de emprego,
e que ele implica um reconhecimento social, a atribuição desses
traços a alguns indivíduos, a construção social de uma legitimidade
para reivindicar um emprego, a definição de uma rede de direitos
e obrigações recíprocas socialmente regradas. De certa forma, os
sociólogos concordam em afirmar que o desemprego é um construto
social, uma categoria elaborada.
Mas a análise das reações individuais e subjetivas a essa con-
dição socialmente definida não leva necessariamente em conta a
categorização social em si. Porque, geralmente, ela reconhece que os
desempregados são produzidos pelo desemprego, que eles existem
enquanto desempregados pela objetividade de uma condição de
desocupação profissional, validada por um registro administrativo.
Apesar disso, as operações de elaboração dessa categoria consti-
tuem, no meu entender, um objeto privilegiado para o sociólogo,

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