A 'revolução' das negociações coletivas: precarizando direitos dos trabalhadores terceirizados

AutorLara Parreira de Faria Borges
Páginas394-409

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Ver nota 1

Sento-me e observo

Sento-me e observo todas as tristezas do mundo e toda a opressão e

[a vergonha,

Ouço soluços convulsivos e secretos de jovens homens angustiados

[...]

Vejo as obras das batalhas, da pestilência, da tirania, vejo mártires

[ e prisioneiros,

Observo o desprezo e a degradação lançados por pessoas arrogantes

[sobre os operários, sobre os pobres e sobre os negros, e outros que sofrem preconceito;

Tudo isso - todas as maneiras e agonias sem fim, eu, sentado,

[observo,

Vejo, ouço e estou calado.

Walt Whitman

1. Introdução

A conjuntura do sistema neoliberal exige das transações econômicas eficiência, redução de custos e produção limitada às necessidades imediatas. No que tange às relações trabalhistas, segundo a ideologia neoliberal, é imperativo implementar relações de emprego flexíveis e precárias que permitam a diminuição dos gastos com mão de obra, redução de ônus oriundos dos empregados, bem como facilidades de dispensa acrescidas de restrições a direitos do obreiro.

A lógica neoliberal levanta a bandeira da liberdade como embasamento da flexibilização das relações trabalhistas de modo a mostrar seu lado positivo e benéfico para uma economia racional e sã. Entretanto, a liberdade apresentada mostra-se presente apenas em favor do empregador, escondendo sua outra face que é o aprisionamento do trabalhador a uma condição de precarização de seu vínculo empregatício.

A situação fragilizada do trabalhador acaba por torná-lo refém de uma ordem que o pressiona a não comunicar suas angústias e medos por ser ele um privilegiado ao ser contemplado por um emprego, enquanto tantos encontram-se em condições piores. O medo da ruptura contratual, bem como a concorrência entre colegas, a fácil substituição de um trabalhador por outro, a volatilidade da relação de emprego acabam por silenciar os trabalhadores, dificultando a reivindicação de condições melhores de trabalho.

Nesse contexto de ausência de comunicação, os sindicatos, que foram instituições criadas para a representação e a defesa dos trabalhadores, em muitos casos, demonstram uma atuação precária e fragilizada, permitindo a redução de direitos trabalhistas, para além das hipóteses de flexibilização admitidas pela Constituição de 1988.

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O presente artigo busca analisar o contexto fático da conjuntura neoliberal e sua influência "revolucionária" na atuação sindical. Para tanto, propõe-se a analisar casos de demandas bastante recorrentes na Justiça do Trabalho, demonstrando como os sindicatos dos trabalhadores protagonizam uma redução de direitos de forma a burlar dispositivos do ordenamento jurídico brasileiro, flexibilizando a relação trabalhista para reduzir encargos do empregador e precarizar mais ainda a condição dos obreiros.

2. Flexibilização e individualização das relações trabalhistas

Zygmunt Bauman explica que o fenômeno da globalização se baseia na produção do efêmero, do volátil e do precário, encontrando-se neste último as relações de emprego flexíveis.2

Segundo o presidente do Banco Central alemão, em 1996, Hans Tietmeyer, "para tornar os investidores confiantes e encorajá-los a investir, disse ele, seria necessário um controle mais estrito dos gastos públicos, a redução dos impostos, a reforma do sistema de proteção social e o ‘desmantelamento das normas rígidas do mercado de trabalho’."3 Para Hans Tietmeyer, as normas que regem o mercado de trabalho são excessivamente rígidas, não permitindo a maleabilidade exigida pelas demandas do mercado; assim, o trabalho se torna uma variável econômica, conferindo aos investidores a sensação de que dominam a atuação da mão de obra.4

Entretanto, Zygmunt Bauman explica que este tipo de postura transforma o trabalho no oposto do que este se propõe à medida em que "a ideia de ‘flexibilidade’ esconde sua natureza de relação social, o fato de que demanda a redistribuição de poder e implica uma intenção de expropriar o poder de resistência daqueles cuja ‘rigidez’ está a ponto de ser superada".5

Sobre o trabalho flexível, Zygmunt Bauman tece a seguinte análise:

A "flexibilidade" só pretende ser um "princípio universal" de sanidade econômica, um princípio que se aplica igualmente à oferta e à procura do mercado de trabalho. A igualdade do termo esconde seu conteúdo marcadamente diverso para cada um dos lados do mercado.

Flexibilidade do lado da procura significa liberdade de ir aonde os pastos são verdes, deixando o lixo espalhado em volta do último acampamento para os moradores locais limparem; acima de tudo, significa liberdade de desprezar todas as considerações que "não fazem sentido economicamente". O que, no entanto, parece flexibilidade do lado da procura vem a ser para todos aqueles jogados no lado da oferta um destino duro, cruel, inexpugnável: os empregos surgem e somem assim que aparecem, são fragmentados e eliminados sem aviso-prévio, como as mudanças nas regras do jogo de contratação e demissão - e pouco podem fazer os empregados ou os que buscam emprego para parar essa gangorra. E, assim, para satisfazer os padrões de flexibilidade estabelecidos para eles por aqueles que fazem e desfazem as regras - serem "flexíveis" aos olhos dos investidores -, as agruras dos "fornecedores de mão de obra" devem ser tão duras e inflexíveis quanto possível - com efeito, o contrário mesmo de "flexíveis": sua liberdade de escolha, de aceitar ou recusar, quanto mais de impor as suas regras do jogo, deve ser cortada até o osso.6

A liberdade econômica em favor do empregador é a face da liberdade que se mostra no discurso neoliberal. Entretanto, esquece-se de ressalvar que esta liberdade é garantida efetivamente apenas aos empregadores. Ao obreiro, como afirma Zygmunt Bauman, só cabe uma inflexibilidade de escolha quanto às condições de seu contrato de trabalho.

Assim, a precarização das condições de trabalho é uma moeda com duas faces: uma face flexível para o empregador e uma face totalmente inflexível para o empregado. Essa precarização e relativização de direitos do obreiro insere-se no paradigma neoliberal, o qual está interessado no individual em detrimento do coletivo obreiro.

Para Pierre Bourdieu, o discurso neoliberal é um "discurso forte", por ter a seu favor "todas as forças de um mundo de relações de força, que ele contribui para fazer tal como é, sobretudo orientando as escolhas econômicas daqueles que dominam as relações econômicas e acrescentando assim a sua força própria".7

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Segundo o sociólogo francês, esse discurso gera um sistema que permite destruir os coletivos, buscando tratar apenas com os indivíduos, impedindo todo coletivo que possa resistir à lógica do mercado.

Assim se instaura o reino absoluto da flexibilidade, com os recrutamentos por intermédio de contratos de duração determinada ou as interinidades e os "planos sociais" de treinamento, e a instauração, no próprio seio da empresa, da concorrência entre filiais autônomas, entre equipes, obrigadas à polivalência, e, enfim, entre indivíduos, através da individualização da relação salarial: fixação de objetivos individuais; prática de entrevistas individuais de avaliação; altas individualizadas dos salários ou atribuição de promoções em função da competência e do mérito individuais; carreiras individualizadas; estratégias de "responsabilização" tendendo a garantir a autoexploração de certos quadros que, sendo simples assalariados sob forte dependência hierárquica, são ao mesmo tempo considerados responsáveis por suas vendas, seus produtos, sua sucursal, sua loja etc. (...) eis algumas técnicas de submissão racional que, ao exigir o sobreinvestimento no trabalho, e não apenas nos postos de responsabilidade, e o trabalho de urgência, concorrem para enfraquecer ou abolir as referências e as solidariedades coletivas.8

(...)

Encontram as molas de adesão na insegurança em relação à tarefa e à empresa, no sofrimento e no estresse, não poderia certamente ter sucesso completo, caso não contasse com a cumplicidade de trabalhadores a braços com condições precárias de vida produzidas pela insegurança bem como pela existência - em todos os níveis da hierarquia, e até nos mais elevados, sobretudo entre os executivos - de um exército de reserva de mão de obra docilizada pela precarização e pela ameaça permanente do desemprego.9

Assim, Pierre Bourdieu argumenta que a base dessa ordem econômica, mascarada pelo discurso da "liberdade dos indivíduos", encontra-se na "violência estrutural do desemprego, da precariedade e do medo inspirado pela ameaça de demissão".10

Para Pierre Bourdieu, o desemprego "isola, atomiza, individualiza, desmobiliza e rompe com a solidariedade".11

O sociólogo francês argumenta que o contrato de trabalho é usado como a estrutura racional, juntamente com um discurso de lealdade, confiança, cooperação, para obter do trabalhador uma renúncia às suas "garantias temporais".12

A maior parte das demissões injustificadas provém, segundo o autor, do "enxugamento" das empresas.13 E este enxugamento é facilmente constatado na prática da terceirização, quando as grandes empresas diminuem sua estrutura e seu volume de mão de obra para reduzir gastos e passam a contratá-la indiretamente por meio das empresas terceirizadas.

Esse desemprego oriundo do "enxugamento" da empresa gera sentimentos como a angústia, desmoralização e conformismo no trabalhador. 14Tais sentimentos são deplorados pelo setor empresarial, uma vez que, nesse contexto, os dominados estão...

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