5.6 Nova compreensão da teoria da Separação dos Poderes; controle judicial de políticas e orçamentos públicos

AutorLoreci Gottschalk Nolasco
Páginas242-255

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Vimos que, em princípio, a estrutura do Poder Judiciário é relativamente inadequada para dispor sobre recursos ou planejar políticas públicas. Ele também carece de meios compulsórios para

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a execução de sentenças que condenam o Estado a cumprir uma tarefa ou efetuar uma prestação omitida; não há meios jurídicos para constranger o legislador a cumprir a obrigação de legislar.111Em certas condições, o incumprimento pelo legislador ou do governo das tarefas constitucionais ligadas aos direitos sociais é suscetível de desencadear uma inconstitucionalidade por omissão. Nesse ponto, vale ressaltar que os novos meios processuais do mandado de injunção (art. 5º, LXXI, CF) e da ação de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º, CF) ainda não surtiram os efeitos desejados e intencionados pelos Constituintes da Carta de 1988, tema complexo que não pode ser aprofundado aqui.

Há omissão legislativa sempre que o legislador não cumpre (ou cumpre insuficientemente) o dever constitucional de concretizar imposições constitucionais concretas. Ele pode não agir (omissão total) ou tomar medidas insuficientes ou incompletas (omissão parcial); no último caso, têm relevo decisivo considerações de caráter material, que dependem do grau de densidade da norma impositiva.112Assim, os direitos sociais podem funcionar como verdadeiros direitos subjetivos e serem invocados judicial-mente, por meio de ações de inconstitucionalidade por omissão e ação, na lição de Jorge Miranda.113Sustenta José Eduardo Faria que a conseqüência do não atendimento aos preceitos constitucionais por omissão legislativa ou administrativa pode resultar numa inconstitucionalidade permanente, que leva à desestabilização política. Ao mesmo tempo, é incontestável o valor político de uma decisão judicial que declara que o Estado está em mora com obrigações constitucionais econômicas, sociais e culturais; essas sentenças assumem

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o papel de importantes veículos para canalizar as reivindicações da sociedade.114Nesse sentido, Andreas Krell argumenta que:

[...] o vetusto princípio da Separação dos Poderes, idealizado por Montesquieu, está produzindo, com sua grande força simbólica, um efeito paralisante às reivindicações de cunho social e precisa ser submetido a uma nova leitura, para poder continuar servir ao seu escopo original de garantir Direitos Fundamentais contra o arbítrio e, hoje também, a omissão estatal. O Estado Social moderno requer uma reformulação funcional dos poderes no sentido de uma distribuição para garantir um sistema eficaz de ‘freios e contrapesos’.115Cappelletti destaca que os juízes de muitos países têm assumido a posição de negar o caráter preceptivo ou "self-executing" de leis ou direitos programáticos de cunho social, que normalmente se limitam a definir finalidades e princípios gerais. No entanto, o Poder Judiciário, mais cedo ou mais tarde, teria que "aceitar a realidade da transformada concepção do direito e da nova função do estado, do qual constituem também, afinal de contas, um ramo". Para tal fim, os juízes devem controlar e exigir o cumprimento do dever do Estado de intervir ativamente na esfera social. A atividade de interpretação e realização das normas sociais na constituição implica, necessariamente, um alto grau de criatividade do juiz, o que, por si, não o torna um "legislador".116Boaventura de Sousa Santos observa que, nos países periféricos como o Brasil, a atuação dos juízes caracteriza-se pela resistência em assumir a sua co-responsabilidade na ação providencial do Estado.117Nessa linha, exige-se um Judiciário "inter-vencionista", que, realmente, ousa controlar a falta de qualidade das prestações dos serviços básicos e exigir a implementação de

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políticas sociais eficientes. Nesse contexto, as decisões da administração pública não podem distanciar-se da "programaticidade principiológica" da Constituição.118Sustenta Bistra Apostolova que a natureza político-social das normas jurídicas preconizadas na Constituição de 1988 impõe a necessidade de métodos de interpretação específicos. O modelo dominante no Brasil sempre foi de perfil "liberal-individualistanormativista", que nega a aplicação das normas programáticas e dos princípios da nova Constituição. Enquanto o positivismo jurídico formalista exigia a "neutralização política do Judiciário", com juízes racionais, imparciais e neutros, que aplicam o direito legislado de maneira lógico-dedutiva e não-criativa, fortalecendo, deste modo, o valor da segurança jurídica, o moderno Estado Social requer uma magistratura preparada para realizar as exigências de um direito material, "ancorado em normas éticas e políticas, expressão de idéias para além das decorrentes do valor econômico".119Enfatiza, ainda, Bistra Apostolova que as expectativas e reivindicações de novos movimentos e grupos sociais da garantia dos seus direitos aumentaram a "visibilidade social e política" do Poder Judiciário, que se transformou, cada vez mais, num "espaço de confronto e negociação de interesses." A concretização desses direitos sociais exige alterações das funções clássicas dos juízes, que se tornam co-responsáveis pelas políticas dos outros poderes estatais, tendo que orientar a sua atuação para possibilitar a realização de projetos de mudança social, o que leva à ruptura com o modelo jurídico subjacente ao positivismo, a separação do Direito da Política.120Para José Eduardo Faria, a Magistratura Brasileira, considerada a partir de seu ethos cultural, corporativo e profissional, "tem desprezado o desafio de preencher o fosso entre o sistema jurídico vigente e as condições reais da sociedade, em nome da ‘segurança jurídica’ e de uma visão por vezes ingênua do equilí-

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brio entre os poderes autônomos".121Para ele, os tribunais, apesar dos novos direitos consagrados pela Carta de 1988, continuam com uma cultura técnico profissional defasada - com métodos exclusivamente formais de caráter lógico, sistemático e dedutivo - incapazes de entendê-los e, por conseqüência, de aplicá-los.122Entre as teorias existentes sobre os Direitos Fundamentais, são aceitas, no Brasil, a liberal e a institucional, enquanto a Teoria dos Valores (R. Smend), que entende os Direitos Fundamentais como expressão de uma "ordem objetiva de valores", ainda encontra fortes ressalvas. Segundo essa teoria - defendida pela Corte Constitucional Alemã - os Direitos Fundamentais atuam sobre as relações jurídicas diante dos poderes públicos e sobre as relações jurídicas dos cidadãos entre si. Assim, os valores assentados nos Direitos Fundamentais são capazes de impregnar toda a ordem jurídica, como o exercício da discricionariedade administrativa e o preenchimento das cláusulas gerais do direito civil (ex.: "boa-fé", "bons costumes"), segundo lição de Andréas Krell.123Argumenta o autor que essa compreensão jurídico-objetiva também é de fundamental importância para os deveres do Estado, pois a vinculação de todos os poderes aos direitos fundamentais contém não só uma obrigatoriedade negativa do Estado de não fazer intervenções em áreas protegidas pelos direitos fundamentais, mas também uma obrigação positiva de fazer tudo para realizar os mesmos, mesmo se não existir um direito público subjetivo do cidadão.124Segundo este entendimento, defende-se um novo tipo de Poder Judiciário e de compreensão da norma constitucional, e

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juízes "ativistas", vinculados às diretivas e às diretrizes materiais da constituição, voltados para a plena realização dos seus comandos e não apenas apegados aos esquemas da racionalidade formal e, por isto, muitas vezes, simples guardiões do status quo. Torna-se necessária, portanto, uma "mudança de paradigmas" na percepção da sua própria posição e função no moderno Estado Social de Direito.

Desse modo, para Menelick de Carvalho Netto:

É tempo de nos conscientizarmos da importância não somente do que Pablo Lucas Verdú denomina sentimento de Constituição para a efetividade da própria ordem constitucional, mas que precisamente para se cultivar esse sentimento em um Estado Democrático de Direito, das decisões judiciais deve-se requerer que apresentem um nível de racionalidade discursiva compatível com o atual conceito processual de cidadania, com o conceito de Häberle da comunidade aberta de intérpretes da Constituição. Ou para dizer em outros termos, ao nosso Poder Judiciário, em geral, e ao Supremo Tribunal Federal, em particular, compete assumir a guarda da Constituição de modo a densificar o princípio da moralidade...

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